1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 7 de Março de 2016:
Queridos amigos,
Temos aqui feito referência a toda a obra literária deste magnífico romancista, contista e dramaturgo.
É escritor luso-guineense, o amor pelo seu país atravessa toda a sua obra, não esconde a deceção de todas as desditas guineenses, brande a esperança, caustica os prepotentes, é um paladino da libertação da mulher, como este conto tão magnificamente atesta. É incompreensível que os editores portugueses o ignorem, ele que tem obra já publicada no estrangeiro. Maneja pericialmente o crioulo, trata o colonialismo sem retórica e, acima de tudo, tudo parece aceitar menos a resignação e as palhaçadas do poder.
Um abraço do
Mário
Um belo conto de Abdulai Sila
Beja Santos
À procura de elementos relacionados com a literatura da Guiné-Bissau, deparei-me num arquivo com o número 1 da revista Tcholona (palavra crioula que poderá significar arrancada), datada de Abril de 1994. Foi aqui que encontrei o conto
"O Reencontro", de Abdulai Sila, inquestionavelmente o grande prosador guineense atual. A palavra ao escritor:
O Reencontro
O tempo passava e ela continuava à espera.
O silencia era quase absoluto. Naquela noite, misteriosamente, não se ouvia nem o ladrar habitual dos cães vadios que àquela hora costumavam relatar as suas aventuras. Mesmo o vento, por razões desconhecidas, caminhava silenciosamente, arrastando consigo um bando de nuvens, as quais ameaçavam retirar-lhe a sua única companheira naquela noite sem estrelas. A lua insistia todavia em manter a companhia, continuando a espreitar entre as nuvens. Este ato de solidariedade desinteressada permitia confirmar o vazio da estrada lamacenta que passava perto e, esporadicamente, dava aos charcos de água que povoavam a mesma estrada um brilho extravagante, que contrastava com a densa escuridão que cobria todo o bairro.
O tempo passava e ela continuava à espera.
Sem piedade nem compaixão, os mosquitos picavam. Subitamente, ela viu-se engajada num combate feroz que a obrigava a movimentos bruscos das mãos e dos pés. Movimentos que se multiplicavam com a intensidade da batalha e ameaçavam seriamente violar o silêncio que se impusera e que convinha manter. Como solução de recurso, ela abriu a carteira pendurada no encosto da cadeira onde se encontrava sentada e sacou dela um lenço. Deixou de haver baixas, mas o silêncio foi reconhecido e respeitado.
Mas o tempo passava e ela continuava ainda à espera.
Pegou no blusão e pôs sobre os ombros. As costas tiveram maior proteção, mas os braços perderam em liberdade de movimento. Os últimos botões da camisola de algodão foram abotoados e as calças voltaram a ser esticadas para baixo, até as pontas beijarem as sapatilhas. Excetuando estas últimas, as restantes peças eram todas relíquias de uma era distante, de um passado que se pretendia agora presente. Era o traje que ele dizia gostar mais e ela usava frequentemente para lhe agradar.
Um clarão surgiu na sua memória e segundos depois foi o estrondo no seu coração. Um relâmpago fez reviver momentos do passado e que provocou o despertar de emoções e sentimentos impiedosamente recalcados. As recordações começaram então a desfilar uma a uma, com toda a prepotência e altivez que o tempo e a vitória sobre o esquecimento lhes tinham atribuído. Foi uma parada como ela nunca tinha vivido.
As recordações da adolescência ainda eram tão nítidas! Os olhares carregados de simpatia e os sorrisos que sempre lhes acompanhavam. A vergonha camuflada que vinha depois. A atração mútua e o desejo de estarem juntos, de conversarem, de sonharem acordados. A repreensão de amigas e familiares que inviabilizam os sonhos e reputavam o amor de impossível. A juventude trouxe os encontros secretos e os beijos frenéticos. A descoberta dos prazeres do corpo e o pecado que se lhe seguiu. O amor manifestou-se amputado e a ele se seguiram a desilusão e a deceção sem parceiros. O casamento forçado surgiu como prémio e dele resultaram duas certezas contraditórias: o amor pelos filhos e o amor pelo primeiro amor. Um trazia o alento, o outro a frustração. Um suscitava alegria sem limites e oferecia carinho, o outro era uma doença, cujo tratamento dons de que não dispunha. Entre a esperança e a tragédia, a ansiedade e a miséria, o casamento diluiu-se. Ficaram os dois amores que, paradoxalmente, cresciam juntos.
O tempo passava e ela continuava à espera.
O encontro tinha sido marcado de uma maneira muito discreta. Foram um olhar e uma frase curta. “Depois vou passar”, tinha ele dito entre os dentes. Não havia referência do local nem da hora. Como nos velhos tempos. E como nesses tempos, ela aceitara com o silêncio. Como depois de todo aquele tempo, ela aguardava com paciência. Paciência de quem não tinha mais ilusões. Das lições de uma vida sem parâmetros definidos tinha ela aprendido a arte de não sonhar, a faculdade de viver sem ambições, o martírio permanente de reprimir ansiedades e ambições hipotéticas à felicidade matrimonial, o direito a um companheiro…
Sabia que podia ser tempo perdido em vão, aquele que estava a gastar esperando. Sabia também que poderia naquela noite acontecer algo que estava pressentindo há muito tempo. Foi provavelmente esse “algo” que a arrastou para o comício e a obrigou a ouvi-lo falar e a seguir atentamente os seus gestos. Descobriu, no meio do discurso, que as suas palavras tinham um outro significado. Eram palavras e gestos que os outros aplaudiam com entusiasmo, mas que ela sabia que eram de quem estava perdido, arrependido, e pedia a sua ajuda. Uma ajuda que ela ia prestar.
Por isso o tempo passava e ela continuava à espera.
Um novo relâmpago e surgiram emoções inéditas. O coração batia um novo ritmo e os lábios puseram-se a dançar. Desejos insolentes começaram a desfilar. O corpo inteiro foi abalado. Um abalo semelhante a outros ocorridos vários anos atrás, que faziam crescer a ansiedade e sequestravam a razão. Subitamente, ocorreu o inesperado. As mãos tremeram e os sentidos vacilaram. No cérebro, um único desejo.
Mas o tempo passava e ele não aparecia.
No céu, a lua, provavelmente comovida, desaparecera sob o espesso manto escuro das nuvens no exato momento em que, de um dos charcos de água, começou a cantar um sapo, numa voz muito comovente, uma canção de amor. O texto da canção eram extratos de um longo poema de amor. Falava de uma paixão de infância que nunca tinha sido correspondida. Era a história de uma menina com coração de ouro, mas sem dotes, que vivia numa sociedade de gorilas. Os versos rimavam maravilhosamente e a melodia era fascinante. O tempo parecia não ter fim e o sapo não dava sinais de cansaço. Descreveu as desavenças e revelou as injustiças. Falou de esperanças rejuvenescidas e de um reencontro que se anunciava.
De repente o vento, achando aquela canção uma blasfémia, irritou-se e começou a berrar forte e feio. O sapo, aborrecido, abandonou o palco.
Começou a chover e ele não aparecia.
Ela levantou-se e, lentamente, desceu os degraus das escadas um a um. Em poucos instantes ficou completamente molhada. O vento irritado não viu, mas o sapo observou atentamente, com os seus grossos olhos, como os pingos espessos da chuva acariciavam a sua pele. As gotas limparam-lhe as lágrimas e o batom da cara. Inquilina de longa data, a tristeza ainda quis resistir, mas acabou sendo levada pela corrente de água para uma morada desconhecida.
Ninguém, nem o sapo-dijidiu, soube dizer se o encontro teve lugar. O que todos viram depois daquele banho foi um brilho diferente nos olhos dela.
Houve quem dissesse que aquele brilho era a manifestação da felicidade que se instalara finalmente no coração da mulher que era uma menina que um dia sonhara com um amor impossível. Uma mulher que tinha um coração de ouro que, sob uma forte chuvada, numa noite escura sem luar, se reencontrara a si mesma.
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Nota do editor
Último poste da série de 31 de julho de 2017 >
Guiné 61/74 - P17638: Notas de leitura (982): “L’Afrique Étranglée”, por René Dumont e Marie-France Mottin, Éditions du Seuil, 1980 (Mário Beja Santos)