Queridos amigos,
A história das guerras do império, por vagas sucessivas, envereda pelos seguintes domínios:
(i) logo a seguir ao 25 de Abril os teóricos à esquerda e extrema-esquerda a desvelar aspetos sombrios do colonialismo, desde a palmatória aos massacres,
(ii) e o teóricos da direita e extrema-direita a apontar para a tragédia da descolonização;
(iii) o novo fluxo prendeu-se com o sofrimento daqueles que combateram pela presença portuguesa, perseguidos e executados, isto a par da permanente acusação do dedo soviético e da ganância norte-americana à espreita de petróleo e diamantes;
(iv) seguiu-se a acusação irrestrita de que a descolonização prejudicou por inteiro os descolonizados;
(v) no fluxo presente, em que é impressionante o acervo de conhecimentos sobre o que foram as campanhas de África e em que contexto internacional se moveram as decisões de Salazar e Caetano, passa-se banho lustral sobre os fundamentos das lutas de libertação e temos historiadores a falar dos teatros de guerra sem jamais os ter estudado.
Encontra-se no trabalho de Rui Ramos bojardas como a seguinte, a propósito da invasão da Guiné Conacri, em 1970: "O PAIGC acabou por abandonar todos os acampamentos permanentes no interior do território".
Pasma como quebra o silêncio para denunciar a inqualificável besteira.
Um abraço do
Mário
Os capitães de África, pelo professor Rui Ramos
Beja Santos
Em escassas duas semanas, de quatro proveniências diferentes recebi o artigo que o professor Rui Ramos publicou no jornal Independente em 2006 sobre as guerras que travámos em África:
http://macua.blogs.com/moambique_para_todos/2017/09/oscapit%C3%A3es-de-%C3%A1frica-por-prof-rui-ramos.html. (*)
O documento é naturalmente polémico, será precisamente por isso que anda nas redes sociais, dá satisfação aos descontentes e azedumentos. À pergunta de que aquela guerra fora o simples resultado da natureza do regime político em 1961 ou da idiossincrasia do seu chefe, o historiador não hesita: “Nenhum governo português poderia ter feito outra coisa em Março de 1961”.
E refere as chacinas, os apelos à violência da UPA, incluindo o ideólogo de alguns revolucionários, Frantz Fanon. Na suposição de que o historiador aposta na imparcialidade e na contextualização dos factos, estava sem querer que houvesse algumas palavras abonatórias de que se encetara desde o termo da II Guerra Mundial uma gradual consciencialização anticolonial, que o Estado Novo estava ciente de que vinham problemas do principal anfiteatro planetário, as Nações Unidas, onde as novas nações independentes clamavam pelo fim das colónias.
O Estado Novo iludiu a realidade, e depois de umas largas pinceladas sobre a chegada de colonos a Angola e Moçambique, remata que não teria sido fácil em 1961 o abandono de África, ninguém pensara em retirar nem mesmo o PCP e os demais antissalazaristas. Houve portanto guerra aos movimentos de libertação porque era inevitável, ponto final, foi uma História sem antecedentes, um autêntico conto de fadas.
Rui Ramos fala da evolução da guerra e da estratégia salazarista, cita mesmo Marcelo Caetano em Março de 1974: “Não será por falta de dinheiro que nos renderemos”. Dinheiro houvera muito, mas estava tudo a correr mal desde 72, primeiro a crise mundial de alimentos, dispararam os preços, só baixarão no fim da década, a seguir o primeiro choque petrolífero e o castigo árabe a Portugal, pensou-se em racionamento, houve quilómetros de bicha, candonga a gasolina, se o professor Rui Ramos conversar com alguns do seus colegas e que conhecem economia e finanças, ficará surpreendido como a inflação subiu acima dos 30% no fim do primeiro trimestre de 1974.
Apregoa os mesmos argumentos de que a guerra se apresentava viável, que os principais movimentos de libertação constituíam um complicado folhetim de desânimos, cisões constantes, ajustes de contas sanguinários e deserções espetaculares. Era bom que o professor Rui Ramos estudasse a fundo o que foi o PAIGC, por exemplo, teve altos e baixos mas foi-se fortalecendo e prestigiando, conseguiu os necessários apoios técnicos, em armamento e equipamento, formou quadros e nos últimos anos da guerra fez reverter para o interior da Guiné uma matéria-prima de grande qualidade, os quadros cabo-verdianos que não tinham condições de estender a guerrilha a Cabo Verde.
Não esclarece muito bem o que mudou de Salazar para Marcello Caetano, deste refere novos argumentos, mais complicados, assentes numa solidariedade humanitária, para justificar as operações militares. “Convenceu-se também de que a estratégia da guerra limitada e de longa duração não podia continuar”.
Então, o historiador atira uma régua para cima da mesa, já que era necessário pôr fim à guerra: “Caetano proporcionou aos chefes militares os meios para romperem com a modesta rotina salazarista e tentarem esmagar a guerrilha. O ano 1970 foi marcado por iniciativas dramáticas: a invasão da Guiné Conacri, o grande assalto ao Planalto dos Macondes em Moçambique, e um novo plano de operações no Leste em Angola. Os resultados iniciais não foram maus. Na Guiné, o PAIGC acabou por abandonar todos os acampamentos do território”.
Penso que nunca ficaremos a saber se o académico ilude os factos, é ignorante e tacanho ou consultou os dossiês errados. Tivesse ele procurado ler o que foi o ano militar da Guiné de 1970, e mesmo 1971, e descobriria que o PAIGC não abandonou nenhum acampamento, esquece-se que ainda há muita gente viva que por aqui anda e que os arquivos estão cheios dessa documentação. O académico sugestionou-se, sentiu-se livre para dizer umas bojardas.
O que aconteceu depois? Kaúlza e Spínola teriam ficado despeitados por não terem sido candidatos à presidência da República, em 1972 e foi posta a propalar a tese de que o governo não lhe dera os recursos materiais ou as autorizações políticas necessárias. Curiosamente, esta argumentação não bate certo com o que, depois do 25 de Abril escreveram militares como Kaúlza de Arriaga ou Silvino Silveira Marques e mais recentemente um tenente-coronel aviador de escrita alucinada, Brandão Ferreira.
O que escreve sobre o desfecho do regime e a ascensão do MFA é pura pirotecnia argumentativa: os capitães entendiam que a democracia portuguesa se iria fazer abrindo estradas, administrando escolas e hospitais, como se fazia em África. O historiador profere estes dislates, tanto quanto sei ninguém lhe foi ao pelo. Será por indiferença? Segue-se, no termo do artigo, a verrina e a destilação de veneno:
“Só a mitologia de esquerda podia dar uma boa consciência aos homens do MFA. Só ultimamente se começou a perceber o verdadeiro sentido da retirada portuguesa. Havia mais africanos a combater do lado português do que do lado dos partidos armados. Na Guiné, metade dos confrontos com o PAIGC eram da responsabilidade das milícias locais”.
Que ninguém se pasme como se pode ser tão leviano. E nem uma palavra sobre aquele trimestre fatídico para Marcello Caetano, em que mandou negociadores sigilosos falar com o PAIGC, a FRELIMO, o MPLA, a FNLA e a UNITA. Numa entrevista a um jornal brasileiro, Caetano irá com uma certa displicência que era inevitável as independências, era um fenómeno internacional onde já não cabia a argumentação portuguesa em prol de um Portugal do Minho a Timor. (**)
____________
Notas do editor:
(*) O link constante no texto não funciona pelo que tive de pesquisar na net uma alternativa. Encontrei este: http://macua.blogs.com/files/os-capit%C3%A3es-da-%C3%A1frica-ii---2004.pdf que permite até carregar o PDF.
(**) Último poste da série de 16 de outubro de 2017 > Guiné 61/74 - P17867: (Ex)citações (324): os memoriais de Buruntuma (CART 1742, 1967/69) e Ponte Caium (3º Gr Comb, CCAÇ 3546, Piche, 1972/74): Abel Rosa, António Rosinha, Carlos Alexandre e Valdemar Queiroz