Meus caros editor e coeditores, esforçados trabalhadores do blogue a quem agradeço toda a vossa dedicação:
Aqui vai para "postar" mais um naco das minhas memórias de combatente.
O assunto poderá ter um cariz muito pessoal e ter reduzido interesse para a maioria dos habitantes e outros frequentadores desta Tabanca Grande. Falo por mim, que gosto dele.
Ao vosso critério.
Um grande abraço do
Manuel Joaquim
Bissau, 1965: Pourri avant d’être mûri
[Apodrecido antes de ficar maduro]
A razão de Henry Miller ser para aqui chamado com o seu “Trópico de Capricórnio” assenta num cantinho bem vivo das minhas memórias de Bissau.
Começo por apresentar o livro com uma transcrição:
«Estou-me tornando eu mesmo? Penso que não. Sou uma pessoa desgraçada, desconsolada, miserável. Pareço ter perdido tudo. De facto, mal sou uma pessoa, assemelho-me mais a um animal. (…) Não tenho pensamentos, nem sonhos, nem desejos. Sou completamente sadio e vazio. Sou uma nulidade. Sou tão vivo e sadio que me assemelho ao fruto suculento e enganador que pende das árvores (…). Mais um raio de sol e estarei podre. “Pourri avant d’être mûri! ». Henry Miller, “Trópico de Capricórnio”
Não foram estas frases, foi o livro de onde saíram que me levou a gostar (muito) de Henry Miller, escritor norte-americano muitas vezes atirado abusivamente para o lote de autores de literatura pornográfica. Considerado “maldito” no seu país durante a primeira metade do séc. XX, é hoje tido por muitos como um dos seus grandes escritores.
A escrita de Miller abala os alicerces da hipocrisia humana (moral, social e política), como disse um crítico. Um dos seus livros, a que estive (e estou) muito ligado, é o “Trópico de Capricórnio”, o qual tenho como referência obrigatória na minha formação. Dele disse a revista Time que poderia ter sido escrito por Harpo Marx e Hieronimus Bosch, juntos. Obra de 1939, não tem perdido atualidade e a sua “Companhia Telegráfica Cosmodemoníaca” ( “figura” com peso neste livro) tem réplicas atuais bem vivas.
Na capa do exemplar que tenho (acima reproduzida) diz o editor que H. Miller povoa N.York “com aqueles fabulosos personagens, turbulentamente engraçados, chocantemente grosseiros, totalmente diferentes de todos os personagens da literatura bem educada e assim espantosamente verdadeiros e reais”. Concordo plenamente. Ainda hoje, quando preciso de me pôr bem com a vida, pode acontecer uma visita às suas páginas para procurar juventude de espírito, energia e boa disposição naquele caos literário e imagético, classificado por um outro crítico como “um grandioso hino de louvor a tudo quanto é ainda alegre, sadio, feliz e afirmativo”.
Então, vamos agora ao tema.
Setembro/1965, e foi assim:
À partida de Lisboa (31/julho/65) diziam-nos que Cabedú, no sul da Guiné, seria provavelmente o destino da CCaç 1419, a minha companhia. Se assim era para ser, alguém alterou o programa e demos por nós, felizardos, colocados em Bissau enquanto as outras companhias do BCaç 1857, a 1420 e a 1421, cuja malta tinha lamentado a nossa “sorte”, batiam duramente com os costados em Fulacunda e Mansabá, respectivamente.
“Pronto cá estou. A viagem correu perfeitamente e Bissau apareceu-me airosa, muito mais bonita do que eu a imaginava. O clima está bastante razoável. Menos quente do que aí, quando estive em S.ta Margarida. Fiquei e estou instalado num quartel aqui em Bissau, estadia esta que se prolongará durante uns tempos. Bom ambiente, em que parece não se pensar em guerra leva-nos a encarar isto com optimismo”. (Primeiras palavras da 1ª carta que enviei da Guiné, no dia 07/08/65).
Pormenor da marginal do porto de Bissau. Foto/postal do final da década de 1960, retirada de http://images,forum-auto.com/
Aquartelados no chamado “600” em S.ta Luzia, lá íamos passando o tempo entre o prazer da descoberta da cidade e suas vivências, a monotonia dos serviços de segurança na zona e uma ou outra saída esporádica p’rás bandas de Mansoa, quase sempre só a cheirar a guerra.
Ora, a um dado momento, comecei a ler o “Trópico de Capricórnio” de Henry Miller, emprestado por um furriel dos “escritórios” do QG ou coisa parecida, meu camarada do tempo de recruta em Tavira. Éramos amigos. Digo “éramos” porque aconteceu eu sair de Bissau rumo a Bissorã sem ter tido hipóteses de dele me despedir. E nunca mais nos encontrámos.
É que a 19 de outubro, pouco tempo antes dessa saída, regressei a Bissau após uma ausência de 10 dias em serviço de segurança, “armado em marinheiro de guerra” a bordo de um pequeno barco no percurso Bissau-Farim-Bissau (que belas imagens do rio Cacheu me ficaram desta viagem!). Tinha ido acompanhar dois batelões com abastecimentos para Bigene, Binta e Farim. Ao voltar, fui apanhado de surpresa com a deslocalização da CCaç.1419 para Bissorã e, perante a urgência de “emalar a trouxa e marchar”, nem tive tempo de o procurar.
Nunca mais vi este furriel (*) e há muito tempo que esqueci o seu nome. A imagem que dele tenho nem é a de Bissau mas a de Tavira dos tempos de incorporação militar e onde, perante as exigências dos exercícios físicos, as “passas do Algarve” lhe custaram a passar mais a ele do que a quase todos os outros seus camaradas de recruta. É que o rapaz tinha os chamados “pés chatos” a um nível extremo, se assim se pode dizer, o que lhe dificultava muito o movimento. Talvez esteja a exagerar mas digo que, para melhor se equilibrar, ele andava “à Charlot” mas sem a ligeireza deste. Melhor dizendo, era bastante lento no andar e avançava com os pés afastados um do outro e virados para fora alguns 40 graus em relação ao eixo de progressão. Aguentou estoicamente e até ficou com uma especialidade compatível com as suas capacidades físicas. Penso que era da zona de Rio Maior mas nem sei se esta ideia tem fundamento.
E então lá fui para Bissorã com o “Trópico …” num bonito saco de viagem azul, com a intenção de mais cedo ou mais tarde o fazer voltar às mãos do seu dono. Mas, deficiente que estava a “ponte” sobre o rio Braia (estrada Mansoa-Bissorã), houve as trocas e baldrocas de bagagens entre as viaturas idas de Bissau e as vindas de Bissorã. Na confusão gerada, e na minha distração, o saco atraiu as mãos de alguém, nunca mais lhe pus a vista em cima. Um desastre.
Com o saco lá se foram o livro e as minhas coisas mais queridas (carteira com dinheiro e todos os documentos pessoais, um isqueiro de prata dado pela namorada no meu recente aniversário, correspondência entretanto recebida, fotos, etc.). Tudo levou sumiço. Apesar de na minha vida ter sido “n” vezes vítima da não devolução de livros emprestados, ficou-me esta mágoa de não me ter sido possível devolver este.
Mas voltemos atrás, ao porquê desta historieta. Voltemos a Bissau, aí para meados de Setembro, quando nos apareceu na camarata uma figura interessante chegada lá do sul, Cabedú (**), à procura de uma cama vaga. O furriel Vieira Lopes (**) foi muito bem recebido e rapidamente se integrou, com a sua “velhice”, naquele ambiente. Aparecia-nos vindo das terras do nosso antes temido “futuro prometido e imaginado” e nós bebíamos as suas palavras com um misto de curiosidade, aprendizagem e alegria por nos estarmos a ver livres daqueles ambientes funestos que nos descrevia. Calculo até, pela minha experiência adquirida posteriormente, que algum exagero pairaria nas suas “histórias”. Mas na altura bebíamos aquilo com uma grande e temerosa excitação!
Como já disse, o livro de que falo tem diversas passagens onde a linguagem usada poderá ser considerada pornográfica por alguém mais puritano. Será difícil nos tempos de hoje encontrar esse alguém entre militares mas, há 40 e tal anos, imagine-se a excitação que tal tipo de literatura causava naquele ambiente de caserna, era enorme! Estas passagens eram lidas em voz alta e alvo dos mais diversos comentários cheios de galhofaria de teor sexual bem “hardcore”. Está-se mesmo a ver que o livro era vítima de rápidas leituras “em diagonal”, que é como quem diz, saltava-se de página em página à procura das partes mais “picantes”, as quais até passaram a ser sublinhadas a lápis. E eram muitas.
Talvez que a primeira pessoa a pegar a sério no livro tenha sido o “velhinho” furriel vindo do sul e ali aboletado no nosso dormitório. E foi assim que ele, um dia, deitado na cama e com a voz grossa que o caracterizava, rompeu o silêncio casual com uma bem sonora explosão vocal: pourri avant d’être mûri!
O inesperado da situação levou toda a gente a fixar o Vieira Lopes, talvez à espera de mais qualquer coisa, o mais provável à espera de saber o que é que o tipo queria dizer com aquilo e o porquê daquela explosão de palavras em francês. Ele compreendeu e com ar calmo, solene, teatral, pespega-nos com a leitura em voz alta do parágrafo acima transcrito, no início deste texto, acabando a gritar: pourri avant d’être mûri! E como que traduzindo: “estou podre antes de amadurecer, ca..lho!”
Acredito que para a maior parte dos assistentes o que lhe ficou na memória, e por pouco tempo, foi este grito, uma atitude um pouco diferente do normal, se calhar de mais um “cacimbado” que por ali andava. Aquilo de ele estar podre antes de amadurecer não tinha sentido, só poderia sair de cabeça desarranjada! O tempo de Guiné ainda era mínimo para nós mas já tínhamos dado por uns disparatados comportamentos vindos de personagens bem patuscas, por vezes divertidas, uns tipos “passados” de todo que cirandavam pelo bar e pela messe. Dizia-se até que alguns deles eram bons encenadores. Se o eram, sabiam bem do ofício. Mas um ou outro, coitado, parecia mesmo estar “pourri avant d’être mûri”. A mim, este grito do Vieira Lopes marcou-me como se tivesse levado um soco e levou-me ao livro para uma leitura a sério, a olhar aquela escrita com outros “olhos”.
Revejo nitidamente esta cena e o seu protagonista e pergunto-me como é possível lembrar-me, hoje, do seu nome (será este?) e ter esquecido o nome do camarada com quem confraternizava e que era o dono do livro! Lembrar-me bem disto e não me lembrar da maior parte do que fiz em Bissau durante os dois meses e meio que lá passei indica que o facto me marcou bem fundo. Talvez algumas referências escritas que conservei sirvam para o explicar.
Eis algumas, datadas de Bissau, Setembro/1965:
«Como Miller no seu livro também eu poderei estar a apodrecer aqui, neste trópico que não é o de Capricórnio mas o de Câncer?
No fim disto tudo, o que restará daquilo que fui até este momento, nada?
Irei por aqui cair aos pedaços, apodrecido, antes de eu e os meus projectos amadurecermos?
Oh sorte, por onde andas?
Estarei condenado a apodrecer aqui?
Fui expulso da minha terra para uma outra cheia de água e lama, de mosquitos animais que muito incomodam e de moscardos mecânicos que matam, simplesmente matam sem a maior parte de nós perguntar porquê!
Cá estou, sei que tenho medo mas ainda não sei quanto, devo estar anestesiado com o que me aconteceu.
Cá estou, desterrado, numa missão cujo sentido me passa ao lado, eu conheço-o mas não gosto dele.
É um sentido sem sentido.
Preciso de me dar a volta. Olho para os outros e sinto, vejo, que não posso ficar sozinho a cozinhar angústias nesta solidão de alma.
Tenho de encontrar a melhor maneira de viver neste ambiente, tenho de me construir com o que de bom por aqui encontrar.
Pourri avant d’être mûri? Não, não posso permitir que tal me aconteça. Não posso apodrecer, a vida espera-me e ainda me faltarão muitos anos para ficar maduro. Deixem-me amadurecer primeiro. Deixem-me escolher quem me há-de provar quando estiver maduro. Não quero alimentar facínoras e seus capangas, os que aqui me meteram.
Quero viver, para poder ser um fruto maduro, lindo e apetitoso, que dê prazer a quem o provar, prazer esse que também será meu. Até ao fim do que de mim restar, aquele que é inevitável pelas leis da natureza, até à dissolução no universo infinito.»
Imagem do percurso perfeito. Foto retirada de http://taicashewnut.com/
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NOTA FINAL:
Gostei de encontrar estas minhas reflexões de juventude, sinto-me muito bem por me rever naquele jovem que as escreveu, ainda por cima com alguma qualidade literária e com um cunho ideológico que me continua a agradar.
Estes tempos que agora vivo (vivemos) são tempos nebulosos, espúrios, irritantes, incertos, difíceis de viver e onde a esperança é uma figura fugitiva.
Socialmente, lembram-me o tempo da minha juventude. Dou por mim a compará-los, a comparar a situação dos jovens de hoje com a dos jovens desse meu tempo: o horizonte fechado, a incerteza do futuro, os problemas de subsistência, a dificuldade em “respirar”, a sensação de que algo tem de estoirar e o mais depressa possível …
Estou com 71 anos, tive sorte e julgo ter ultrapassado saudavelmente as dores daquela guerra da Guiné, fiquei maduro, tentei e tento ser “apetitoso” para o meu semelhante, continuo a dar-me a provar e a não prescindir de escolher alguns dos provadores, aqueles que penso serem sérios na apreciação, gostem ou não do que provam.
Levei, é verdade, e não me livro de continuar a levar algumas dentadas mais agressivas. Tenho conseguido superar o incómodo ou mesmo a dor. Em contrapartida, felizmente, tenho sido e sou sujeito de muitas dentadinhas deliciosas que me fazem crer ter sido cumprido o meu desejo, expresso há 47 anos, e que era o de ficar maduro e apetitoso.
E ainda não apodreci. Parece-me!…
(*) Por onde andará este camarada e amigo furriel? Haverá por aqui gente do meu tempo de Tavira (janeiro-junho de 1964) ou do tempo de Bissau (1965-1967) e que dele tenha referências? Será ele leitor deste blog? Se o for e não estiver interessado no contacto, sempre ficará a saber que o seu “Trópico de Capricórnio” seguiu um outro percurso que não o que ele pensa e deve ter “iluminado” e excitado outra gente que não o Manuel Joaquim e os seus “compinchas” da CCaç 1419. Estejas onde estiveres, meu amigo de outros e velhos tempos, aqui vai um grande abraço.
(**) Apesar de estar convencido da verdade destes nomes, já não garanto nada, já não acredito muito na minha memória. O que me tem ajudado muitas vezes são as referências escritas que possuo mas elas também são limitadas. Assim é neste caso.
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Nota de CV:
Vd. último poste da série de 2 de Julho de 2012 > Guiné 63/74 - P10105: Memórias de Manuel Joaquim (7): Miserere