
Queridos amigos,
Muitos foram os historiadores e investigadores que se debruçaram sobre o pensamento e ação de Amílcar Cabral, basta pensar em Patrick Chabal, Mustafah Dhada ou Lars Rudebeck. Porém, nenhum deles foi tão longe no aprofundamento do estudo da ideologia de Cabral, na análise da gestão da orgânica política e militar do PAIGC, nas tensões internas que se esboçaram entre políticos e militares, sobre qual tipo de socialismo o líder histórico procuraria praticar após a independência.
Julião Soares Sousa é um investigador altamente documentado, usa a propósito testemunhos de participantes e maneja a observação e a dedução em torno do líder histórico com inegável mestria e independência. O que, insiste-se, torna esta obra uma referência incontornável para estudar os fundamentos históricos da Guiné-Bissau a partir da vida e obra de um dos maiores revolucionários africanos de sempre.
Um abraço do
Mário
Amílcar Cabral visto por Julião Soares Sousa:
Uma biografia incontornável, agora revista e aumentada (3)
Beja Santos
“Amílcar Cabral, Vida e morte de um revolucionário africano”, edição revista, corrigida e aumentada, edição de autor, 2016: tenho para mim que é a biografia do líder histórico do PAIGC, escrita em língua portuguesa, que nenhum estudioso ou interessado na história da Guiné-Bissau ou nas lutas de libertação que ali se travaram pode dispensar. Nenhum outro investigador de Amílcar Cabral coligiu tanta documentação, desfez mitos e quimeras e enquadrou com perspicácia e isenção o homem, a sua ideologia, a sua causa, nos tempos e na circunstância em que atuou e em que perdeu vida, assassinado pelos seus próprios companheiros de luta.
Convém relembrar, telegraficamente, os elementos já biografados, a infância, a formação e os estudos em ambientes cabo-verdianos, a preparação universitária em Lisboa e a conscientização anticolonial; o nacionalismo guineense e como Amílcar Cabral congeminou os fundamentos ideológico-estratégicos da unidade Guiné e Cabo Verde; a passagem à clandestinidade e o exílio, as tensões em Conacri e em Dakar com os outros movimentos de libertação, a acreditação do PAIGC em África e no mundo socialista; a preparação para a luta armada com o auxílio da China e da URSS e de alguns países africanos.
Estamos agora num ponto importante do trabalho de Julião Soares Sousa: o pensamento e a ação de Cabral, a sua originalidade a partir da análise da sociedade guineense, mas também no confronto com o colonialismo português e o modelo montado pelo Estatuto do Indigenato; a sua produção teórica foi manifestamente inovadora sobre o papel da cultura no processo de libertação nacional. A par desta teoria e prática revolucionária, Cabral foi montando dentro dos movimentos de libertação das colónias portuguesas uma ofensiva diplomática em África, nas Nações Unidas, junto dos países comunistas e nos fóruns revolucionários. A luta armada conheceu logo em 1963 o grande sucesso que foi a desarticulação da região Sul e a abertura da frente Norte de tal modo que se chega a 1964 com a presença portuguesa muito reduzida na região Sul, o rio Corubal fica praticamente sem controlo das forças armadas portuguesas e a frente Norte corta o acesso a Bafatá, este eixo vital para o abastecimento do Leste processar-se-á através de Bambadinca até finais de 1969, a partir daí o porto do Xime ganha preponderância. Cabral contava com muito auxílio africano, praticamente não chegou. Este fenómeno teve diferentes causas: a grande rivalidade e proliferação dos movimentos nacionalistas da Guiné e de Cabo Verde, no início da década de 1960; a vaga de instabilidade política com golpes de Estado e a profunda divisão entre países moderados e os radicais de tendência revolucionária. Cabral não desiste, pede armamento, a URSS torna-se no principal fornecedor, mais tarde serão aceites apoios cubanos e chegar-se-á mesmo, dos anos 1960 para os anos 1970 a receber apoio escandinavo não militar.
Cabral teve que agir com firmeza logo no Congresso de Cassacá, em Fevereiro de 1964, cortou cerce os abusos contra a população, viu aprovado um plano de reformas e de reorganização que os diferentes estudiosos do PAIGC dão como cruciais para a implantação do PAIGC e que se traduziram por: organização do partido; criação das FARP; reforço das guerrilhas em todo o território; criação do exército popular e das milícias populares. Era também a guerra pela conquista da população numa fase em que as forças armadas portuguesa agiam com grande beligerância, o General Arnaldo Schulz pretendia fazer uma ofensiva militar à custa de bombardeamentos, Lisboa assegurou-lhe um aumento significativo de efetivos e deu-lhe luz verde para começar o processo da africanização da guerra, com a formação de milícias, depois de caçadores nativos e até de forças especiais; além disso, Schulz não descurou a aliança histórica com os chefes islamizados enquanto desenvolvia um plano de ocupação do território, de ofensivas sobre o Morés e outros santuários. Nas Palavras de Ordem, de 1965, Cabral escrevia: “Temos de destruir tudo quanto pode servir ao inimigo para continuar a sua dominação sobre o nosso povo, mas temos ao mesmo tempo que ser capazes de construir tudo o que é necessário para criar uma vida nova na nossa terra”. Note-se que Cabral foi cuidadoso com as destruições, tinha noção que havia infraestruturas indispensáveis para depois da independência, mas não se coibiu de mandar dinamitar pontes que eram estratégicas para o seu inimigo, caso da ponte sobre o rio Gambiel, que ligava o centro localizado em Mansoa até Bafatá. Cabral encorajou as populações das “áreas libertadas” a aumentarem a produção, a prover a alimentação dos combatentes, a venderem produtos no mercado exterior (fundamentalmente na Guiné Conacri) para se adquirirem bicicletas, sal, sandálias, sabão e tecidos. Em finais de 1966, abastecimento agravou-se, os raides da aviação portuguesa atingiam seriamente a produção e as colheitas, foi por esse tempo que se acelerou a criação de armazéns do povo, criados em 1964.
A questão ideológica ia ganhando premência, Cabral tinha a noção que o trabalho político para elevar o nível dos trabalhadores dava amostras de insuficiência, era preciso mobilizar, divulgar palavras de ordem, estar atento aos problemas e aspirações das populações, era esse o trabalho dos comissários políticos e dos quadros competentes. Ele dirá mais tarde e sem ambiguidades: “Podemos derrotar os tugas em Buba ou em Bula, podemos entrar e tomar Bissau, mas se a nossa população não estiver politicamente bem formada, agarrada à luta como deve ser, perdemos a guerra, não a ganhamos”. Será sempre profundamente crítico pelo trabalho desenvolvido pelos agentes responsáveis pela difusão ideológica, pelas confusões e contradições que estes agentes revelavam na hora de aplicar as diretivas do partido.
O historiador mostra claramente que houve lutar internas e crise de liderança em todo o tempo de luta armada: tentativas de formação de outros partidos, tentativas de assassinato de Cabral, as populações e os combatentes davam sinais de desânimo pois os bombardeamentos afetavam os principais celeiros do PAIGC situados no Sul, no Quitáfine. Davam-se deserções, que chegaram a tomar proporções graves, Chico Té chegou a sugerir a prisão dos familiares dos desertores.
Cabral ia sendo sujeito às críticas feitas à sua liderança. A melhor resposta que encontrou foi o seminário que teve lugar em Conacri, de 19 a 24 de Novembro de 1969, ao qual assistiram quadros políticos e militares, velhos e jovens, Cabral não se escusou a abordar as questões quentes e de denunciar racistas, tribalistas, oportunistas no meio dirigente do PAIGC. Foi autoritário e mesmo dogmático com a questão da unidade Guiné e Cabo Verde, quem não concordava devia abandonar as fileiras do partido. Ciente de que o partido estava infiltrado e que o número de informadores crescia, procurou aumentar a segurança e o controlo internos. A partir de 1970 a estrutura do partido conheceu modificações de monta, o líder do PAIGC acabou com a antiga estrutura composta pelo comité central, o Bureau Político, o comité das inter-regiões com a nova estrutura, na cúspide do poder ficavam três membros fundadores do PAIGC: Amílcar Cabral, Luís Cabral e Aristides Pereira.
Suspende-se aqui os dados biográficos de Cabral, veremos proximamente as tentativas de abertura de uma frente de guerra em Cabo Verde, a questão do socialismo e a construção do Estado no pensamento de Cabral e todo o processo diplomático e discussão interna para se chegar à proclamação do Estado da Guiné. Cabral prosseguia o sonho de se chegar à independência e com o reconhecimento do Estado na Guiné-Bissau obter apoios militares que levassem a presença portuguesa ao seu termo. Será nesse contexto que se urdiu um enormíssimo complô que levará ao seu assassinato, cujos autores morais ainda estão por esclarecer.
(Continua)
____________
Notas do editor:
Postes anteriores de:
11 de maio de 2020 > Guiné 61/74 - P20964: Notas de leitura (1283): “Amílcar Cabral, Vida e morte de um revolucionário africano”, por Julião Soares Sousa; edição revista, corrigida e aumentada, edição de autor, 2016 (1) (Mário Beja Santos)
e
18 de maio de 2020 > Guiné 61/74 - P20987: Notas de leitura (1284): “Amílcar Cabral, Vida e morte de um revolucionário africano”, por Julião Soares Sousa; edição revista, corrigida e aumentada, edição de autor, 2016 (2) (Mário Beja Santos)
Último poste da série de 1 de junho de 2020 > Guiné 61/74 - P21029: Notas de leitura (1287): “Guerra e política, em nome da verdade, os anos decisivos”, por Kaúlza de Arriaga; Edições Referendo, 1987 (Mário Beja Santos)