Capa do livro do nosso camarada José Ferreira da Silva (ex-Fur Mil Op Esp da CART 1689 / BART 1913, Fá, Catió, Cabedu, Gandembel e Canquelifá, 1967/69); editado pela Chiado Editora, Lisboa.
1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 10 de Novembro de 2016:
Queridos amigos,
O que o confrade José Ferreira ilumina nos seus relatos é o vigor da amizade e da camaradagem, ele registou perfis de jovens de diferentes proveniências, usos e costumes, usa com comedimento, peso e medida, a galhofa, o desentendimento, a comédia de enganos, mas também desenha casos modelares de nobreza de caráter, é bom exemplo o que nos dá da Ilda e do Neco.
É o outro lado dos bastidores da guerra, em que as personagens se movem transportando a origem e o peso da identidade. O resultado é este monumento de candura, José Ferreira move-se perfeitamente nos labirintos da sua memória e traça muito contidamente recordações irónicas naqueles palcos onde a morte e o limite do sofrimento andam perto.
Ficamos à espera de mais.
Um abraço do Mário
Quando as memórias despertam candura e partilhas de ironia
por Beja Santos
José Ferreira |
Dir-se-á que estas “Memórias boas da minha guerra”, de José Ferreira, Volume I, Chiado Editora, 2016, se distinguem por uma singeleza evocativa de gente que se encontrou nos preparativos e no teatro de guerra e que até vem a baila em reencontros de antigos combatentes, com o valioso acréscimo da candura de amizades feitas que o autor tão cativantemente sabe exaltar.
Chama-se José Ferreira, é presença contínua no blogue e fez parte da CART 1689, que deambulou por boa parte da Guiné. Agradece a Alberto Branquinho, um sério especialista no trato da galhofa e da ironia fina, também membro da nossa confraria, o empurrão dado para a confeção deste livro de memórias. Andou por Dunane que um outro escritor, Cristóvão de Aguiar, já fez crónica bem dolorosa de um soldado com braço tatuado que se matou por amores. Regista os desenrascanços na cozinha, os apetites sexuais, as risotas sobre o linguajar do Norte, pena é que um leitor impreparado no jargão não conheça o significado de morcão, isto é não sabe se estamos a falar num atrasado ou num javardo. José Ferreira faz desfilar jovens que percorrem quartéis e descobrem mundo. Cinzela rostos, desenha pessoas: “Era esquelético, alto e de cara afiada. Tinha uma boca pequena de onde se salientavam os tais dois dentes grandes. Tinha os cabelos aloirados e espetados em várias direções”. Há o retrato de uma certa Idalina que é inesquecível: “Teria mais de 65 anos, pernas muito arqueadas e escondidas com meias escuras e saia comprida. Esticava os cabelos lisos e grisalhos, arranjados em carrapito que segurava na nuca e que cobria com o lenço também escuro. Não cortava os pelos do bigode nem os da verruga. Não se lhe notavam seios nem curvas no corpo. Parecia uma tábua lisa. Usava sempre sapatos fechados, tipo homem. De altura teria, incluindo o carrapito do cabelo, cerca de um metro e meio. Sobrancelhas tipo Álvaro Cunhal”.
E assim chegamos à Guiné, estamos em Maio de 1967, em Fá Mandinga, a curta distância de Bambadinca. Em dia de folga, tira-se a roupa civil da bagagem e sobe-se ao monte de bagabaga. Há o soldado Celorico, dotado de uma memória portentosa, conhecia todos os dados dos 153 militares da CART 1689, é de uma grande ternura o apontamento que José Ferreira lhe dedica quando ele anda exuberante a ouvir no rádio o rancho folclórico da sua terra. Quando necessário, passa-se do presente ao passado e mesmo ao após, caso da história da Ilda e do Neca, um amor comovente, uma Ilda que aceitou o seu Neca tetraplégico, há paixões que superam o pior dos destroços.
Há as partidas para a guerra e muito imprevistos no termo do regresso, há pessoas que se encontram no IPO, há quem ali pratique um devotado voluntariado. Ficaram recordações muito fortes como a do Galã de Nhacra. Nos reencontros, para além dos abraços e dos minutos de silêncio por que já partiu, há a dor por certas notícias, alguém que esteja na miséria ou com graves problemas familiares, há alguém que teve em empresas prósperas e que agora conhece o revés. O Facebook ajuda a redescobrir camaradas e vem aí outras histórias. Ficam notas sobre uma homenagem póstuma a alguém que morreu num ataque em Cabedú, em 12 de Julho de 1968. O livro de memórias está profusamente ilustrado, e lá para o fim vem os relatos sobre o batismo de fogo, a CART 1689 depois de Fá Mandinga andou a treinar-se no Xime, em Ponta Varela e no Enxalé, foram depois para o Oio, aí houve tiroteio e mais adiante conta-se uma história passada na região de Cambaju em que foram obrigados a beber mijo, a sede faz-nos ultrapassar todos os limites.
Se é volume I e se a CART 1689 andou por Catió, Gandembel, Caquelifá e Bissau, se foi companhia de intervenção e se foi premiada com a Flâmula de Honra em Ouro do CTIG, é certo e seguro que vamos ter mais memórias boas da guerra de José Ferreira, em boa hora deitou mão a essa gama de imprevistos e peripécias que fazem da ironia o ingrediente contraditório de gargalhar em tempo de guerra.
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Nota do editor
Último poste da série de 11 de Novembro de 2016 > Guiné 63/74 - P16708: Notas de leitura (901): “Guinea-Bissau, Micro-State to ‘Narco-State’”, por Patrick Chabal e Toby Green, Hurst & Company, London, 2016 (4) (Mário Beja Santos)