terça-feira, 8 de setembro de 2015

Guiné 63/74 - P15087: Caderno de Memórias de A. Murta, ex-Alf Mil da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4513 (19): De 26 de Julho a 4 de Agosto de 1973

1. Em mensagem do dia 5 de Setembro de 2015, o nosso camarada António Murta, ex-Alf Mil Inf.ª Minas e Armadilhas da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4513 (Aldeia Formosa, Nhala e Buba, 1973/74), enviou-nos a 19.ª página do seu Caderno de Memórias.


CADERNO DE MEMÓRIAS
A. MURTA – GUINÉ, 1973-74 

19 - De 26 de Julho a 4 de Agosto de 1973


Da História da Unidade do BCAÇ 4513: 

JUL73/26 – Forças da 1.ª CCAÇ durante a acção “ORIENTE”, estenderam os patrulhamentos das NT mais para o interior, aproximando-se do R. BAPO. Na região (XITOLE 1 F 5-13) referenciaram rajadas e rebentamentos de AA. Segundo a direcção de SALANCAUR JATE (GUILEGE 3 G 3-23) aquando da passagem S/N (sul/norte) de um avião não identificado.

JUL73/27 – Forças da 3.ª CCAÇ durante a acção “ORDENAR” percorreram a antiga picada MAMPATÁ-BOLOLA fazendo C/PEN (contra penetração) na região do R. BAPO. Sem contacto.

JUL73/28 – (...)

JUL73/30 – GR IN não estimado flagelou durante dez minutos o Destacamento de Cumbijã com 20 granadas de canhão S/R 82, sem consequências. As NT reagiram com artilharia.

JUL73/31 – Inicia-se com forças da 1.ª, 2.ª e 3.ª CCAÇ e CCAV 8351 a acção “OUSADIA”, orientada para a região do UNAL. Neste dia é deslocada para a região do pontão destruído do R. HABI, a CCAV 8351 com a missão de o proteger na sua reconstrução. É reforçada com o PEL SAP, o PEL REC da CCS, encarregadas da sua reconstrução. 

[Vai começar a “festa”, digo eu. E sublinho o anúncio a negrito].

******

[Ainda que possa interessar apenas a uns quantos e a mim próprio, a História da Unidade do BCAÇ 4513 e o Resumo dos Factos e Feitos, são documentos valiosos pelo registo conciso e sistemático de acontecimentos em que participámos e que marcaram as nossas vidas, mas dos quais a nossa memória apenas guardou o mais relevante, deixando que se esfumassem os detalhes. Há mesmo informações e situações datadas de que só agora tomo conhecimento. 
Por tudo isso transcrevo na íntegra a descrição da SITUAÇÃO GERAL referente ao mês de Agosto/73, período conturbado e de grandes alterações no sector (S 2), e a seguir transcreverei apenas as actividades mais relevantes que, no mês de Agosto é quase tudo. Continuarei a acrescentar as minhas notas, memórias e histórias, à frieza militar dos registos da H. da Unidade].


Da História da Unidade do BCAÇ 4513 – Período de 01AGO a 31AGO73: 

SITUAÇÃO GERAL 

Este período foi particularmente movimentado no que diz respeito às NT, pois que além da apresentação do novo Comandante do Batalhão, se processou a saída do Sector S-2 do BCAÇ 3852, que seguiu para BISSAU para regressar à Metrópole, sendo substituído na quadrícula desde 10AGO73 pelo BCAÇ 4513, e ainda a entrada no Sector do BCAÇ 4516 que substituiu na intervenção o BCAÇ 4513.

Operacionalmente, o período iniciou-se com a acção “OUSADIA” que, tendo como objectivo o UNAL, a 1.ª fase consistiu em reconstruir um pontão sobre o R. HABI, próximo de LENGUEL, recentemente destruído pelo IN, não se tendo atingido o objectivo por terem sido detectados os trabalhos no pontão havendo consequentemente do outro lado do rio uma forte resistência, sendo o pontão novamente destruído, durante o contacto.

Nesta acção o IN sofreu 3 mortos confirmados e mais baixas prováveis e as NT 5 feridos ligeiros. Insistindo numa acção sobre o UNAL foi montada a Op. “OUSADIA SATÂNICA”, segundo a direcção N/S a partir de BUBA, que não resultou por não haver guias para aquela região e por o terreno nesta época de chuvas intensas e contantes afectar extraordinariamente a possibilidade de progredir e mesmo de orientação.

Não obstante a quantidade enorme de colunas auto que houve que fazer a BUBA para levar o BCAÇ 3852 e trazer o BCAÇ 4516 com todos os seus materiais, e não obstante ainda o treino operacional do BCAÇ 4516 hipotecar efectivos apreciáveis deste BCAÇ, procurou-se estender os nossos patrulhamentos a quase todas as regiões do Sector e montar emboscadas nos locais propícios tendo no dia 12AGO, a 1.ª CCAÇ interceptado uma coluna de reabastecimentos e provocado baixas não estimadas, capturando 3 elementos da população.

Referem-se como actividades mais importantes:

AGO73/02 – Em 0208AGO73 GR IN estimado em 100 / 120 elementos flagelou as NT quando durante a acção “OUSADIA” pretendíamos atravessar um pontão sobre o R. HABI próximo de LENGUEL. Do contacto resultou que o IN sofreu 3 mortos confirmados e outros mortos e feridos prováveis, tendo as NT sofrido 5 feridos ligeiros. O pontão referido foi destruído pelo IN, impossibilitando a passagem do R. HABI.

[Sobre os nossos “feridos ligeiros” cabe dizer que, alguns, não eram assim tão ligeiros: houve um alferes – já não recordo de que Companhia -, que ficou bastante ferido num olho com a terra projectada pelas rajadas no chão e, um dos muitos adolescentes civis que fazia de carregador, mesmo ao meu lado, ficou com uma mão furada de um lado ao outro].

Mapa da região de Cumbijã com referências ligadas à operação “Ousadia”

Das minhas memórias:

2 de Agosto de 1973 - (quinta-feira) – Ousadia insana a caminho do Unal; O meu 5.º confronto.

Estava em marcha a operação de maior envergadura em que participei. O destino era o Unal, considerado por muitos como um “santuário” do PAIGC. Mas esta operação também era considerada por alguns como uma aventura condenada ao fracasso, desde logo pelo modo de deslocação das tropas para o Unal, apeada e em fila indiana pelo interior da mata, e pela época do ano em que se realizou. Todavia, estávamos ali homens e armamento, por certo, capazes de assaltar com sucesso aquela base, ainda que, certamente, à custa de muitas baixas.

Assim, mal passámos a ombreira da porta, e eis que nos fazem uma espera do outro lado rio barrando-nos o avanço. É certo que, para chegar ali, tínhamos andado metade do caminho para o Unal mas, em termos de dificuldades, ainda estávamos a sair de casa.

O início do confronto foi bastante desigual, pendendo para eles a vantagem de estarem à nossa espera do outro lado do Rio Habi, com todo o dispositivo apto a atacar, e tendo à sua frente o campo aberto da bolanha. E fizeram-no quando os nossos da frente atravessavam essa bolanha em direcção ao rio, após terem saído da mata, por onde se prolongava um cordão humano desmesurado mas sem condições para reagir. Até que conseguíssemos trazer para a orla da mata os morteiros e bazucas dos primeiros grupos, eles iam alvejando a frente da coluna e dispersando pela mata as suas granadas, que rebentavam um pouco por todo o lado de mistura com rajadas de armas automáticas. Quando abrandou o ataque e eles começaram a debandar, concentrámos na orla a maioria dos morteiros de 60 e 81 mm e as bazucas das nossas forças, batendo a retirada deles quase até ao esgotamento das munições.

Pela primeira vez senti que, por um triz, me vazavam o crânio, obrigando-me a assistir ao resto do confronto lá de cima, junto dos anjinhos... Estava de pé, espalmado numa árvore a cerca de uma dezena de metros da orla da mata, tentando descortinar movimentos e posições do outro lado do rio. A folhagem dessa árvore roçava-me a cabeça e quase me ocultava a cara. Num instante, o zunir de uma rajada cortou essa folhagem e fê-la cair por mim abaixo, e eu atirei-me instintivamente para o chão com a garganta numa secura. Outros tiveram menos sorte e saíram feridos, principalmente na bolanha.

A meio da manhã e quase sem munições para os morteiros e com feridos, é feito um contacto para o Comando dando conta das dificuldades. Mandaram-nos aguardar para avaliarem a situação. A demora na chegada de ordens pareceu-me um acto punitivo, mas talvez fosse só o tempo de conferenciarem com o Comando-Chefe... Finalmente mandaram-nos regressar mas, à chegada a Cumbijã, como um balde de água fria, recebemos a informação de que sairíamos cedo no dia seguinte para Buba em viaturas, a fim de relançar a operação a partir daí com o mesmo objectivo mas com o nome melhorado. No estado físico em que me encontrava, tal como a maioria -, perante essa perspectiva, senti-me desfalecer.

“Ousadia Satânica”: estava muito bem posto o nome da operação seguinte. Mas já não era para mim.


Da História da Unidade do BCAÇ 4513: 

AGO73/04 – Em 041710AGO73, forças da CCAV 8351, encontraram na região (GUILEGE 3 I 6-64) o seguinte material:
7 GR/RPG-7; 10 GR/RPG-2; 3 GR/LGF; 2 tambores/armas autom.; 7 cargas/RPG; 4 minas A/Pess; 5 disparadores MUV; 6 cargas de trotil para minas A/pess; 2 cartuchos/GR MORT; 1 espoleta M6 BIU 17-68.

 - Op. “OUSADIA SATÂNICA”

Depois de se concentrarem em BUBA as três CCAÇ/BCAÇ 4513 durante o dia 3AGO, no dia 4 deu-se início à operação que visou atingir o UNAL, progredindo na direcção N/S. Foi ainda empenhada nesta operação um agrupamento do BCAÇ 3852 constituído por 2 GR COMB/CCAÇ 3398 mais 1 GR/COMB/CCAÇ 3400, [estas tropas do BCAÇ 3852 com a comissão mais do que terminada, relembro eu], destinado a fazer base temporária em BOLOLA, para colaborar nas evacuações e nos reabastecimentos das nossas companhias.


Das minhas memórias:

4 de Agosto de 1973 – (sábado) – Estadia forçada em Buba; O caso do 1.º Cabo Artilheiro.

Excluindo o curto período em que estive em Nhala a comandar a Companhia, pela primeira vez não acompanhei o meu grupo numa saída para o mato, neste caso na famigerada operação Satânica. Não que tivesse paludismo, micoses ou matacanha, mas porque estava no limite das forças: astenia, somente... Aquilo não era para meninos, repito, e a meu favor só tinha a idade. Como eu ficaram muitos em Buba, com as maleitas mais diversas. E o meu grupo saiu muito desfalcado para a operação, comandado pelos meus dois furriéis, valorosos e sempre prontos, e a quem devo enorme gratidão para além do apreço e reconhecimento que sempre tive.

Chegados de véspera a Buba, deve ter sido enorme o reboliço para acomodamento de todas as companhias, para o rastreio dos inoperacionais, para os detalhes da logística, enfim..., não recordo nada disso, tão pouco a saída das tropas para a operação mas, estranhamente, a ansiedade pelo que poderia acontecer lá longe, a sensação de vazio após a saída das tropas e o sentimento desconfortável, a roçar o remorso de ter ficado, nunca mais esqueci. Um ou outro episódio menor, também ficou para sempre, como aquele incidente com o Major D. M., mais um, quando me cruzei com ele junto das camaratas dos graduados. Cruzámo-nos, cumprimentámo-nos, ainda demos uns passos mas depois ele parou e chamou-me para implicar com a minha barba de vários dias. Incrédulo, ainda me tentei justificar com a operação de anteontem, o ter vindo para Buba para nova operação, obviamente sem apetrechos de barba porque não vinha em lazer, enfim, já muito zangado rematei com uma exclamação agressiva e pouco ortodoxa que me coíbo de reproduzir aqui. Áspero, interrompeu-me o fluxo de atoardas:
- Faça a barba imediatamente e apresente-se no meu gabinete!

E eu não tive outro remédio, senão ainda me iam pôr lá onde decorria a operação... A verdade é que sempre fui avesso aos exageros dos regulamentos militares, embora me esmerasse no aprumo quando nada justificasse o contrário, assim como no zelo e no empenho da minha actividade. Mas fora da tropa nunca aceitaria uma ordem daquelas nem a maior parte do que vem expresso no RDM, onde existe matéria a rodos que é ofensiva da dignidade, sobretudo para quem integra as Forças Armadas por ser obrigado. Ainda assim, pela minha falta de correcção, renovo publicamente o meu pedido de desculpas ao Sr. Major.

Um outro episódio que nunca mais esqueci, passou-se em Bissau em Agosto de 1974, um ano depois destas operações, mas que sempre relacionei com Buba e com o fracasso destas e de outras operações. Então, começando por Buba: enquanto decorria a operação “Ousadia Satânica”, eu almoçava na messe com outros militares quando vieram interromper o almoço ao Major D. M. para que ele fosse ao posto de rádio com urgência. Se não me trai a memória, neste e noutros detalhes, tenho ideia que entrou em acção o obus 14 ainda no decorrer do almoço e todos perceberam a urgência do apelo e que algo estaria a correr mal lá para os lados da operação. Possivelmente pediram para ser batidos com obus pontos concretos da região.

Em Bissau, na data referida acima, eu encontrava-me a aguardar avião para as derradeiras férias na Metrópole. Quase noite, deambulava sozinho nos limites da cidade, na estrada que ia para o aeroporto, quando entrei num bar – ou café? -, para comprar tabaco ou beber uma cerveja, já não recordo. Só depois de ter entrado me apercebi do ambiente penumbroso e pouco acolhedor. Já um pouco incomodado encostei-me ao balcão para pedir qualquer coisa com a intenção de não demorar ali. A algazarra nos fundos escuros do estabelecimento fez-me virar o olhar e perceber que os clientes eram todos guineenses ainda jovens. Depois de os olhar fiquei com a sensação de que começaram a sussurrar e, de facto, logo a seguir, um levantou-se e disse de lá:
- Alferes Murta!

Olhei de novo mas meio perplexo, pois estava à civil e porque não reconheci ninguém naquela obscuridade. Então o indivíduo dirigiu-se para mim e, com ar de quem reencontra um amigo amnésico, perguntou:
- Então não me reconhece de Buba? Eu conhecia-o bem de Buba. Eu era 1.º Cabo do obus de lá, não se lembra de mim?

Claro que não lembrava. Disse-lhe que não era de Buba embora por lá passasse às vezes, mas aquela intimidade começou a deixar-me mal disposto. Mesmo assim, ainda encetámos uma conversa que eu queria que fosse breve, não lhe dando grande saída. Falou do aquartelamento, dos nomes de militares que ele referia como se fossem todos íntimos, lugares comuns sobre a tropa e, de súbito, orgulhoso e como se fizesse uma declaração que ia agradar aos dois, diz-me que era e que sempre fora membro do PAIGC. Tive um sobressalto e pus-me em guarda, ainda na dúvida de que fosse tudo bazófia. E se não fosse? Que acções teria executado em obediência ao PAIGC e em prejuízo das nossas tropas? Não cheguei a saber porque a conversa descambou: começou-se a falar das tropas especiais e dos pelotões de milícia que tinham combatido ao nosso lado e eu, conhecedor de que muitos destes se recusavam a entregar as armas, vergonhosamente abandonados pelas autoridades portuguesas, - militares e políticas -, quis saber o que pensava sobre a resolução deste problema que iria afectar milhares de combatentes guineenses. (Quando embarquei para Portugal o assunto estava longe de estar resolvido). Respondeu-me que os chefes dessas revoltas seriam todos fuzilados, mas que não iriam fazer mal a mais ninguém. Já fora de mim disse-lhe que a sorte desses combatentes era que a opinião dele não contaria para nada, era nula, revanchista e primária. Julgo que ainda lhe perguntei se o que acabara de dizer fazia parte da ética e dos princípios, dos lemas e das palavras de ordem do PAIGC, mas eu já só queria era virar-lhe as costas e sair dali. E foi isso que fiz.

Mas todos sabemos o que aconteceu. Este incidente, não tendo abalado em nada as minhas convicções, até por ter envolvido um actor insignificante, foi como que uma premonição. Mantenho as convicções, mas ficou definitivamente abalada a minha confiança nas causas aparentemente nobres, passando a considerar ao mesmo nível os responsáveis dessas causas e o indivíduo que se dizia 1.º Cabo de Buba.

Segue-se uma série de fotografias de Buba (reproduções de slides) provavelmente todas de 1974, e que podem agradar aos muitos camaradas que antes de mim por ali passaram.

Foto 1: Entardecer em Buba vendo-se o rio ao fundo. 

Foto 2: Entardecer em Buba: Vista do aquartelamento a partir do rio. 

Foto3: Passeantes ao fim da tarde. 

Foto 4: Idem. 

Foto 5: Menino de Buba e tabanca. 

Foto 6: Um aspecto da tabanca. 

Foto 7: Monumento do Pelotão de Morteiros 2138 – BC 10 / Jullho69 – Junho71. 

Foto 8: Instalações que me parecem ser o refeitório de oficiais e abrigo. 

Foto 9: Bar de oficiais e camaratas. 

Foto 10: O meu grupo de combate frente à capela numa desfocagem posterior ao 25 de Abril/74.

(continua)

Texto e fotos: © António Murta
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Nota do editor

Último poste da série de 1 de setembro de 2015 > Guiné 63/74 - P15062: Caderno de Memórias de A. Murta, ex-Alf Mil da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4513 (18): De 8 a 21 de Julho de 1973

Guiné 63/74 - P15086: Inquérito online: "No meu tempo já se falava da existência de aviões inimigos sob os céus da Guiné"... Primeiro comentário: "Quando estive no Depósito de Adidos, em Brá, na secção de justiça, em finais de novembro de 1973, lembro-me de chegarmos a receber informação para estarmos preparados para a eventualidade de um ataque aéreo"... (Augusto Silva Santos, ex-fur mil, CCAÇ 3306 / BCAÇ 3833, Pelundo, Có e Jolmete, 1971/73)

A. Mensagem enviada ontem pelo correio interno da Tabanca Grande:

Camaradas:

Bom regresso ao blogue, para quem foi a "banhos" e andou por aí, pelo mundo pequeno, sem sequer mandar um bate-estradas ao pessoal da Tabanca Grande... Alguém teve que ficar a tomar conta do poilão e das moranças...

E falando em regresso, que tal falarmos sobre MiG[ues] e outras coisas esquisitas que, dizem, já no nosso tempo cruzavam o céu da Guiné ?... Quem diz  é o José Matos (*), que é o nosso grã-tabanqueiro nº 701 [, foto à direita,], e é "expert" em história da aviação militar e da nossa guerra...  Ou melhor: dizem as fontes que ele consultou nos arquivos...

De qualquer modo, ele já não é o último grã-tabanqueiro, estamos já no nº 702...

Pois, convidamo-os, a vocês todos, camaradas,  a dar uam vista de olhos ao primeiro dos seus quatro artigos sobre a "ameaça dos MiG"... E depois respondam à sondagem (no canto superior esquerdo do blogue)... Aguardamos respostas até 14 do corrente...  A respostas é sim ou não:
  
SONDAGEM: "NO MEU TEMPO,  JÁ SE FALAVA DA EXISTÊNCIA DE AVIÕES INIMIGOS NOS CÉUS DA GUINÉ"

1. Sim, já se falava

2.  Não sei / não me lembro
 
3. Não, não se falava

B. Uma primeira resposta (ou melhor, comentártio) que nos chegou, é do Augusto Silva Santos (ex-fur mil,  CCAÇ 3306/BCAÇ 3833, Pelundo, Có e Jolmete, 1971/73):


Data: 7 de setembro de 2015, 23h17


Olá Luís, Boa Noite!


Espero que esteja tudo bem contigo.

Relativamente a este assunto, aproveito para recordar que, aquando da minha apresentação ao blogue em Setembro de 2010, na parte final da mesma fiz o seguinte comentário:

"Lembro-me que nos finais de 1973 era já grande a tensão entre as NT. O facto de o PAIGC já possuir os mísseis terra-ar que passaram a ser o terror da FAP  (começámos a não ter um efectivo apoio aéreo nas diversas missões) estava a ser determinante. 

"Também me recordo de Bissau começar então a ser cercada de arame farpado e da colocação de minas nalgumas zonas da sua periferia, e de nos ter sido comunicada a possibilidade de podermos vir a sofrer em qualquer altura um ataque aéreo, por constar que o IN já possuía os famosos MiG. O fim estava próximo."

Algumas pessoas na altura não concordaram com estas minhas afirmações, mas posso afiançar que, estando eu na altura colocado no Depósito de Adidos,  em Brá [, mais extamente, na Secção de Justiça,] , já na parte final da minha comissão,  em finais  de Novembro de 1973, chegámos a receber informação para estarmos preparados para a eventualidade de um ataque aéreo por estarmos relativamente perto da Base Aérea de Bissalanca. 

Não se tratou de qualquer boato. Houve até uma pequena reunião para oficiais e sargentos, onde se falou que iríamos receber instruções para o efeito. 

Até ao dia 22 de Dezembro, altura em que terminei a comissão e regressei à Metrópole, tal não se verificou. Desconheço se posteriormente essas mesmas instruções vieram ou não a acontecer. Importa ainda salientar que na altura alguns camaradas do COMBIS, que ficava ali mesmo ao lado, também confirmaram que haviam sido alertados para a hipótese de um ataque aéreo.

Não tendo sido uma comunicação oficial no sentido correcto da palavra (não nos foi passado nada escrito), pelo menos tratou-se de uma comunicação oficiosa, como se costuma dizer. Ou se quisermos, de um alerta.

Um Abraço
Augusto Silva Santos

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Nota do editor:


(...) No dia 26 de Julho de 1963, um caça português F-86F Sabre destacado na Guiné fazia um voo de teste na região do rio Corubal. A bordo do aparelho, o piloto esperava um voo calmo e sem incidentes, contudo, tem um encontro imprevisto. Enquanto testa o Sabre, avista à distância um jacto desconhecido e, quando muda de rota para tentar verificar a identidade do avião, este foge rapidamente, não permitindo a sua identificação. A única coisa que consegue perceber é que se trata, provavelmente, de um MiG ao serviço da Força Aérea Guineana (FAG) (...).

Guiné 63/74 - P15085: FAP (86): a ameaça dos MiG na guerra da Guiné (José Matos, Revista Militar, nº 2559, abril de 2015) - Parte III




1. Continuação da publicação do artigo do José Matos, "A ameaça dos MIG na guerra da Guiné", Revista Militar, nº 2559, abril de 2015, pp. 327-352 > (*)

por José Matos

[, membro da nossa Tabanca Grande, nº 701; investigador independente em história militar,com particuolar interesse pela guerrano TO da Guiné]

(Continuação) 

Pilotos guerrilheiros

No dia 2 de Agosto de 1973, o jornal inglês Daily Telegraph dá conta de que o PAIGC está a treinar pilotos na União Soviética para usar aviões MiG, a partir da Guiné-Conakry, em possíveis ataques contra a colónia portuguesa. Num artigo assinado pelo correspondente em Lisboa, o jornalista Bruce Loudon, é referido que o PAIGC “está apenas a seis meses de atingir uma capacidade de ataque aéreo com caças MiG russos”. O jornalista refere também que cerca de 40 guerrilheiros estão a frequentar cursos de pilotagem na Rússia, baseando toda a notícia em fontes portuguesas [59].

A própria Direcção Geral de Segurança (DGS) na Guiné recolhe informações no mesmo sentido, dando conta que a guerrilha tem intenção, durante o Natal e o Ano Novo, de usar os MiG em bombardeamentos contra alguns aquartelamentos portugueses, no sul da Guiné. No entanto, a DGS revela, na mesma informação, que a fonte da notícia acredita que o PAIGC não vai usar meios aéreos e “que se vão servir dos aviões apenas para encorajar os terroristas” [60].

O comandante da ZACVG, agora sob o comando do Coronel Lemos Ferreira, revela também preocupações a este nível e, em finais de Novembro de 1973, escreve ao CEMFA referindo a possível existência de voos de reconhecimento senegaleses na fronteira norte e de eventuais patrulhamentos de aviões MiG-15 eMiG-17 da Guiné-Conakry, na fronteira sul e leste, embora nunca se consiga confirmar qualquer destes voos visualmente. Este oficial reporta também a possibilidade da guerrilha tentar eliminar duas guarnições de fronteira, uma no leste (provavelmente Buruntuma) e outra no sul, talvez Gadamael, dada a posição dominante que ocupava na chamada península de Cacine.

Lemos Ferreira salienta ainda que estas acções podem ser apoiadas por aviões MiG vindos de Conakry, o que leva o comandante da ZACVG a pedir urgência no equipamento dos Fiat com mísseis Sidewinder [61]. Apesar da insistência neste tipo de arma, a verdade é que já, em 1970, tinham sido testados nas OGMA mísseis Sidewinder no G-91 e os resultados tinham sido insatisfatórios. O Fiat não era um avião adequado para combater um MiG, embora os pilotos portugueses tivessem mais treino e mais experiência em combate do que os guineanos ou os cubanos, o que era uma vantagem em caso de confronto.

Incursões de MiG na Guiné


Em Setembro de 1973, o comandante da FAG, Capitão Adduramán Kamara, decide fazer um voo de reconhecimento dentro do território da Guiné. A intenção é comunicada aos pilotos cubanos, que começam a preparar a incursão com grande cuidado, pois não pretendem encontrar aviões portugueses no caminho [62].

 Em meados de Setembro, dois caças MiG-17F partem de Conakry, rumo à fronteira com a Guiné, tendo aos comandos um piloto guineano e um cubano. Os aviões voam sem oxigénio para o piloto, o que não permite subir a grande altitude para poupar combustível. O voo é seguido de perto pelo radarP-12 instalado em Kamsar e operado por especialistas cubanos. Os aviões seguem em direcção a Bafatá, no sul da Guiné, onde fazem um reconhecimento visual a baixa altitude. No regresso a Conakry são alertados pelo pessoal do radar que uma parelha de Fiat G-91 levantou voo de Bissalanca, mas os caças portugueses não conseguem alcançar os MiG, que aceleram até aos 1000 km/h voltando em segurança à base de partida, onde chegam já sem combustível para grande susto dos pilotos [63].

Pouco tempo depois, em Novembro, surgem novas informações da DGS da Guiné sobre uma possível ameaça aérea vinda do próprio PAIGC. A 9 de Novembro, a DGS divulga a informação de que, no aeroporto da capital guineana, estão ao serviço da guerrilha “12 aviões de guerra, 12 helicópteros (…) e 80 bombas de avião, sendo 4 de tamanho maior, com um raio de acção de cerca de 500 metros, destinadas a serem lançadas sobre Bissau”. 

A informação refere ainda que os bombardeamentos estão previstos para 20 de Janeiro de 1974 (data do primeiro aniversário da morte de Amílcar Cabral), e que, em Conakry, estão também “8 pilotos de aeronaves, sendo 2 russos, 2 alemães, 2 chineses e 2 ingleses, a fim de ministrarem instrução de pilotagem a elementos do PAIGC que, para o efeito, foram seleccionados entre os que possuíam melhores aptidões físicas e literárias”[64]. 

A 16 de Novembro, a DGS informa que o regime guineano recebeu, recentemente, 41 aviões MiG-19 e alguns carros blindados que pôs à disposição do PAIGC. Os aviões foram colocados em Sarebódio, na Guiné-Conakry, e os carros blindados em Sembali, no Senegal [65]. Sabe-se hoje que a informação era exagerada, pois a FAG não dispunha do MiG-19, nem de um número tão elevado de caças.

No início de Dezembro, é a vez do quartel de Buruntuma, perto da fronteira leste da Guiné, receber a visita dos MiG da FAG. Dois caças sobrevoam e picam sobre o quartel, retirando depois em direcção ao país vizinho. O comando da ZACVG transmite esta informação à Secretaria de Estado da Aeronáutica (SEA) e manda a Buruntuma o Tenente-Coronel Vasquez para esclarecer a situação[66]. 
As averiguações feitas no local por este oficial sugerem a possibilidade de serem aviões MiG-19 e o comando da ZACVG pede à SEA que seja realizado um esforço de pesquisa no sentido de confirmar ou não a existência doMiG-19 na República da Guiné, bem como origem do mesmo, tripulações respectivas, número de aviões e pilotos [67].

Em meados de Dezembro, são aduzidas pela ZACVG novas informações sobre os meios aéreos do país vizinho. Um informador guineense relata a existência de seis a doze MiG-21 na base de Conakry, com pilotos russos e guineenses, levantando também a possibilidade de estar a decorrer um curso de adaptação a este avião para os pilotos da República da Guiné. O informador refere ainda que a base possui abrigos enterrados para a protecção de aviões e que Luís Cabral tem insistido junto da Rússia para que sejam “acelerados os cursos de formação de 10 a 12 pilotos do PAIGC previstos terminarem no início de 1974”. Mais uma vez, a ZACVG pede à SEA que seja efectuado um esforço de pesquisa, no sentido de determinar o grau de veracidade destas informações [68]. Mais uma vez, a informação era exagerada, pois, nem o MiG-21 nem o MiG-19, faziam parte do inventário da FAG.

Este fluxo de informação vai chegando ao Governo, em Lisboa, e Marcelo Caetano percebe que o uso de aviões de combate pela guerrilha pode tornar a Guiné indefensável. Preocupado com a situação na colónia, Caetano dá indicações para “fazer-se o impossível por dotar a Guiné de eficaz defesa antiaérea”, o que leva o Ministério da Defesa a acelerar os planos de aquisição de mísseis e radares e a procurar junto do Ministério das Finanças um financiamento extra para tais aquisições [69]. 

Bandeira da África do Sul, de 1928 a 1994...
Cortesia de Wikipedia
Aproveitando as óptimas relações que tem com o regime sul-africano, é junto de Pretória que Portugal obtém o dinheiro necessário para reforçar o seu poder militar.

O apoio sul-africano

Ao longo da guerra, Portugal estabelece com o regime branco de Pretória uma cooperação política e militar muito estreita. A permanência portuguesa na África Austral é extremamente importante para os sul-africanos, pois sabem que, se Portugal deixar Angola e Moçambique, a África do Sul ficará cercada de inimigos hostis ao apartheid e à presença sul-africana na Namíbia. Por seu turno, Portugal vê na África do Sul um aliado poderoso, capaz de fornecer apoio militar, político e financeiro à luta que as forças portuguesas travam em África.

É neste ambiente de cooperação que o Ministério da Defesa português discute com o seu congénere sul-africano a possibilidade de um empréstimo considerável da ordem dos 150-160 milhões de rands para a compra de material militar destinado ao Exército e à Força Aérea [70].

 Em Janeiro de 1973, o ministro Viana Rebelo envia ao ministro sul-africano da Defesa, P.W. Botha, duas listas de material de guerra: a lista I, respeitante a equipamentos a serem cedidos pela África do Sul para satisfazerem as necessidades mais urgentes das tropas portuguesas em Angola e Moçambique, e a lista II, respeitante a materiais a adquirir mediante um empréstimo sul-africano [71]. Na lista do material a ceder são incluídos dois pelotões de mísseis Crotale, enquanto na lista do material a financiar aparece uma esquadrilha de vinte aviões Mirage V por 1,6 milhões de contos (49,6 milhões de rands). O valor total do financiamento ascende a 5,147 milhões de contos (159,6 milhões de rands).

A 30 de Maio de 1973, P.W. Botha encontra-se em Lisboa com Viana Rebelo e o assunto dos Crotale é discutido entre os dois ministros. Durante as conversações, Botha reconhece que o míssil ainda está numa fase experimental e que o preço doCrotale ainda é demasiado elevado, devido ao facto da África do Sul ser até aquela data o único comprador do míssil e que “se Portugal deseja adquirir directamente em França podê-lo-á fazer contactando com a empresa Thomson” e sendo “Portugal um membro da NATO poderá ajudar promovendo compras que contribuirão para o embaratecimento do sistema” [72]. Desta forma, o Crotalepassa para a lista II de material a financiar e Lisboa contacta directamente os franceses para a compra do sistema.

No entanto, as negociações para o empréstimo só começam no final de Agosto de 73, em Pretória, sendo concluídas no final do ano. Finalmente, em Março de 1974, é assinado um acordo de empréstimo de 150 milhões de rands (6 milhões de contos) entre Portugal e a África do Sul, para a compra de material de guerra, em prestações mensais de 5 milhões de rands [73]. É o dinheiro de Pretória que permite a Lisboa obter os novos meios de defesa para a Guiné, nomeadamente os mísseis Crotale e o Mirage, embora este último nunca chegue a ser adquirido [74].

Entretanto, a 29 de Setembro, o General Bethencourt Rodrigues, assume na Guiné as funções de governador e comandante-chefe, em substituição do General Spínola. Bethencourt Rodrigues reconhece de imediato que a mais perigosa ameaça que as forças portuguesas poderão ter de enfrentar na Guiné será o aparecimento de uma Força Aérea do PAIGC, capaz de actuar “contra a FAP para obter a sua total anulação, contra forças ou guarnições militares ou contra povoações com especial incidência sobre Bissau e o seu porto”. Desta forma, considera que é indispensável dotar o mais rapidamente possível aquela colónia de “uma defesa AA eficaz com base em mísseis modernos”, além de “dispor de uma força aérea de ataque e retaliaçãoeficiente, possivelmente com base na ilha do Sal” e “ter uma aviação de transporte (helis e aviões ligeiros) que confira às suas unidades grande mobilidade” [75].

As negociações com os americanos

Aproveitando as negociações em curso com Washington para a renovação do acordo das Lajes e as facilidades concedidas durante a guerra de Yom Kippur, em que a base dos Açores teve uma importância fundamental no apoio militar a Israel, o governo português tenta obter junto dos americanos mísseis terra-ar para a defesa da Guiné [76]. A intenção é comprar mísseis portáteis FIM-43A Redeye e também mísseis Hawk [77]. Mas, devido ao embargo de armas que existe contra Portugal, a diplomacia americana tenta fornecer os mísseis através de um terceiro país, Israel. O próprio Henry Kissinger envolve-se na questão e, a 9 de Dezembro de 1973, encontra-se com o Ministro dos Negócios Estrangeiros português, Rui Patrício, em Bruxelas, à margem de uma reunião da OTAN, e promete-lhe que os mísseis vão ser fornecidos usando Israel como intermediário, pois o Congresso americano jamais aprovaria uma venda directa [78].
FIM-43 Redeye: um lançador portátil 
de mísseis terra-ar ...
Cortesia de Wikipedia... [Edição: LG]
A 11 de Dezembro, o embaixador português nos EUA, João Hall Themido, encontra-se com o seu colega israelita em Washington, seguindo uma indicação dada alguns dias antes, por William Porter, Subsecretário de Estado para Assuntos Políticos [79]. Simcha Dinitz agradece a ajuda portuguesa durante a guerra de Yom Kippur, mas, na conversa que tem com Themido, afirma que não é “técnico militar”, e que lhe parece que os únicos mísseis que Israel dispõe são os Hawk e que não sabe se o seu governo pode vender a Portugal material militar de origem americana, mas que vai procurar saber [80].

Dois dias depois, Themido fala com o encarregado de negócios da embaixada israelita, que lhe assegura que, embora Israel tenha mísseis Redeye e Hawk, os mesmos não podem ser fornecidos sem o consentimento americano e que a única coisa que Telavive pode fazer é vender material de origem israelita, caso isso seja considerado útil [81]. A resposta israelita deixa Themido insatisfeito e de Lisboa recebe instruções para esclarecer o assunto junto de William Porter [82].

A 15 de Dezembro, o embaixador português encontra-se com Porter no Departamento de Estado e este diz-lhe que tinha apenas sugerido ao embaixador israelita que, em contacto com Themido, averiguasse da disponibilidade de material de guerra e da possibilidade de fornecimento, mas nada mais do que isso. Mais tarde, num telefonema para a embaixada portuguesa, chega mesmo a dizer que, nos contactos que tinha tido com Dinitz, apenas lhe tinha dito que Portugal estava interessado em adquirir mísseis terra-ar, não admitindo que tivesse sugerido a entrega a Portugal de mísseis americanos [83].

O assunto vai-se, assim, arrastando até que, em 8 de Fevereiro de 1974, o secretário de Estado Adjunto, Kenneth Rush, chama o embaixador português para lhe comunicar que os EUA não podiam fornecer os mísseis Redeye, pois, por um lado, eram contra a proliferação desse tipo de armamento, estando em conversações com Moscovo para limitar a difusão de armas MANPADS (“Man-Portable Air Defense Systems”) e, por outro, os mísseis “seriam usados no plano interno na luta contra as guerrilhas, o que era inaceitável”. Em relação aos Hawk teriam de consultar o Congresso, caso Portugal concordasse com essa consulta [84].

Esta tomada de posição americana leva o governo português a considerar seriamente o fim da utilização da base das Lajes por parte dos EUA, uma intenção que é comunicada por Themido a Rush, a 18 de Março. Rush fica obviamente surpreendido com tal intento e considera extemporânea tal decisão e promete ajudar Portugal fora do campo militar, pois se, “na parte militar, os auxílios dos Estados Unidos eram necessariamente limitados, na parte económica e técnica certamente haveria possibilidades ainda não exploradas” [85].

A intenção portuguesa chega ao conhecimento do próprio Kissinger que, a 11 de Abril, escreve a Rui Patrício reforçando as palavras de Rush quanto a uma cooperação em áreas não militares, pedindo ao ministro português sugestões a esse nível, e mantendo o interesse americano em continuar a usar as Lajes [86]. Embora não faça qualquer referência na carta à questão dos mísseis Redeye, a verdade é que o secretário de Estado americano acelera o processo de venda dos mísseis por canais tortuosos e, duas semanas mais tarde, os mesmos são colocados na Alemanha à disposição de Portugal [87]. A oferta é de 500 mísseis a serem fornecidos por Israel através de um intermediário alemão com a anuência americana [88]. O número de mísseis encomendado mostra que o Redeye não se destinava apenas à Guiné, onde as forças portuguesas necessitavam de cerca de 200 mísseis, mas também às restantes colónias. Os mísseis custam 209 mil contos, mas não há qualquer informação de que este valor seja coberto pelo empréstimo sul-africano [89].
Os mísseis já estavam na Alemanha Ocidental quando ocorreu a revolução de 25 de Abril. Nessa altura, o então Secretário-Geral do Ministério dos Negócios Estrangeiros, embaixador Calvet de Magalhães, que continuou em funções após a queda do regime, informou o general Costa Gomes, novo CEMGFA, do negócio dos mísseis, tendo Costa Gomes ordenado o cancelamento da operação [90].

(Continua)

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Notas do autor:

[59] Bruce Loudon, “Portuguese rebels to get Russian MiGs”, Daily Telegraph, 2 de Agosto de 1973, ADN/SGDN Cx. 3500.

[60] Relatório nº 2919/73 da DGS Guiné, 26 de Dezembro de 1973, Arquivo da PIDE/DGS processo 641/61, PAIGC, pasta 10, fls 41 e 82.

[61] Carta do Comandante da ZACVG para o CEMFA, Bissau, 27 de Novembro de 1973, ADN/F3/17/35/15.

[62] Hernández, op. cit., pp. 138-139.

[63] Hernández, op. cit., pp. 145-151.

[64] Informação nº 1.245-2ª. D.I. da DGS Guiné, Assunto: Meios Aéreos do PAIGC, 9 de Novembro de 1973, Arquivo da PIDE/DGS, Processo 641/61, PAIGC, pasta 9, fls 102-104.

[65] Relatório imediato nº 2540/73-DSInf-2 da DGS Guiné, Assunto: Apoio ao PAIGC, 16 de Novembro de 1973, Arquivo da PIDE/DGS, Processo 641/61, PAIGC, pasta 9, fls 123-124.

[66] Telegrama n.º BE164DEC73 da ZACVG, 7 de Dezembro de 1973, ADN/F3/17/34/9 e PERINTREP n.º 49/73 do Comando-Chefe das Forças Armadas da Guiné (CCFAG), 2-9 de Dezembro de 1973, ADN/F2/2/14.

[67] Telegrama n.º BE168DEC73 da ZACVG, 10 de Dezembro de 1973, ADN/F3/17/34/9.

[68] Telegrama n.º BE176DEC73 da Zona Aérea de Cabo Verde e Guiné (ZACVG), 14 de Dezembro de 1973, ADN/F3/17/34/9.

[69] Caetano, Marcello, Depoimento, Rio de Janeiro, Record, 1974, p. 180.

[70] Informação nº 305/72 do Secretariado Geral da Defesa Nacional, Assunto: Lista de materiais a apresentar à República da África do Sul (RAS), 19 de Agosto de 1972, ADN F3/25/58/21.

[71] Carta do Ministro da Defesa Nacional para o Ministro da Defesa da RAS, com duas listas anexas, Janeiro de 1973, Arquivo Histórico Diplomático (AHD), PAA 1140.

[72] Informação nº 68/AU do Secretariado-Geral da Defesa Nacional/CCAU, Assunto: Lista I de Pedidos de Material apresentada à RAS – Artilharia Antiaérea – Mísseis Crotale, 6 de Setembro de 1973, ADN, Fundo Geral Cx.7623.

[73] Memorial sobre o acordo do empréstimo de 150 milhões de rands firmados com a RAS, Estado-Maior General das Forças Armadas (EMGFA), 18 de Setembro de 1975, ADN F3/20/48/64.

[74] Matos, José “A história secreta dos Mirage portugueses”, 2ª parte, Revista Mais Alto n.º 401, 2013, pp. 25-29.

[75] Estudo do CCFAG sobre a área do Boé, Secretariado-Geral da Defesa Nacional, Processo n.º 2202, Pasta A, ADN F3/17/34/4.

[76] Themido, João Hall, “Dez anos em Washington 1971-1981”, Publicações Dom Quixote, Lisboa, 1995, pp. 100-102.

[77] Telegrama do Ministério dos Negócios Estrangeiros para Embaixada de Portugal em Washington, Secção de Cifra, 13 de Dezembro de 1973, ADN/F3/14/29/4.

[78] Apontamento do Ministério dos Negócios Estrangeiros sobre a conversa do Ministro com o Secretário de Estado Americano, Dr. Kissinger, em 9 de Dezembro de 1973, Lisboa, 10 de Dezembro de 1973, ADN/F3/14/29/4.

[79] Telegrama da Embaixada de Portugal em Washington para o Ministério dos Negócios Estrangeiros, Secção de Cifra do MNE, 4 de Dezembro de 1973, ADN/F3/14/29/4.

[80] Telegrama da Embaixada de Portugal em Washington para o Ministério dos Negócios Estrangeiros, Secção de Cifra do MNE, 11 de Dezembro de 1973, ADN/F3/14/29/4.

[81] Telegrama da Embaixada de Portugal em Washington para o Ministério dos Negócios Estrangeiros, Secção de Cifra do MNE, 13 de Dezembro de 1973, ADN/F3/14/29/4.

[82] Telegrama do Ministério dos Negócios Estrangeiros para Embaixada de Portugal em Washington, Secção de Cifra do MNE, 14 de Dezembro de 1973, ADN/F3/14/29/4.

[83] Telegrama da Embaixada de Portugal em Washington para o Ministério dos Negócios Estrangeiros, Secção de Cifra do MNE, 15 de Dezembro de 1973, ADN/F3/14/29/4.

[84] Telegrama nº 95 da Embaixada de Portugal em Washington para o Ministério dos Negócios Estrangeiros, Secção de Cifra do MNE, 8 de Fevereiro de 1974, ADN/F3/14/29/4.

[85] Nota secreta da Embaixada de Portugal em Washington sobre as negociações para a renovação do Acordo dos Açores, Sessão de 18 de Março de 1974, ADN/F3/14/29/4.

[86] Carta de Henry Kissinger para o Ministro dos Negócios Estrangeiros português, 11 de Abril de 1974, ADN/F3/14/29/4.

[87] Themido, op. cit., p. 164.

[88] Themido, op. cit., p. 146.

[89] Nota nº 1229/AF/74 do Estado-Maior General das Forças Armadas para o Director-Geral da Contabilidade Pública, Assunto: Aquisição de conjuntos míssil-lançador “REDEYE”, 31 de Julho de 1974, ADN, Fundo Geral Cx. 833/9.

[90] José Calvet Magalhães, o 25 de Abril e as Necessidades, http://ebookbrowse.com/ca/calvet-de-magalhaes-pt.
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Nota do editor:

Postes anteriores da série > 

7  de setembro de 2015 > Guiné 63/74 - P15079: FAP (85): a ameaça dos MiG na guerra da Guiné (José Matos, Revista Militar, nº 2559, abril de 2015) - Parte II

6 de setembro de 2015 > Guiné 63/74 - P15077: FAP (84): a ameaça dos MiG na guerra da Guiné (José Matos, Revista Militar, nº 2559, abril de 2015) - Parte I

Guiné 63/74 - P15084: Efemérides (196): Homenagem aos Combatentes Limianos caídos ao serviço da Pátria, levada a efeito no passado dia 29 de Agosto, em Ponte de Lima (António Mário Leitão)

1. Em mensagem do dia 31 de Agosto de 2015, o nosso camarada António Mário Leitão, ex-Fur Mil (Farmácia Militar de Luanda, Delegação n.º 11 do Laboratório Militar de Produtos Químicos e Farmacêuticos, Angola, 1971/73), enviou-nos umaa reportagem da Cerimónia de Homenagem aos Limianos caídos em Campanha, levada a efeito no passado dia 29 de Agosto.


Caros Camaradas,

Aqui vos envio fotografias da memorável manifestação de respeito e saudade do dia 29 de Agosto, em que prestámos mais uma vez homenagem aos Mortos da Guerra do Ultramar nascidos em Ponte de Lima.

Foi, na verdade, uma jornada magnífica na qual participaram 200 e algumas mais pessoas (contadas no visionamento dos filmes e fotos).

A Igreja da Santa Casa da Misericórdia estava completamente cheia, numa Missa celebrada pelo Bispo da Diocese que, mais uma vez, leu o nome de cada um dos 52 sufragados (44 caídos em teatros operacionais e 8 no território continental, mas todos em serviço da Pátria).

O coro da Igreja de Santo António (Arcozelo) associou-se espontaneamente ao evento, bem como dois outros sacerdotes concelebrantes.

Estiveram presentes três coronéis do Exército e dezenas de ex-combatentes, muitos dos quais ostentavam as suas boinas, insígnias, medalhas e estandartes de associações. Muitos vieram de longe: Viana do Castelo, Vila Praia de Âncora, Monção, Braga, Guimarães, Porto, Matosinhos, Gaia, Amarante, etc.

Outros eram imigrantes que se encontravam cá de férias.

A jovem organista veio propositadamente de Lisboa!

O Ofertório foi comovente e muito significativo, tendo sido constituído por objectos pessoais dos Militares falecidos: artesanato, roupa, aerogramas, medalhas e louvores.

O ponto alto foi a oferta de um ramo de FLORES BRANCAS, significando as almas dos nossos Camaradas falecidos, depois de lavadas e perdoadas pelo Sangue de Cristo Redentor do Mundo.
O ofertante foi um menino de 4 anos, que espontaneamente se ofereceu no meio da assistência, quando um chefe de Escuteiros andava à procura de uma criança para o efeito. Foi uma comoção arrasadora, especialmente quando se soube que se chamava TOMÁS, exactamente o mesmo nome de seu tio-avô, um dos homenageados (Tomás Gomes de Oliveira, que se oferecera voluntário, vindo de França onde se encontrava legalizado!), pertencente à Companhia de Caçadores 4140, que operou em Moçambique.

Foi tudo uma feliz e espontânea coincidência?

Na cerimónia civil, junto ao Memorial dos Paços do Marquês, houve vários discursos, alguns deles merecedores de registo para a posteridade.

No final, sob a exaltação do camarada Raul Ferreira Pinto, fez-se uma homenagem aos Oficiais, Sargentos e Praças que ao longo dos séculos deram as suas vidas por Portugal.

Depois, cantou-se o Hino Nacional.

Foi lindo e memorável! Este dia ficará para sempre gravado nas mentes de uma dezena de crianças e jovens, alguns dos quais Escuteiros, que certamente ajudarão a passar esta mensagem para as gerações que lhes sucederem.

Grande abraço, camaradas!
António Mário Leitão

Missa celebrada pelo Bispo da Diocese, D. Aniceto Oliveira, na Igreja da Misericórdia de Ponte de Lima

Ofertório - O Tomás, de 4 anos, oferece flores brancas, como as Almas dos Heróis Limianos depois de purificadas por Cristo Redentor

Ofertório - Colaboração inexcedível dos Escuteiros

Provedor Dr. Alípio Matos

Coro da Igreja de Santo António da Torre Velha

Cortejo

Cortejo

Junto ao Memorial com a honrosa presença dos Bombeiros Voluntárias

Junto ao Memorial

Deputado da Assembleia da República Abel Baptista

Abílio Sá Lima e Coronel António Feijó

Coronel Artur Freitas

Veterano e poeta João Hilário Lima

Marisa, sobrinha do Herói Damásio Cervães (CCS/BART 6523), lendo uma carta do Comandante da Companhia de seu tio

Presidente da Câmara Municipal, Eng. Vítor Mendes

Veterano Raul Ferreira Pinto

Hino Nacional no final da Homenagem

Texto, fotos e legendas enviados pelo camarada António Mário Leitão
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Nota do editor

Último poste da série de 13 de agosto de 2015 > Guiné 63/74 - P15000: Efemérides (195): O Furriel Júlio de Lemos faleceu na Guiné no dia 12 de Agosto de 1965 (Mário Leitão, Ex-Fur Mil da Farmácia de Luanda)

Guiné 63/74 - P15083: Parabéns a você (960): Alberto Grácio, ex-Alf Mil Op Esp do BCAÇ 4615/73 (Guiné, 1973/74)

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Nota do editor

Último poste da série > 6 de setembro de 2015 > Guiné 63/74 - P15076: Parabéns a você (959): Mensagem de José Martins à tertúlia

segunda-feira, 7 de setembro de 2015

Guiné 63/74 - P15082: Tabanca Grande (473): José Vargues, ex-1.º Cabo Escriturário da CCS/BART 733 (Bissau e Farim, 1964/66), tertuliano 702

1. Mensagem do nosso camarada e novo tertuliano, José Vargues (ex-1.º Cabo Escriturário da CCS do BART 733, Bissau e Farim, 1964/66), com data de 3 de Agosto de 2015:

Estive em na Guiné de 1964/1966 como 1.º Cabo Escriturário do Comando da CCS.
Estive na Granja, depois em Brá e passado algum tempo fui para Farim num Dakota, com mais alguns camaradas.
Na secretaria estava a chefiar o Alferes Martins, o 1.º Sargento Guimarães e os 1.ºs Cabos Sancho, apelidado de "Almada" e o Alfredo, apelidado de "Andorinha".

Durante o tempo que estive em Farim, estive com mais 3 camaradas num quarto perto do aquartelamento.

Quero aqui relatar um caso que aconteceu comigo.
Uma noite que estava de Cabo da Guarda na guarita junto ao arame farpado, bastante longe do aquartelamento.
Levei comigo dois soldados nativos e escolhi fazer o 1.º turno.
Adormeci e acordei sobressaltado com os disparos feitos pelo Alferes Lopes da Tesouraria, para o mato através da vigia.
Ele levou as três armas e no outro dia estavam na Tesouraria. Ele nada referiu.

Aqui ficam os meus agradecimentos, mais uma vez.

Um abraço
José Vargues


 Parada em Farim. José Vargues assinalado pela seta


2. Comentário do editor:

Caro camarada Vargues, bem-aparecido na tertúlia onde hoje és recebido formalmente.
Como o mês de Agosto coincide com alguma acalmia no Blogue, deixei para agora a tua apresentação.
Não estranhes o tratamento informal por tu, uso entre nós, independentemente das nossas idades e de outras "diferenças".

Quanto à história que nos contas, o teu oficial andou muito mal porque não se deve em circunstância alguma tirar a arma a ninguém, muito menos a quem está de serviço. Há muitas maneiras de chamar a atenção e "castigar" o prevaricador se e quando necessário.

Embora, julgo eu, tenhas feito uma guerra mais calma, se tiveres algumas histórias, que não precisam ser de guerra, para nos contar, manda para as darmos a conhecer à tertúlia. Se mandares fotos, peço-te que o faças com mais resolução, já que a que nos mandaste, e eu publiquei, vinha só com 32KB. O tamanho ideal para uma boa edição é acima dos 100KB.

Em relação ao teu Batalhão, temos 17 entradas, clica aqui para acederes aos postes.
Há na tertúlia 4 camaradas que pertenceram ao BART 733:
Artur Conceição e João Parreira da CART 730;
António Bastos do Pel Caç Ind 953 e
Luís Camolas, que como tu fez parte da CCS.
Clica nos nomes para acederes às suas postagens.

Julgo que está dito o essencial pelo que te endereço um abraço de boas vindas em nome da tertúlia e dos editores.

O teu camarada e novo amigo
Carlos Vinhal
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Nota do editor

Último poste da série de 7 de Setembro de 2015 > Guiné 63/74 - P15080: Tabanca Grande (472): José Matos, investigador independente em história militar, filho do nosso falecido camarada José Matos, fur mil da CCAV 677 (Fulacunda, São João e TIte, 1964/66)... Novo grã-tabanqueiro nº 701

Guiné 63/74 - P15081: Notas de leitura (754): “Etnia, Estado e Relações de Poder na Guiné-Bissau”, por Carlos Lopes, Edições 70, 1982 (2) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 22 de Setembro de 2014:

Queridos amigos,
Carlos Lopes ao tempo é um ardoroso e talentoso pesquisador universitário, irá em seguida doutorar-se e receberá elogios encomiásticos.
A experiência juvenil pela política na recém-independente Guiné-Bissau amargou-o e ele irá ser um crítico frontal aos sonhos deturpados por Amílcar Cabral. É por isso que vale a pena ler ou reler este ensaio, a despeito de alguns dislates que me aprecem incompreensíveis para alguém que já sabia que a propaganda política é péssima conselheira da investigação científica. E é um documento de coragem, à distância de 30 anos o que é hoje um conceituadíssimo quadro da ONU portou-se com verticalidade e firmeza, deixou uma das raríssimas críticas que se produziram ao regime.

Um abraço do
Mário


Etnia, Estado e Relações de Poder na Guiné-Bissau (2), por Carlos Lopes

Beja Santos

“Etnia, Estado e Relações de Poder na Guiné-Bissau”, por Carlos Lopes, é um estudo universitário que não esconde pertencer à literatura comprometida. Ao tempo, 1980, Carlos Lopes, militante do PAIGC, interrogava-se sobre as transformações que tinham acompanhado a passagem da luta contra o poder colonial até à construção de um Estado moderno. Centrou a sua observação em primeiro lugar na etnicidade e relações de poder, o seu olhar pendeu para a evolução histórica dos Fulas no contexto das muitas sociedades verticais que coexistiam com as sociedades horizontais, isto para apreciar a economia comunitária e o modo de produção tributário; mais adiante, destacou as novas relações sociais surgidas após a luta armada, ao tempo em que a administração colonialista já estabelecera, se bem que rudimentarmente, um modo de produção capitalista. Desta racionalidade das etnias e do poder colonial, transferiu-se para a racionalidade do Estado, estamos a falar do PAIGC vitorioso que chegou a Bissau para ocupar o aparelho de Estado. O investigador procura tipificar os erros praticados para quem chegou da luta armada e tomou conta da administração em Bissau. A orgânica governamental revelou-se ineficaz, os princípios democráticos do PAIGC foram sistematicamente desprezados, chegava a hora dos conflitos de interesses, as lutas de classes, na sua ótica, manifestavam-se abertamente e a tentação colonial tomou conta de muitas decisões do aparelho da governação. O que fora um Partido-Estado-Exército fragmentou-se. Carlos Lopes insiste numa data significativa: 1977 teria sido o ano da viragem, a burocracia afastou a participação democrática. Luís Cabral, em 1979, tenta colocar os seus homens no seio da hierarquia militar.

E sintetiza a radicalização política de acordo com as seguintes manifestações: luta de tendências no seio do Partido; a não resolução do problema nacional; conflito entre o movimento de libertação nacional e a pequena burguesia comercial aliada aos funcionários coloniais; conflitos de interesse económicos. Entrara-se, sem quaisquer ilusões, num terreno de grandes clivagens entre a racionalidade étnica e a racionalidade do Estado. A via autogestionária com prioridade para a agricultura, que fora a estratégia de desenvolvimento prosseguida e acalentada durante os tempos da luta armada foi substituída em 1977 no III Congresso do PAIGC, aí abriram-se as portas ao desenvolvimento industrial e à implantação de projetos delirantes, do tipo faraónico. Deixou de ter significado real ser membro do PAIGC. O desastre veio logo a seguir: “As primeiras unidades industriais foram fracassos flagrantes. A fábrica de sumos e compotas de Bolama não trabalhou nunca mais de dois meses seguidos. A fábrica de colchões não funcionava mais de cinco minutos por dia com medo da penúria das matérias-primas”. Lopes refere a visita de René Dumont ao complexo agroindustrial do Cumeré e diz abertamente que o projeto é um desastre em perspetiva para a economia agrícola e geral do país. Os erros não se limitaram a estes fracassos, esta industrialização descurou o caráter sagrado da terra para os africanos, os camponeses não perceberam a utilidade e alguns devaneios agroindustriais: “O projeto algodoeiro de Bafatá, sob a égide de uma multinacional francesa, deve fazer da Guiné-Bissau um exportar de algodão. Em Gambiel, preparam-se imensos terrenos para a cana-de-açúcar com vista a estabelecer uma fábrica de açúcar cuja capacidade inicialmente de 70 mil toneladas já foi reduzida para 10 mil. A importação de toda a tecnologia e dos quadros técnicos necessários tornariam o açúcar mais caro do que o atualmente importado”.

Mudou o comportamento dos dirigentes do PAIGC. Aquela Bissau que Amílcar Cabral tanto temia, deslumbrou os recém-chegados. Com a independência, e negando seguimento ao modelo autogestionário, foram destruídas as redes comerciais das redes libertadas, entrara-se, segundo o slogan, na nova fase de reconstrução nacional. Acontece que os departamentos de Estado passaram a ser dirigidos por pessoas notoriamente incompetentes. Sem quadros politicamente preparados, o futuro revolucionário da Guiné-Bissau estava comprometido. Os quadros do Estado convergiram para Bissau, abandonaram as estruturas de base do PAIGC, desinteressaram-se da vocação popular. A crítica de Carlos Lopes é demolidora, e convém insistir que toda ela terá sido escrita muito antes do golpe de Estado de 14 de Novembro de 1980. A burocracia fracassou. E ele escreve: “O impacto da capital junto das novas camadas sociais provocou uma quase autonomia socioeconómica de Bissau em relação ao resto do país. A questão da terra e a transformação das mentalidades que lhe estão ligadas é também um problema até aqui não resolvido”. A atividade militante definhou por toda a parte. Para o autor é luta de classes que está em jogo na Guiné-Bissau, o PAIGC ou é engolido ou assegurará a vitória das classes na luta nunca vacilaram e asseguraram a saída revolucionária, adverte.

A última parte do ensaio de Carlos Lopes analisa a unidade nacional e a construção estatal. Cabral fizera superar os agrupamentos étnicos a favor da consciência nacional, soubera mobilizar todas as camadas da população, os camponeses tinham sido conduzidos pela pequena burguesia até à vitória da independência. Cabral propunha um “novo ser social”, o pilar da construção do Estado. Esse novo ser social iria apoiar a via socialista, a emancipação económica, a consciência revolucionária marcada pela classe mais forte, os assalariados, os camponeses e a pequena burguesia. Daí Carlos Lopes voltar a referir que à pequena burguesia assistem dois caminhos possíveis: trair a revolução ou suicidar-se como classe.

Para Carlos Lopes, se se adotar a consciência revolucionária é necessário que o Estado desempenhe um papel determinante no processo de desenvolvimento e anuncia as missões que o Estado deve estar incumbido, referindo os grandes eixos dessa mobilização: transportes e comunicações; abastecimento de bens de consumo e bens de produção da primeira necessidade; fornecimento de água no meio rural; créditos agrícolas destinados à compra de equipamentos coletivos de trabalho; saúde e educação.

Para isso, existia Carlos Lopes a contradição etnia-Estado teria que ser suplantada.

Dir-se-á que este ensaio só tem importância para o investigador, para quem procede ao levantamento dos trabalhos de sociologia política que apareceram na Guiné-Bissau, logo nos primeiros anos após a independência. Diria que não só, há nesta investigação um comprometimento direto, alguém que andou pelos corredores do poder e que assistiu ao desabar de sonhos e tentou reagir, denunciando corajosamente os erros e propondo novas atitudes. Foi muito raro ouvirem-se vozes como a de Carlos Lopes. É essa dimensão pessoal de coragem e autenticidade que me aprece digna de relevo, também.
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Nota do editor

Poste anterior de 4 de setembro de 2015 > Guiné 63/74 - P15073: Notas de leitura (753): “Etnia, Estado e Relações de Poder na Guiné-Bissau”, por Carlos Lopes, Edições 70, 1982 (1) (Mário Beja Santos)

Guiné 63/74 - P15080: Tabanca Grande (472): José Matos, investigador independente em história militar, filho do nosso falecido camarada José Matos, fur mil da CCAV 677 (Fulacunda, São João e TIte, 1964/66)... Novo grã-tabanqueiro nº 701

1. Mensagem enviada ontem ao José Matos, na sequência do poste  P15077 (*) 

José:  Convite aceite? Posso por o seu nome na coluna do lado esquerdo do blogue, na lista alfabética, de A a Z,  dos "amigos e camaradas" da Guiné?

Vamos naturalmente publicar, mais à frente, o outro artigo, que escreveu em coautoria com o nosso conhecido Matt [Matthew] Hurley, A arma que mudou a guerra", e que também saiu na Revista NMilitar, nº 2553,outubro de 2014, pp. 893-907 (2014).

Sou contemporâneo da Op Mar Verde, em 22/11/1970... Vi os comandos africanos chegarem ao Xime e a Bambadinca, depois do regresso de Conacri... Começámos a dar conta do risco sério de escalada da guerra (Strela, MiG, blindados...). Regressei em março de 1971... Mas 4 dias depois da invasão de Conacri apanhei uma brutal emboscada, com cubanos a enquadrarem a guerrilha... Tivemos 6 mortos e 9 feridos graves, na Op Abencerragem Candente... Isto, em pleno coração da Guiné...

Boa noite para si.. (ou para ti, que na Tabanca Grande, tratamo-nos todos por tu, os camaradas... e os filhos dos camaradas)...

Abração.
Luís


2. Resposta pronta do José Matos, que passa a ser o grã-tabanqueiro nº 701:

Ok,  Luís.

Sim, podes meter o meu nome na coluna da esquerda... não há problema... Tenho feito muita investigação à volta da Guiné e mais novidades vão surgir na RM  [Revista Militar]. no futuro...
Já tenho um outro artigo alinhado sobre o início da guerra na Guiné, que vai sair no futuro e estou agora a trabalhar numa coisa sobre o fim da guerra muito interessante, com o seguinte título: "O fim da guerra na Guiné: dúvidas e factos."

Portanto, à medida que for publicando tenho todo o gosto que o blogue divulge...

Não estou a pensar escrever nada sobre a [Operação]  Mar Verde, porque o [Luís] Marinho já escreveu muita coisa naquele livro de 2005 sobre o tema, portanto é um assunto já explorado... e o meu objectivo é trazer coisas novas à luz dia e não falar de coisas que outros já falaram...

Mas vamos falando... Olha, só uma pequena correcção o meu pai morreu em 1987 e não em 98, morreu novo tinha 45 anos, deu-lhe um AVC que foi fatal... Ele tem dois álbuns de fotos engraçadas da Guiné, e eu arranjei material sobre o Batalhão dele, mas é um tema muito específico, não está nos meus planos publicar nada... agora poderei partilhar algumas fotos, quando calhar...

Abração
José Matos



3.  Sobre o José [Augusto] Matos:

(i)é filho de um camarada nosso, José Matos,  ex-fur mil,  CCAV 677, Fulacunda, S. João e Tite, 1964/66), já falecido em 1987, aos 45 anos;

(ii) vive na região de Aveiro;:

(iii) e investigador independente em história militar, tem feito investigação sobre as operações da Força Aérea na Guerra Colonial, principalmente na Guiné;

(iv) é colaborador da revista Mais Alto, da Força Aérea Portuguesa, e tem publicado também o seu trabalho em revistas europeias, em França, Inglaterra e Itália.

Da CCAV 677, camarada do pai do José Matos, temos, na Tabanca Grande, o António Correia Rodrigues, também fur mil

A CCAV 677, mobilizada pelo RC 7 (Lisboa),  embarcou  em 8/5/1964, chegou a Bissau em 13/5/1964 e regressou à metrópole em 26/4/1966. Foi colocada em Tite com a função de intervenção e reserva do BCAÇ 599 em 14/5/1964, com um pelotão destacado em Fulacunda.

Realizou operações nas regiões de Jufá, Bária, Budugo, Gamol, Jabadá e Brandão, e destacou pelotões para reforço das guarnições de Jabadá e Enxudé. Assumiu, em 24/4/1965, a responsabilidade do subsetor de S. João. Voltou a Tite em 6/4/1966, seguindo para Bissau para efetuar o regresso. Há um livro escrito, com histórias da companhia, da autoria do então capitão António Luís Monteiro da Graça.

O Cap Cav Pato Anselmo foi outro dos comandantes da companhia, segundo informação do nosso camarada Santos Oliveira, contemporâneo do José Matos (pai).
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Notas do editor:

(*) Vd. poste de 6 de setembro de 2015 > Guiné 63/74 - P15077: FAP (84): a ameaça dos MiG na guerra da Guiné (José Matos, Revista Militar, nº 2559, abril de 2015) - Parte I