ESTÓRIAS DO JUVENAL AMADO (45)
A CACHAÇA DO SENHOR PEREIRA DE LIMA
Comecei a sentir-me estranho nessa tarde.
Não era nada que não passasse com umas cervejas, ou quem sabe um ou dois whisky, dizia o meu camarada Ivo, que nunca tinha tido uma constipação que não curasse com umas cachaça feita pelo seu pai, que vivia para os lados de Santa Maria da Feira. Ele dava esse nome à aguardente extraída do engaço de uvas, que ele cultivava em latadas. Daí resultava um vinho fraco com alguma acidez, que tingia tudo onde caía, mas que era bebido nunca menos de uma garrafa por pessoa para começar. Era desse mesmo vinho que saía uma aguardente fortíssima, que o sr Pereira de Lima produzia se encarregava de enviar ao filho sempre que tinha portador.
Nesse tempo não era difícil arranjar portador, pois a solidariedade falava mais alto e no saco da TAP que nos era permitido transportar gratuitamente algumas coisas, havia sempre lugar para os agrados que familiares queriam fazer aos seus que combatiam na Guiné.
“Oh Ivo como é que consegues beber isso?”
E dizia logo ele a rir:
- Já não tenho fígado, os intestinos puxo-os para o lado, por isso é sempre a direito.
E assim lá experimentei todas essas “mesinhas”, desde cerveja à quase intragável aguardente, que sendo tão forte me queimou todo por dentro. Como era de esperar, zonzo não tardei a ter que me deitar e que me tapar com tudo o que era manta. Eu sou pouco resistente à febre e o frio logo deu lugar a um calor intenso, que me começou a provocar alucinações onde qualquer imperfeição da parede, se tornavam em imagens fantasmagóricas e logo a seguir pensava estar noutro lugar. Passava de delírio para delírio.
Quando dei por mim estava na enfermaria, com um violento ataque de paludismo e mal grado as injeções bastante dolorosas por sinal, a febre manteve-se durante praticamente três dias, deixando-me numa prostração de tal ordem, que nem tugia nem mugia. Ainda me apercebi dos olhares de preocupação do Dr. Pereira Coelho e do Catroga. Só vim a saber mais tarde que a minha evacuação quase esteve marcada. Finalmente graças aos cuidados do doutor bem como o resto do pessoal de saúde, a febre acabou por ceder e recuperação foi rápida a partir do momento que me consegui pôr de pé, mas antes de sair da enfermaria assisti à chegada do meu camarada Ivo, também ele com violento ataque de paludismo, que o apanhou no mato e só chegou ao sítio onde uma viatura o foi buscar graças a umas “bombas,” que o André “russo” lhe deu. Estava assim provado que afinal a cachaça era muito boa, mas não servia de nada contra o paludismo.
O Ivo é um dos camaradas com quem mantive estreitas relações de amizade e por diversas vezes visitei. Quando me casei fiz uma viagem pelo o Norte de Portugal na velhinha 4L de três velocidades do meu pai. Visitei o Silva nos Carvalhos, o Passos em Matosinhos, e como não podia deixar de ser, lá fui a S. João de Ver visitar a esposa e os pais do meu amigo Ivo. Ele não estava pois tinha emigrado para a Venezuela. Ficámos lá em casa onde privei com os irmãos e irmãs dele. Lembro-me bem que era altura das vindimas, já estavam a fazer o tal vinho e tinham instalado um pequeno pipo ao alto sem tampa, donde tirávamos grandes canecas e bebíamos sem olhar à quantidade. Chamavam-lhe o vinho doce pois era o sumo da uva esmagada antes de começar a fermentar e só durava aquele dia.
A seguir ao jantar entre estórias e recordações onde o Ivo foi figura central, lá bebemos da tal cachaça que até dava vida aos mortos, nas palavras do senhor Pereira de Lima que ria com francas gargalhadas.
A saudade é isto, são as coisas boas e as pessoas que nos marcaram. O pai e a mãe do Ivo são pessoas que recordo hoje com carinho, como se fossem também da minha família.
Descansem em paz.
À esquerda está o Caramba, nosso tabanqueiro, e à direita o Ivo Pereira de Lima.
De pé: Correia, Catroga, Fur Graça, Dr. Vieira Coelho e André. De cócoras: auxiliar milicia, meninos, sendo um deles o que ficou gravemento queimado no ataque a Campata, e Santos.
Em pé: Passos, Ivo, Catroga, Sertã e Estufa. Em baixa: Cabo Silva, Ferreira, Romão e Silva
A partir da esquerda: Dr. P. Coelho, Alf Vasconcelos, Veiga e Parente
____________Nota de CV:
Vd. último poste da série de 10 de Setembro de 2012 > Guiné 63/74 - P10363: Estórias do Juvenal Amado (44): O nosso Tenente Raposo
3 comentários:
Olá Juvenal.
A tua história lembra-me momentos meus, febre, calor, arrepios de frio, tudo ao mesmo tempo, sem motivo, e sem saber donde vinha, pois éramos europeus em áfrica, acamados, medicados com o que havia, e arriváva-mos porque éra-mos jovens, às vezes pensávamos que o alcool resolvia tudo, e por fim a amizade, que ao regressar-mos, embora cada um retomasse o seu rumo, perdorou por toda a vida. Como dizia o Curvas, alto e refilão, das minhas histórias, "puta de vida"!.
Gostei do teu texto,.
Um abraço do amigo, Tony Borie.
Camarada Juvenal
Tal como tu a maioria da malta que esteve no mato ,foi presenteada com o Paludismo. O mais chato é que vinha sempre nas más alturas. Eu já contei aqui uma estória a esse respeito em que o meu primeiro ataque de palodismo aconteceu precisamente na 1ª altura em que recebemos alimentos frescos no Biambe.Estás mesmo a ver a falta de vontade de "dar ao dente"em alimentos que não eram de latas.
Tambem gostei da simplicidade da estória,pois que foram e serão essas lembranças que nos amadureceram e aprendemos a valorizar o que de Bom tem a vida.
Um abraço
Henrique Cerqueira
Bom texto, Juvenal.
Deu para imaginar o teu suplício e recordar outros de igual teor mas não deu para "sentir", já que fui um dos felizardos que não apanharam paludismo (aliás, nunca estive doente na Guiné).
Quanto a isto, já pensei que as Anopheles nunca quiseram nada comigo ou então eram de tipo especial, só chupariam sangue limpo de Plasmodium.
Grande abraço do amigo
Manuel Joaquim
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