1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 4 de Dezembro de 2017:
Queridos amigos,
Caminha-se para o fim da guerra, os relatórios não dissimulam que o conflito e as carências estão a dar dinheiro a certos negociantes, os djilas apropriam-se de todo o arroz disponível e levam-no para o estrangeiro, pagam-no a alto preço. Há negócios na compra de camiões e barcos, vão ser inúteis depois da guerra, transaciona-se muito ouro em pó.
Antes da chegada de Sarmento Rodrigues já Bissau começa a mudar de imagem com os bairros para o funcionalismo, vai crescer a administração. Como um verdadeiro cronista, o gerente do BNU em Bissau é meticuloso na análise da praça, não há crescimento mas também não se registam afundamentos. E, inopinadamente, tudo vai crescer nas obras públicas, no rasgar das estradas, nos transportes, na saúde e no ensino. Estamos numa nova etapa da missão colonizadora, a que não faltará cultura. Os bons negócios estão a chegar, também.
Um abraço do
Mário
Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (30)
Beja Santos
Não se deve subestimar a importância dos relatórios do BNU naquele crítico período da II Guerra Mundial, tal a riqueza de pormenores, são informações que extravasam a situação da praça, iluminam a vida socioeconómica e política na colónia, que conhecerá substanciais alterações com a chegada, em 1945, do Capitão-de-Fragata Manuel Sarmento Rodrigues, alguém que aposta em fazer da Guiné uma colónia modelo.
No relatório de 1944, dá-se atenção aos negócios do Senegal, como já se fizera em relatório anteriores e posteriores, mas a situação tendia a normalizar, já estavam a ser reexportados muitos fardos de tecidos que seriam invendáveis na colónia. E dá-se pormenores:
“Muitos outros tecidos devem ter-se escoado em regime irregular para o Senegal. Dos que ficaram em nosso poder, alguns se estragaram, por razões derivadas de uma demasiada armazenagem e também devido à má qualidade das anilinas empregadas. Não tivemos nenhuma responsabilidade no caso”.
Aumentara o montante referente a letras protestadas e relativas a estes negócios, não havia a registar falências, não fechara nenhum dos estabelecimentos existentes mas também não abrira nenhum outro. Era a guerra:
“As casas estrangeiras continuam a abster-se de negociar produtos coloniais na antiga grande escala em que trabalhavam. Limitam-se a adquirir estes produtos em regime de permuta ou em liquidação de antigos créditos. É de esperar que voltem à sua actividade normal depois do fim da guerra, fazendo a costumada concorrências às casas nacionais. Os negócios de mancarra abrem com uma desatinada e desinteligente concorrência. Todos querem comprar o mais possível e o mais depressa possível. E então, nem se olha à qualidade do produto. A mancarra, de ano para ano é pior porque não há cuidados absolutamente nenhuns com a selecção das sementes. A boa prática de não comprar mancarra sem ser limpa caiu em total desuso, são os próprios compradores que não querem passar a mancarra pelas tararas no acto da compra para não haver atrasos. Isto é o cúmulo da falta de senso pois lhe fica a certeza que de pagam a dinheiro não só mancarra mas uma enorme percentagem de terra, pedra e cascas. Mas é assim mesmo. A Casa Gouveia, até certo ponto comanda preços por ser a maior compradora. Mas a sua orientação é francamente má e o sistema de compra peca da mesma desorientação geral, o que querem é comprar mais e mais. Nos negócios de arroz há mais equilíbrio, mas também se regista uma tendência geral para piorar a qualidade”.
O gerente está não só bem informado como sente o dever de incorporar no relato as suas impressões pessoais. Falando da determinação do governo em não permitir o estabelecimento do comércio sírio-libanês na região de Catió onde se cultiva em grande escala o arroz, observa:
“Insensatez grande foi anular-se esta boa determinação, chega-se ao ponto de haver autoridades que instaram com os sírios para que abrirem casas em Catió. Viu-se imediatamente o resultado. Concorrência desenfreada e prejuízos consequentes para a indústria de descasque de arroz. Esta, como lhe são impostos preços de venda, fatalmente tem que regular por estes o preço de compra. Os sírios, não têm entrave nenhum. Compram arroz, para permutar; para vender em regiões onde não deve chegar o controlo de preços e é natural até que o passem para território francês onde se paga arroz por todo o dinheiro, porque a crise resultante da guerra é muitíssimo séria, pouco ou nada havendo para a alimentação das populações. A meio do ano faz-se alarde grande de que a região de Catió pode produzir uma imensidade de toneladas de arroz, acima da produção do ano anterior, o que influiria muito na produção total da colónia. Afinal, nada disto se verificou. De facto, populações inteiras de outras regiões produtoras de arroz têm-se transferido para Catió. Mas a sua influência só se sentirá passados dois anos, pelo menos da sua instalação e trabalhos primaciais. Assim, poderá aumentar a produção de Catió mas falhará a das regiões onde as populações saíram, e permanecerá sem grandes alterações a produção geral. O que é um facto indiscutível é a degenerescências das sementes”.
E discreteia sobre os fatores, fala dos celeiros, da seleção de sementes, do péssimo acondicionamento dentro dos celeiros, havia regentes agrícolas que tinham chegado a conclusões sensatíssimas sobre o péssimo funcionamento de tais celeiros mas que ficavam desanimados por não verem consideradas as suas propostas de melhorar a situação.
O relatório de 1944 introduz um elemento novo que é a construção de moradias destinadas a funcionários, mas faz-se o reparo de que se continua sem casas para escolas, sem casa para tribunal, sem palácio para o governador pois as obras continuam paradas. Critica os altos salários dos operários europeus que encarecem mão-de-obra que não pode ser paga por outros. E acrescenta outros dados sobre construções: um muro-cais com escada de acesso e uma rampa que facilitou muito a saída dos carros da jangada em que se atravessa o rio, em Bafatá; em Caió, também foi construído um pequeno muro-cais e um farol que ainda não funcionara; há uma necessidade urgentíssima de se dragar o rio Geba e diz que o assoreamento do rio, em certos pontos, representa já um obstáculo sério à navegação, causando grandes prejuízos.
Falando da situação da praça no relatório de 1945, o gerente de Bissau afirma não se terem registado falências nem registos de novas firmas, presta as seguintes informações:
“Os negócios correram normalmente voltando à normalidade, alterada para um movimento muito mais elevado e intensivo no ano anterior, devido à guerra e consequente negócio com o Senegal. As grandes quantidades de tecidos que ficaram na Guiné e já não interessam às autoridades fronteiriças, foram-se escoando, em contrabando, para o território francês. Pagas em francos senegaleses, houve determinada altura em que estes existiam aos milhões, na nossa colónia. Os detentores desfizeram-se deles por modos diversos. Alguns compraram mancarra; cera; borracha e couros, vindos do chão francês por indígenas de lá, que querem o pagamento naquela moeda. Muitos compraram quilos e quilos de ouro em pó, negócio em que se tem feito fortunas. A pouco e pouco se escoaram tantos milhões de francos entrados no nosso território. Nesta data, mesmo nas regiões fronteiriças, já não é fácil encontrarem-se muitos francos no comércio português, além daqueles precisos para alimentar o negócio dos chamados ‘djilas’. É natural que na altura da próxima campanha se intensifiquem os negócios com os indígenas das colónias vizinhas, sobretudo nas regiões de Bafatá e Gabu.
Por vezes a intensidade destes negócios é tão grande que os pagamentos quase só se fazem em moeda francesa. Operação pouco legal, nada se pode fazer para evitar, tanto mais que por ela se canalizam milhares de contos em valor de géneros coloniais que o nosso comércio adquire e exporta e noutros milhares de contos de fazendas entradas pelas nossas alfândegas e que assim se escoam para o território vizinho, animando o nosso comércio e dando rendimentos ao Tesouro da colónia. Por ora, a vizinha colónia francesa ainda não ter fartura de fazendas ou mercadorias. De França quase nada vem. Da Gâmbia ou da Inglaterra pouco ou nada se recebe. Ultimamente tem recebido alguma mercadoria americana mas em pequena quantidade".
Mas o gerente do BNU irá no relatório seguinte carrear informações pessimistas, dirá que os negócios com o Senegal fraquejaram muitíssimo, mantendo-se, porém, sobretudo na região de Bafatá, os negócios clandestinos sobre o ouro em pó, negócio que movimenta milhões de francos, não se faz em moeda portuguesa. E presta a seguinte informação:
“Nos últimos anos da guerra o ouro em pó vendeu-se à razão de 13 a 20 contos por quilo. Hoje, o preço do quilo regula por 23 a 24 contos. O comprador manda-o clandestinamente para Lisboa, pagando entre 50 centavos a 1 escudo, por grama, aos portadores. Na conversão do ouro em pó para ouro em barra, contando com as quebras, pagamento do trabalho e contrastaria, a uma quebra que tem andado por 6 a 10%, sendo raro chegar-se aos 10%. Vendido depois às cotações atuais, dá um bom lucro e serve de meio de colocar capitais na metrópole, o que só pela transferência que se não paga adiciona lucro. Cifram-se em milhares de contos os negócios de ouro feitos durante todo o ano".
Tudo vai mudar no pós-guerra, como se verá diante. Os relatórios continuarão a falar no ouro em pó convertido em ouro em barra, bastante lucrativo, há muita gente a prosperar com estes negócios, insiste-se nesta tónica. O relatório de 1946 adianta que houve alguns negócios com a colónia inglesa da Gâmbia, sobretudo em compras de ferragens e camiões militares que sobraram da guerra, corriam transações para comprar algumas embarcações para o serviço de capotagem na Guiné.
O relatório fala em dificuldades mas também em muita prosperidade, nesse primeiro ano sem guerra:
“Daqui para lá nada se vendia, apesar da imensa necessidade que a Gâmbia tinha de nos comprar arroz, cuja exportação não é permitida. Se fosse permitida, era certo que nos pagariam o arroz da Guiné a um xelim ou mais, por quilo, nos armazéns de Bissau e que seria um óptimo negócio para o comércio desta colónia. Contudo, os djilas levam muito arroz, sobretudo descascado a pilão, para a Gâmbia, utilizando canoas indígenas. Compram-no a todo o preço, não hesitando mesmo pagá-lo a cinco ou seis escudos o quilo. Na campanha que está correndo, ao fazer-se este relatório, quase nenhum aparece, porque os djilas o andam comprando pelas estradas e caminhos do mato, directamente aos indígenas e a altos preços”.
Vai seguir-se a descrição dos bons negócios nesse ano, cheio de realizações nas comemorações do V Centenário do Descobrimento da Guiné. Parece que a crise económica estava ultrapassada, anunciava-se um surto desenvolvimentista.
(Continua)
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Notas do editor
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