segunda-feira, 8 de junho de 2020

Guiné 61/74 - P21054: Notas de leitura (1288): “Amílcar Cabral, Vida e morte de um revolucionário africano”, por Julião Soares Sousa; edição revista, corrigida e aumentada, edição de autor, 2016 (3) (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 22 de Março de 2017:

Queridos amigos,
Muitos foram os historiadores e investigadores que se debruçaram sobre o pensamento e ação de Amílcar Cabral, basta pensar em Patrick Chabal, Mustafah Dhada ou Lars Rudebeck. Porém, nenhum deles foi tão longe no aprofundamento do estudo da ideologia de Cabral, na análise da gestão da orgânica política e militar do PAIGC, nas tensões internas que se esboçaram entre políticos e militares, sobre qual tipo de socialismo o líder histórico procuraria praticar após a independência.
Julião Soares Sousa é um investigador altamente documentado, usa a propósito testemunhos de participantes e maneja a observação e a dedução em torno do líder histórico com inegável mestria e independência. O que, insiste-se, torna esta obra uma referência incontornável para estudar os fundamentos históricos da Guiné-Bissau a partir da vida e obra de um dos maiores revolucionários africanos de sempre.

Um abraço do
Mário


Amílcar Cabral visto por Julião Soares Sousa:
Uma biografia incontornável, agora revista e aumentada (3)

Beja Santos

“Amílcar Cabral, Vida e morte de um revolucionário africano”, edição revista, corrigida e aumentada, edição de autor, 2016: tenho para mim que é a biografia do líder histórico do PAIGC, escrita em língua portuguesa, que nenhum estudioso ou interessado na história da Guiné-Bissau ou nas lutas de libertação que ali se travaram pode dispensar. Nenhum outro investigador de Amílcar Cabral coligiu tanta documentação, desfez mitos e quimeras e enquadrou com perspicácia e isenção o homem, a sua ideologia, a sua causa, nos tempos e na circunstância em que atuou e em que perdeu vida, assassinado pelos seus próprios companheiros de luta.

Convém relembrar, telegraficamente, os elementos já biografados, a infância, a formação e os estudos em ambientes cabo-verdianos, a preparação universitária em Lisboa e a conscientização anticolonial; o nacionalismo guineense e como Amílcar Cabral congeminou os fundamentos ideológico-estratégicos da unidade Guiné e Cabo Verde; a passagem à clandestinidade e o exílio, as tensões em Conacri e em Dakar com os outros movimentos de libertação, a acreditação do PAIGC em África e no mundo socialista; a preparação para a luta armada com o auxílio da China e da URSS e de alguns países africanos.

Estamos agora num ponto importante do trabalho de Julião Soares Sousa: o pensamento e a ação de Cabral, a sua originalidade a partir da análise da sociedade guineense, mas também no confronto com o colonialismo português e o modelo montado pelo Estatuto do Indigenato; a sua produção teórica foi manifestamente inovadora sobre o papel da cultura no processo de libertação nacional. A par desta teoria e prática revolucionária, Cabral foi montando dentro dos movimentos de libertação das colónias portuguesas uma ofensiva diplomática em África, nas Nações Unidas, junto dos países comunistas e nos fóruns revolucionários. A luta armada conheceu logo em 1963 o grande sucesso que foi a desarticulação da região Sul e a abertura da frente Norte de tal modo que se chega a 1964 com a presença portuguesa muito reduzida na região Sul, o rio Corubal fica praticamente sem controlo das forças armadas portuguesas e a frente Norte corta o acesso a Bafatá, este eixo vital para o abastecimento do Leste processar-se-á através de Bambadinca até finais de 1969, a partir daí o porto do Xime ganha preponderância. Cabral contava com muito auxílio africano, praticamente não chegou. Este fenómeno teve diferentes causas: a grande rivalidade e proliferação dos movimentos nacionalistas da Guiné e de Cabo Verde, no início da década de 1960; a vaga de instabilidade política com golpes de Estado e a profunda divisão entre países moderados e os radicais de tendência revolucionária. Cabral não desiste, pede armamento, a URSS torna-se no principal fornecedor, mais tarde serão aceites apoios cubanos e chegar-se-á mesmo, dos anos 1960 para os anos 1970 a receber apoio escandinavo não militar.

Cabral teve que agir com firmeza logo no Congresso de Cassacá, em Fevereiro de 1964, cortou cerce os abusos contra a população, viu aprovado um plano de reformas e de reorganização que os diferentes estudiosos do PAIGC dão como cruciais para a implantação do PAIGC e que se traduziram por: organização do partido; criação das FARP; reforço das guerrilhas em todo o território; criação do exército popular e das milícias populares. Era também a guerra pela conquista da população numa fase em que as forças armadas portuguesa agiam com grande beligerância, o General Arnaldo Schulz pretendia fazer uma ofensiva militar à custa de bombardeamentos, Lisboa assegurou-lhe um aumento significativo de efetivos e deu-lhe luz verde para começar o processo da africanização da guerra, com a formação de milícias, depois de caçadores nativos e até de forças especiais; além disso, Schulz não descurou a aliança histórica com os chefes islamizados enquanto desenvolvia um plano de ocupação do território, de ofensivas sobre o Morés e outros santuários. Nas Palavras de Ordem, de 1965, Cabral escrevia: “Temos de destruir tudo quanto pode servir ao inimigo para continuar a sua dominação sobre o nosso povo, mas temos ao mesmo tempo que ser capazes de construir tudo o que é necessário para criar uma vida nova na nossa terra”. Note-se que Cabral foi cuidadoso com as destruições, tinha noção que havia infraestruturas indispensáveis para depois da independência, mas não se coibiu de mandar dinamitar pontes que eram estratégicas para o seu inimigo, caso da ponte sobre o rio Gambiel, que ligava o centro localizado em Mansoa até Bafatá. Cabral encorajou as populações das “áreas libertadas” a aumentarem a produção, a prover a alimentação dos combatentes, a venderem produtos no mercado exterior (fundamentalmente na Guiné Conacri) para se adquirirem bicicletas, sal, sandálias, sabão e tecidos. Em finais de 1966, abastecimento agravou-se, os raides da aviação portuguesa atingiam seriamente a produção e as colheitas, foi por esse tempo que se acelerou a criação de armazéns do povo, criados em 1964.

A questão ideológica ia ganhando premência, Cabral tinha a noção que o trabalho político para elevar o nível dos trabalhadores dava amostras de insuficiência, era preciso mobilizar, divulgar palavras de ordem, estar atento aos problemas e aspirações das populações, era esse o trabalho dos comissários políticos e dos quadros competentes. Ele dirá mais tarde e sem ambiguidades: “Podemos derrotar os tugas em Buba ou em Bula, podemos entrar e tomar Bissau, mas se a nossa população não estiver politicamente bem formada, agarrada à luta como deve ser, perdemos a guerra, não a ganhamos”. Será sempre profundamente crítico pelo trabalho desenvolvido pelos agentes responsáveis pela difusão ideológica, pelas confusões e contradições que estes agentes revelavam na hora de aplicar as diretivas do partido.

O historiador mostra claramente que houve lutar internas e crise de liderança em todo o tempo de luta armada: tentativas de formação de outros partidos, tentativas de assassinato de Cabral, as populações e os combatentes davam sinais de desânimo pois os bombardeamentos afetavam os principais celeiros do PAIGC situados no Sul, no Quitáfine. Davam-se deserções, que chegaram a tomar proporções graves, Chico Té chegou a sugerir a prisão dos familiares dos desertores.

Cabral ia sendo sujeito às críticas feitas à sua liderança. A melhor resposta que encontrou foi o seminário que teve lugar em Conacri, de 19 a 24 de Novembro de 1969, ao qual assistiram quadros políticos e militares, velhos e jovens, Cabral não se escusou a abordar as questões quentes e de denunciar racistas, tribalistas, oportunistas no meio dirigente do PAIGC. Foi autoritário e mesmo dogmático com a questão da unidade Guiné e Cabo Verde, quem não concordava devia abandonar as fileiras do partido. Ciente de que o partido estava infiltrado e que o número de informadores crescia, procurou aumentar a segurança e o controlo internos. A partir de 1970 a estrutura do partido conheceu modificações de monta, o líder do PAIGC acabou com a antiga estrutura composta pelo comité central, o Bureau Político, o comité das inter-regiões com a nova estrutura, na cúspide do poder ficavam três membros fundadores do PAIGC: Amílcar Cabral, Luís Cabral e Aristides Pereira.

Suspende-se aqui os dados biográficos de Cabral, veremos proximamente as tentativas de abertura de uma frente de guerra em Cabo Verde, a questão do socialismo e a construção do Estado no pensamento de Cabral e todo o processo diplomático e discussão interna para se chegar à proclamação do Estado da Guiné. Cabral prosseguia o sonho de se chegar à independência e com o reconhecimento do Estado na Guiné-Bissau obter apoios militares que levassem a presença portuguesa ao seu termo. Será nesse contexto que se urdiu um enormíssimo complô que levará ao seu assassinato, cujos autores morais ainda estão por esclarecer.

(Continua)
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Notas do editor:

Postes anteriores de:

11 de maio de 2020 > Guiné 61/74 - P20964: Notas de leitura (1283): “Amílcar Cabral, Vida e morte de um revolucionário africano”, por Julião Soares Sousa; edição revista, corrigida e aumentada, edição de autor, 2016 (1) (Mário Beja Santos)
e
18 de maio de 2020 > Guiné 61/74 - P20987: Notas de leitura (1284): “Amílcar Cabral, Vida e morte de um revolucionário africano”, por Julião Soares Sousa; edição revista, corrigida e aumentada, edição de autor, 2016 (2) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 1 de junho de 2020 > Guiné 61/74 - P21029: Notas de leitura (1287): “Guerra e política, em nome da verdade, os anos decisivos”, por Kaúlza de Arriaga; Edições Referendo, 1987 (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P21053: Parabéns a você (1818): Antero Santos, ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 3566 e CCAÇ 18 (Guiné, 1972/74) e João Gabriel Sacôto, ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 617 (Guiné, 1964/66)


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Nota do editor

Último poste da série de 7 de Junho de 2020 > Guiné 61/74 - P21050: Parabéns a você (1817): Ernesto Marques, ex-Soldado TRMS da CCAÇ 3306 (Guiné, 1971/73)

domingo, 7 de junho de 2020

Guiné 61/74 - P21052: Em busca de... (306): 1º Cabo Apontador de Metralhadora, nº 03122666, José Manuel Espínola Picanço, CART 1659 (Gadamael e Ganturé, 1967/68) (Mário Gaspar)


Guiné > Região de Tombali > Gadamael Porto > 1967 > Aquartelamento e tabanca em meados de 1967, no início da comissão da CART 1659.

Foto (e legenda): © Mário Gaspar (2013). Todos os direitos reservados. [Edião e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné)


1. Mensagem, de 5 do corrente, do Mário Gaspar, ex-Fur Mil At Art, Minas e Armadilhas, CART 1659, Gadamael e Ganturé, 1967/68: 


Camarada Luís e Camarada Carlos

Vão aparecendo Camaradas da Companhia de Artilharia – CART 1659 (Zorba – “Os Homens não Morrem”. Um deles é o nosso 1º Cabo nº 03122666, José Manuel Espínola Picanço, Apontador de Metralhadora.

Curiosamente recordo o nome, mas não estou a ver a pessoa.

 Peço ao Picanço que me envie o seu E-mail, Morada e Telemóvel.

Por não recordar a pessoa, embora tenha verificado no meu livro “O Corredor da Morte” e na “História da Unidade” e é verdade o Picanço é Zorba.

A CART 1659 estava recheada de bons Militares – Extraordinários Mecânicos Auto, capazes de porem a funcionar algumas das dezenas de viaturas; Carpinteiros e até Pedreiros. A foto [acima] é bem demonstrativa das condições que tínhamos, no início da comissão.

Tudo era improvisado, não existia uma Loja de Esquina. De uma garrafa de cerveja fazíamos um copo; de uma outra garrafa de cerveja nascia um candeeiro; do barril de vinho inventava-se um banco, uma cadeira e até uma mesa. De um bidão fabricávamos tabuleiros para assar.

O nome do Aquartelamento era Gadamael Porto, mas nem sinais existiam de um Porto. Não foi a Engenharia que construiu o nosso Porto, fomos nós que nem sequer éramos engenheiros. Fabricámos o Forno para o fabrico do pão do Aquartelamento de Gandembel, obra do Soldado nº 00747866, António Manuel Magalhães Mendes Cerejo.

Capinou-se; tratámos de melhorar os abrigos; o arame farpado foi colocado mais à frente para termos melhor visibilidade.

Não falo de Guerra, sim do local onde nos mantivemos, e o que fizemos durante a Comissão. Tudo feito sem Horário de Trabalho. Bebíamos cerveja numa barraca e dormíamos, quando era possível, sempre atacados pelos mosquitos.

O camarada 1º Cabo José Picanço, Apontador de Metralhadora, é testemunha. A Zorba podia orgulhar-se não somente dos Apontadores de Metralhadora, Morteiro e Bazuca como de todos os Atiradores e Especialistas. A CART 1659 cumpriu.

Tenho imenso orgulho no Soldado Português, desde aquele que combateu em Angola, Guiné ou Moçambique. No período da Guerra Colonial mantivemos sempre o mesmo armamento e assistíamos ao avanço da tecnologia de armamento do PAIGC.

O Soldado Português possuía a força transmitida pela enxada de trabalho do nascer ao pôr do sol; força de pernas de se deslocar quilómetros sem conta a pé desde a sua Aldeia a povoações mais perto e estava habituado a sofrer.

Lembrar que fui Monitor no RI 14, em Viseu; dei Instrução de Minas e Armadilhas a uma Companhia e a Especialidade à CART 1659. Neste período tentava enganar a Tropa.

Cumpri na Guerra, até na APOIAR, o meu papel.

Um abraço
Mário Vitorino Gaspar

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Nota do editor:

Último poste da série >  7 de abril de 2020 > Guiné 61/74 - P20825: Em busca de... (305): Fur Mil Fotocine Júlio César Fragoso Pereira (Guiné, 1966/67) (Armando Pires, ex-Fur Mil Enfermeiro da CCS/BCAÇ 2861)

Guiné 61/74 - P21051: Blogpoesia (680): "Nem sol a mais", "Minha alma é uma viola" e "Terror do sexo...", da autoria de J. L. Mendes Gomes, ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 728

1. Do nosso camarada Joaquim Luís Mendes Gomes (ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 728, Cachil, Catió e Bissau, 1964/66) estes belíssimos poemas, da sua autoria, enviados, entre outros, ao nosso blogue durante a semana:


Nem sol a mais. 
Nem sal a menos.

Tudo deve ser moderado. 
O elástico rebenta 
Se for demais esticado.

Mais vale esperar um minuto, 
Que a chuva passe 
Que apanhar uma molhadela 
De ir para a cova.

Sossega-se mais 
Com uma vida cheia 
Que andar ao alto 
E morrer à seca.

Quantas vezes se ganha mais 
Em não ir à feira. 
Porque a boa sorte, 
Bate sempre à porta 
Quando passa. 

Berlim, 6 de Junho de 2014 
8h57m 
Joaquim Luís Mendes Gomes

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Minha alma é uma viola

É uma viola a alma que eu dedilho com estes dedos mortais.

Suas cordas tocam as melodias que só minha mente ouve.

Adormeço com meu cansar dos dedos... 
e sonho tocando versos 
que apenas são sonho.

Quero tocá-los 
e cantá-los nestas cordas tensas. 
Até que rebentem.

Escrevo-os na pauta de cada dia 
e os solto ao vento, 
como quem abre a porta duma gaiola.

Fico a vê-los desaparecer 
no ar. 
Não sei para onde eles vão. 
Tenho a esperança 
de que poisem nos quintais e hortas 
onde há pão e vinho 
para colher.

De casinhas brancas, 
com portas e janelas rubras, 
brilhando ao sol...

Lá dentro, só Deus sabe o que se passa.

Sejam a bênção... 
a palavra certa na hora certa... 

ouvindo a diva Maria Betânia... 
Berlin, 6 de Junho de 2015 
14h24m 
Joaquim Luís Mendes Gomes

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Terror do sexo...

O sexo domina o mundo. 
Tudo gira à força dele. 
Se brota do coração, 
É o amor que reina.

Se não, é o terror do mal. 
Egoísta. 
Dominador. 
Tudo devora.

Gera só ódio. 
É o pai da guerra. 
Tudo avassala. 
Erva daninha. 
Se sobe ao poder, 
Espalha o terror 
Sem qualquer escala.

O mundo é pequeno. 
Para tamanha avidez. 
Nada respeita. 
Tudo conquista 
Para sua mesa.

Desfaz a presa. 
Goza com ela. 
E joga fora. 
Pior que a selva.

Joga a dinheiro. 
Vai para o casino. 
Desbarata tudo. 
Fica feroz.

E volta de novo. 
Se veste de santo. 
Como um senhor. 
Assalta inocentes. 
Despe-os ao frio.

Joga-os fora 
Volta ao governo. 
Como um malvado. 
Tudo lhe serve 
Para seu reinado.

Como seria o mundo, 
Se o amor brotasse 
Do coração do rei!... 

Berlim, 5 de Junho de 2014 
14h29m 
Joaquim Luís Mendes Gomes
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Nota do editor

Último poste da série de 4 de junho de 2020 > Guiné 61/74 - P21040: Blogpoesia (679): 1.º Dia de praia Covid (José Ferreira da Silva, ex-Fur Mil Op Esp)

Guiné 61/74 - P21050: Parabéns a você (1817): Ernesto Marques, ex-Soldado TRMS da CCAÇ 3306 (Guiné, 1971/73)

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Nota do editor

Último poste da série de 6 de Junho de 2020 > Guiné 61/74 - P21046: Parabéns a você (1816): Belarmino Sardinha, ex-1.º Cabo Radiotelegrafista do STM/CTIG (Guiné, 1972/74)

sábado, 6 de junho de 2020

Guiné 61/74 - P21049: Boas Memórias da Minha Paz (José Ferreira da Silva) (13): Pequenos caprichos - I : Concurso de pesca na Foz do Rio Zaire

Ponta do Padrão S. Jorge na Foz do Rio Zaire


1. Em mensagem do dia 18 de Maio de 2020, o nosso camarada José Ferreira da Silva (ex-Fur Mil Op Esp da CART 1689/BART 1913, , Catió, Cabedu, Gandembel e Canquelifá, 1967/69), enviou-nos esta Boa memória da sua paz, a segunda relembrando os seus bons tempos vividos em Angola


BOAS MEMÓRIAS DA MINHA PAZ - 12

PEQUENOS CAPRICHOS - I

Todos os caprichos são pagos. Uns mais que outros.
Uns valem bem o que custam e outros nem por isso.
No entanto, é através deles que nos ultrapassamos, nos satisfazemos ou nos vangloriamos. Por outro lado, os caprichos são valorados conforme as suas circunstâncias e as suas possibilidades.
Adiante, que também não tenho a pretensão de filosofar.

Concurso de pesca na Foz do Rio Zaire

Desde que cheguei a Cabinda, foquei logo a pesca como tempo de lazer. Sozinho ou acompanhado pela minha Mulher, acabei por me relacionar com outros que comungavam do mesmo prazer. O grupo foi-se alargando com a mobilização para convívios. Não levou muito tempo para organizarmos concursos.
O entusiasmo dos concursos de pesca acentuou-se e tornou-se notório, chegando a merecer transmissões em directo pela rádio. (Não havia televisão…)
De sucesso em sucesso e com a colaboração da Delegação da Direcção Geral dos Desportos, fomos experimentando as praias ao longo da costa Cabindense e, até, as lagoas no interior.

Um dia, querendo ir mais além:
- Porque não irmos a Santo António do Zaire, atravessar o rio e participar lá num concurso?

Partimos de madrugada, num rebocador da firma Montez & Newman, para fazermos aqueles 60 quilómetros de costa congolesa.

Os pescadores de Cabinda foram de rebocador a Santo António do Zaire, participar/colaborar num concurso

Tudo normal, até que nos apareceu aquela corrente monstruosa vinda da foz do Rio Zaire, com o maior caudal do Mundo. Indescritível, sentirmo-nos tão pequeninos naquela diminuta “casca de noz” de 35 metros, a subir e a descer aquelas montanhas de água em movimento. Quase toda a gente vomitava, mas eu não me distraía a olhar as águas. Sentadinho na borda e bem agarrado, olhava bem para longe, seguindo a experiência de anteriores navegações. Porém, o meu amigo Carlos Guerra veio ao meu encontro, cambaleando, mas bem agarrado, sentou-se na minha frente e, já esgotado de tanto sofrimento e a afagar a barriga, diz-me:
- Estou “fodidinho” de todo. Nunca me senti tão enjoado em toda a minha vida.
Aí “explodi e sulfatei” tudo o que havia à volta. Foi uma pena, porque já não faltava muito para chegarmos.

Havia uma equipa de repórteres da Rádio Clube de Cabinda que, perante a dúvida de conseguirem entrar em directo a partir de bordo, mas com a certeza do que iria acontecer, deixaram na sede uma gravação simulando o tal “directo”. E “em cima do acontecimento”, transmitiu: “ …neste momento, a viagem está a ser difícil para as mulheres, que estão todas enjoadas e em sofrimento. Por acaso nós, os homens, estamos a saborear bem este doce embalar…”.

Padrão de S. Jorge na Ponta Padrão da Foz do Rio Zaire, assinalando a chegada de Diogo Cão, no ano de 1482. A largura do Rio Zaire, na sua foz é tão grande que não se vislumbra a outra margem. Diogo Cão flectiu para o interior, convencido de ter atingido o ponto mais a sul de África (Cabo da Boa Esperança).

Os pescadores de Cabinda não faziam ideia do tamanho dos peixes que passam pela foz do Rio Zaire.
Colocadas as canas na praia, aguardámos a subida da maré e a consequente entrada dos peixes. E, quando isso aconteceu, foram vários os pescadores que ficaram sem fio e outros sem a cana. Nem dava para lutar com os peixes. Eles levavam tudo.
Valeu-me o facto de ter um fio grosso (especial 90), com tenso de aço. Eu estava bem seguro e com o alicate cortante à mão para não ficar sem cana. Sobravam poucos metros para além das ondas e da praia. E, por isso, não podia atirar para muito longe.
Os pescadores locais, foram tirando alguns peixes: corvinas, sapudos e raias. Tudo isso dava pouca pontuação. Todos se queixaram que fora um dia de pesca para esquecer.
Diziam: - Hoje não deu nada.
Fisguei um pargo e não o larguei mais. Era relativamente pequeno (14,2Kgs) mas tinha uma pontuação elevada. E foi por isso que venci o concurso.

No final, quando vínhamos pesar o peixe, já se sabia quem ia ganhar.
Oiço o repórter, no seu directo:
- Ganhou o do costume (eu já tinha ganho 2 concursos, na altura como atleta da Rádio Clube de Cabinda). Foi aquele atleta que nos trocou pelo Clube da Câmara Municipal. Mas isto não vai ficar assim, porque a RCC ainda não recebeu o dinheiro da transferência.

Primeiro triunfo na Pesca


Quando Campeão de Cabinda, fui felicitado pelo Governador Brigadeiro Themudo Barata.

Equipa da Câmara Municipal de Cabinda com o pargo de 14,2Kg que nos deu o 1.º lugar em Santo António do Zaire

No banquete organizado/oferecido pelo Governo Civil de Santo António do Zaire, recebemos os prémios e lindos discursos assinalando o evento inédito.
Já no regresso, noto algumas ausências. Entre elas, a dos repórteres da RCC.
Perguntei por eles e informaram-me: - Ficaram tão acagaçados que preferiram ficar cá até que haja avião para Cabinda.

(Continua)

José Ferreira
(Silva da Cart 1689)
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Nota do editor

Último poste da série de 30 de maio de 2020 > Guiné 61/74 - P21024: Boas Memórias da Minha Paz (José Ferreira da Silva) (12): Feliz em África - II (e sem filmes)

Guiné 61/74 - P21048: Os nossos seres, saberes e lazeres (396): Em frente ao Vesúvio, passeando por Herculano e Ravello (7) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 11 de Novembro de 2019:

Queridos amigos,
É verdade que as palavras se gastam e que, tantas vezes, as imagens se sobrepõem e as substituem com mais clarividência. Aqui estamos a despedir-nos de Vila Rufolo, e com pesar. Quando se percorre a torre-museu percebe-se rapidamente como o milionário escocês que adquiriu um sítio completamente degradado o reconfigurou para o romantismo oitocentista, e com pleno sucesso.
Tornou-se visita obrigatória para gente de todas as posses, foi exaltada por artistas plásticos e escritores, e não é por acaso que se sobe a torre-museu com os acordes da ópera Parsifal de Wagner.
Daqui se vai partir para Villa Cimbrone, onde outro britânico recriou beleza sempre tendo como referências Villa Rufolo e a igreja de San Francesco, de origem gótica mas reconstruída no século XVIII. Às panorâmicas que estas duas vilas oferecem, o guia Michelin não hesitou: três estrelas, o máximo da grande beleza, do grande espetáculo, selo de que é sublime.

Um abraço do
Mário


Em frente ao Vesúvio, passeando por Herculano e Ravello (7)

Beja Santos

O Guia Michelin concede três estrelas a Ravello, esse local maravilhoso a escassos quilómetros de Amalfi, outrora a República Marítima de Amalfi, fundada no século IX, chegou a ter Doge. O guia dá três estrelas a esta vista espetacular, dizendo que todo este vastíssimo balcão está suspenso entre o céu e o mar e pelo que oferece é inesquecível. Tão aprazível para a contemplação, foi escolhido por artistas como D. H. Lawrence, Graham Greene, Gore Vidal, Hans Escher e Joan Miró. Notará o leitor que há uma espécie de manchas na imagem, o balcão está envidraçado, a queda será mortal.


Continuamos em Vila Rufolo, a vila erigida no século XIII pela família Rufolo de Ravello, chegou a ser a residência de verão de Papas e de Carlos d’Anjou. Já falámos do panorama de que se desfruta sob o Cabo Orso, a Baía de Maiori e o golfo de Salerno. O industrial escocês Francis Nevile Reid transformou um lugar arruinado num portentoso espaço romântico, aproveitou-se do edifício original, uma perfeita síntese da arquitetura árabe, siciliana e românica, fez conservar as ruínas, veja-se nesta imagem a Sala dos Cavaleiros dentro do jardim que é uma verdadeira exaltação do romantismo oitocentista.


Esta torre-museu foi muito bem adaptada para conservar a memória histórica de Vila Rufolo até à sua readaptação como casa romântica. É um prazer para os olhos e não menos para a vista e para o ouvido, acompanham-nos em permanência as sonoridades da ópera Parsifal, de Wagner, que se inspirou neste jardim, e no balcão mais alto o que se avista não é traduzível em palavras.



Era timbre do romantismo, basta que o leitor se lembre das transformações introduzidas pelo rei D. Fernando, marido da rainha D. Maria II, no Castelo dos Mouros, em Sintra. A região sofreu brutalmente com o terramoto de 1755, D. Fernando mandou aproveitar todas as ruínas e embelezou-as. Mas não foi só ele, se o leitor já visitou o Palácio de Monserrate, encontrou ruínas e excertos que faziam parte do mesmíssimo ideal romântico. O milionário escocês mandou conservar as ruínas dos balneários onde havia o banho turco e todo o complexo do andar inferior da casa, ao nível do jardim, tudo com ar misterioso, um tanto gótico, dá para ver o nível inferior do claustro e imaginar a construção medieval da família Rufolo.



Era também timbre do romantismo não deitar fora vestígios do passado remoto, por aqui se escreveram lápides em latim, era o inglês do mundo medieval e moderno, inserida entre ruínas esta lápide acentua esse mesmo passado remoto.



O viandante detém-se nesse ponto alto que é o jardim superior, atravessou o Belvedere onde no verão se realizam eventos do festival de música de Ravello, imagine-se o que é um palco nesta altura, ouvir bela música, olhar as montanhas e o mar sereno. Estão mais do que justificadas as três estrelas legadas pelo Guia Michelin a esta sumptuosidade visual.



E vai começar o passeio pela Villa Cimbrone, as outras três estrelas do Guia Michelin em Ravello. A Villa foi construída no início do século XIX por Lord William Bechett num estilo eclético que remete para Villa Rufolo. Ficamos hoje por aqui, percorreu-se uma álea encantadora que liga a Piazza Vescovado à Villa até se chegar ao balcão. É o mesmo esplendoroso panorama sobre Maiori, o Cabo Orzo e o Golfo de Salerno, um tanto a pique também se podem ver os terraços cultivados, mas é a extensão do Mar Tirreno e a mesma serenidade que já se sente em Villa Rufolo que nos lava a alma. E não apetece sair daqui.


(continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 30 de maio de 2020 > Guiné 61/74 - P21022: Os nossos seres, saberes e lazeres (395): Em frente ao Vesúvio, passeando por Herculano e Ravello (6) (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P21047: Fotos à procura de... uma legenda (128): Mansoa, 9 de setembro de 1974: O PAIGC a fazer a continência à bandeira portuguesa


Guiné > Região do Oio > Mansoa > CCS/BCAÇ 4612/74 (12jul74-15/10/74) > 9  de setembro de 1974 > Cerimónia da entrega (simbólica) do território aos novos senhores da Guiné, o PAIGC, e da retirada, ordeira, digna e segura, das últimas tropas portuguesas. Mansoa, em pleno coração do território, na região do Oio, serviu perfeitamente para esse duplo propósito...

É  uma foto histórica, em que se vê o nosso coeditor Eduardo Magalhães Ribeiro, fur mil op esp / ranger, a arriar a bandeira verde-rubra. (O MR é membro da nossa Tabanca Grande, há mais de 15 anos, desde 1/11/2005 (*)...E de um lado e do outros,  os antigos inimigos fazem a continência à bandeira verde-rubra.

Foto (e legenda): © José Lino Oliveira (2020). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Comentários ao poste P21028 (*):

Valdemar Queiroz:

Não sei se existem outras fotografias do último arriar a Bandeira na Guiné, mas nesta fotografia vemos algo de extraordinário: os militares do IN também fazem a continência ao último arriar da Bandeira Portuguesa.

Valdemar Queiroz
Cherno Baldé:

Caro Valdemar,

O que é mais "extraordinário" (desculpem a redundância) ??? (**)

O facto de o PAIGC (militares do IN, dizes tu) fazer a continência ao arriar da Bandeira Portuguesa ou o inverso. Isto aconteceu repetidamente nessa fase da entrega dos quartéis e do território. Eu, ainda criança de 13/14 testemunhei o acto na minha terra e, como se lembram, desabafei num dos meus escritos (memórias de infância) dizendo que "provavelmente, na historia dos conflitos armados, era a primeira vez que a parte derrotada estava contente com a sua derrota".

Quanto ao PAIGC, se lhes pedissem, nessa altura, que tirassem as cossadas calças da farda cubana que usavam para levar no c.... acediam de boa vontade, porque sabiam que, dentro de poucos dias, seriam os donos daquilo tudo, para abandalhar como so eles sabem fazer.

Por outro lado quero esclarecer que, o nome correcto do Comissário Político na imagem é Manuel Nandigna (não Ndinga), já falecido, filho de um controverso e poderoso Régulo ou Chefe Balanta do Sul do pais (Afuam Nandigna), que colaborava com o regime colonial e, nesta qualidade, tinha granjeado muita estima e consideração junto das autoridades do território. 

Teve muitos filhos/as que foram depois estudar na Europa, incluindo Portugal, antes e depois da independência. A fama dos seus actos e a impunidade de que gozava era tão gritante que depois quando alguém era apanhado em flagrante num delito de abuso de poder dizia simplesmente: Sim, é a Afuam Nandigna, e depois ???... E depois, nada acontecia.

Assim, pouco a pouco, a Guiné foi-se abandalhando a Afuam Nandigna ou melhor a Afuam PAIGC.

Um abraço amigo,
Cherno Baldé
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Guiné 61/74 - P21046: Parabéns a você (1816): Belarmino Sardinha, ex-1.º Cabo Radiotelegrafista do STM/CTIG (Guiné, 1972/74)

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Nota do editor

Último poste da série de 5 de Junho de 2020 > Guiné 61/74 - P21041: Parabéns a você (1815): Manuel Traquina, ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 2382 (Guiné, 1968/70)

sexta-feira, 5 de junho de 2020

Guiné 61/74 - P21045: O nosso blogue como fonte de informação e conhecimento (73): Pesquisa documental para um filme sobre a Cesária Évora (Mindelo, 1941 - Mindelo, 2011)


Cabo Verde > Mindelo > Cesária Évora, na Rádio Barlavento,  20 de junho de 1971.
Foto: cortesia da página oficial de Cesária Évora


1. Mensagem da nossa leitora Rosa Silva:

Date: quinta, 14/05/2020 à(s) 17:58
Subject: Pesquisa documentário Cesária Évora

Olá, boa tarde a todos.

Em primeiro lugar espero que se encontrem bem de saúde.

Chamo-me Rosa Silva e estou a trabalhar na produção de um documentário sobre Cesária Évora. Trata-se de um filme,  de cariz cinematográfico, que propõe uma viagem ao universo de Cesária Évora.

Pensado para cinema, o filme pretende revelar a verdadeira história da mulher que, aos 50 anos, saltou da mais profunda miséria para o estrelato mundial, sendo uma das mais consagradas cantoras de um país de língua oficial portuguesa. 

Assim, temos levado a cabo uma vasta pesquisa de material de arquivo em diversos países. O filme conta com autoria e realização de Ana Sofia Fonseca, sendo produzido pela Carrossel Produções, em co-produção com a Até Ao Fim Do Mundo.

Encontrei este blog:

https://blogueforanadaevaotres.blogspot.com/2009/09/guine-6374-p5021-meu-pai-meu-velho-meu.html

Estamos à procura de imagens do Mindelo anos 60/70 e também fotografias e vídeos que possam existir da Cesária Évora. Temos a informação que ela dava concertos nos barcos, bares. Por ventura têm imagens do que refiro ou têm conhecimento quem possa ter?

Ficaríamos muito gratas com a vossa preciosa ajuda.

Aguardo o vosso feedback. Obrigada,

Rosa Silva

rosasilva@ateaofimdomundo.com

Até ao Fim do Mundo - Imagens e Comunicação, Lda

Rua da Fraternidade Operária, nº4
2794-024 Carnaxide - Portugal
Tel: +351 21 425 47 77
Telm: +351 966 230 699
www.ateaofimdomundo.com

2. Resposta do nosso editor Luís Graça, em 24 de maio p.p.:

Rosa, olá. Obrigado pelo seu mail. Infelizmente, não sei se a poderei ajudar muito...Este blogue, coletivo, que eu fundei há 16 anos, administro e coedito, é sobre a(s) memória(s) da guerra colonial, em especial na Guiné, no período de 1961/74...

Alguns dos meus camaradas de armas (incluindo eu próprio) também tiveram os pais em Cabo Verde, como expedicionários na altura da II Guerra Mundial, em São Vicente, Santo Antão e Sal, mais exatamente entre 1941 e 1944... Na altura também lá esteve o futuro escritor Manuel Ferreira. Mas a nossa querida Cesária Évora estava então  a nascer (Mindelo, 27 de agosto de 1941)...

Há, no entanto, um espólio fotográfico, no nosso blogue, que a vossa equipa pode usar, com uma única condição: citação da fonte, o blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné.

Ver aqui descritores como:

Cabo Verde (335)
crioulo (72) 
Manuel Ferreira (12)
Meu pai meu velho... (85 referências)
Mindelo (39)
morna (14)
RI 23 (3)

E ainda:

Adriano Lima (15) (coronel, reformado, do exército português, oriundo do Mindelo...Acaba de publicar um livro sobre as tropas expedicionárias em Cabo Verde, na II Guerra Mundial)...

Disponha. Tem aqui o meu contacto: telem 931 415 277.

Boa saúde, bom trabalho, bom filme. Luís Graça

PS - Rosa, podemos publicar o seu apelo : temos vários camaradas que passaram por Cabo Verde durante a guerra colonial, 1961/74... Se autorizar, podemos publicar no blogue... Diga-me qualquer coisa...

3. Resposta da Rosa Silva, com data de 26 de maio p.p.:

Caro Luís,

Muito obrigada pela sua resposta e parabéns pelo seu trabalho. Guardar memórias, organizar o arquivo, é algo que considero muito valioso e dá sentido ao material recolhido

Quanto ao documentário sobre Cesária vamos continuar a pesquisar.

De qualquer modo, obrigado pelas suas  sugestões. Seria muito importante publicar no seu blogue e ficaria muito grata. Se quiser pode dar os meus contactos:

Mail rosasilva@ateaofimdomundo.com
Telem: 966230699


PS - Indicaram-me estes nomes de militares, mas mais do início dos anos 60,  que estiveram em S. Vicente. Dizem-lhe alguma coisa? Alguma sugestão para eu pesquisar e chegar até estas pessoas?

Coronel de Infantaria Fernando Gil Almeida Lobato de Faria
Coronel de Infantaria Domingos José Cravo
Coronel de Artilharia Humberto Rosa Neto
Tenente de Infantaria Joaquim Simões Duarte
Coronel António José Santiago Maia de Simas
Tenente Santiago Maia
Tenente Coronel, ao tempo, alferes, Manuel Augusto Gamboa de Matos, subalterno da Companhia de S. Vicente
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Guiné 61/74 - P21044: Escritos do António Lúcio Vieira (6): Rua da memória

António Lúcio Vieira (1943-2020)
António Lúcio Vieira (1943-2020), foi Fur Mil Cav na CCAV 788 / BCAV 790. 
Natural de Alcanena; viveu em Torres Novas. 
Jornalista, poeta, dramaturgo, encenador; autor, entre outros, do livro "25 poemas de dores e amores", vencedor da primeira edição do Prémio Literário Médio Tejo Edições, 2017. 
Faleceu ontem.

Deixamos este poema de sua autoria que nos foi enviado pelo seu amigo e nosso camarada Carlos Pinheiro.


"rua da memória"

não eram ainda os dias iluminados
da quinta das altas faias
dos mistérios das grutas
nos Olhos d’Água
dos poeirentos trilhos de aventura
nas terras dos Arneiros

o meu mundo era então apenas
nos tímidos dias de acordar
a singular rua onde nasci
e onde o sossego das horas
ecoava entorpecente pelas tardes

o meu pai montava altivo
uma Norton vermelha
de másculo motor
em cujo dorso voei aventuras
e de onde se libertavam odores
que ainda não esqueci

ao fim da tarde escancarava-se
rangente a larga porta da rua
com postigo de vidraças
e a moto vermelha entrava

levada pela mão cruzava a sala grande
seguia pelo corredor
até se deter em discreto canto
na imensa sala da lareira
junto à varanda das flores
por onde se filtrava a luz da tarde

não havia outro local onde guardá-la
e aquele espaço de forno e lareira
chão de soalho e cimento
era afinal quase meia casa

na salinha de costura
a avó Antónia suspendia o passajar
que a hora do jantar era já breve
e deslizava até à rústica bancada
junto ao forno onde no Natal
nasciam as negras broas com sabor a festas

lá fora a pequena rua
calçada de seixo castanho
ia então escurecendo
quando os restos de luz desmaiada
escorriam agonizantes
no alpendre da ti’Ludovina

um pouco abaixo
a noite chegava mais tarde
quando o sol se derramava
por detrás da vivenda com jardim
debruçada sobre os longos degraus

pequena quase envergonhada e discreta
a minha casa escondia-se no patamar
entre os dois lances da larga escadaria
e toda a encantada rua era calçada
em seixos que brilhavam com a chuva
arredondados polidos e castanhos

subia-se por ela ao Outeiro
e por ali se descia rumo à ladeira da fonte
ou à praça à Parreira à Varandinha
e ao miradouro à boca das Ladeiras

ao fundo dos degraus junto à padaria
e frente ao ladino alfaiate
no pequeno e fundo rés-do-chão
da “menina” Henriqueta
longe ainda dos tempos da escola
rasguei deslumbrado horizontes
e parti à descoberta das primeiras letras
que não mais me dariam tréguas

numa estreita serventia sem saída
logo acima dos degraus de cima
recolhia o meu avô António em acanhado e escuro palheiro
com cheiro a esterco a fava seca e a feno
a burra branca malhada que
resignada e pachorrenta me levava à horta e à fazenda
para as bandas do Peral

nas tardes de colher o sol
e soltar no regato barcos de papel
precursores das mil viagens
de um incurável vadiar

era porém pelos santos de verão
que a rua despertava e gritava vida
a Inês juntava braçados de alecrim
no cimo da rua incandescia-se a fogueira
onde se queimavam risos e alcachofras

noite dentro pulava-se o braseiro
a gaita de beiços do Fura-Palha
enchia de modas aquele recanto do Outeiro
vinha gente de outras ruas
debicar broas e fritos
e beber os prazeres da noite

espargiam-se os corpos
de fumos e de aromas
dos arbustos do campo
e a música e o perfume silvestre
ungiam a rua invadiam as casas
e seguiam pelas travessas tortuosas
ao encontro das sombras nas esquinas

já só as paredes recordam
a velha escola da menina ”Requeta”
e os fatos por medida do mestre Louro

mudaram-se as pessoas
secou a hera na parede do Polaco
e ninguém por lá agora lembra
a burra malhada do avô António

no patamar de seixo
as paredes do número onze
que em distante Janeiro me viram chegar
tombaram vencidas
num monte de escombros
restou-lhe de pé um rosto amarelo
e uma outra porta de postigos
debruada com vasos de flores

do saudoso tempo
partiram os rostos e as vozes
e daquele povo que a rua acolheu
já ninguém lá mora
sem dó levaram os seixos
brilhantes em dias de chuva
e vieram automóveis
violar a castidade da minha rua

é assim
tudo envelhece e se transforma
olham-se agora outros rostos
e até as ruas como a minha
sofrem incúrias e vexames
que as ruas têm alma e corpo
e adoecem e morrem
quando os homens querem

a minha rua de brincar
que o menino infante sonhava assim para sempre
não é agora mais que um espaço
maculado e raso de saudades
o resto de um passado
do pequeno sonhador
que bem cedo perdeu a inocência

a minha Rua da Cova
bem podia chamar-se agora
sei lá rua do Berço ou rua dos Sonhos
da Utopia da Saudade talvez da Inocência
ou apenas Rua da Memória

António Lúcio Vieira
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Nota do editor

Último poste da série de 1 de dezembro de 2019 > Guiné 61/74 - P20405: Escritos do António Lúcio Vieira (5): Alvorar

Guiné 61/74 - P21043: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (5): A funda que arremessa para o fundo da memória

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 19 de Maio de 2020:

Queridos amigos,
Romance é romance e nestas coisas de ter a faca e o queijo na mão, de poder aproveitar a experiência de conhecer uma cidade, e haver mesmo uma faísca de verosimilhança quanto àquele encontro que provocou outros encontros, e deu origem a um caderno cheio de garatujas que se relevou imprestável, pois toda a escrita ficou adiada até 2006, aí cantou outro galo, quando me comprometi com o Luís Graça a repor até ao mais ínfimo pormenor aqueles 26 meses de Guiné. E confesso que houve para ali uma alegria esfuziante, naquele fim de século, quando tudo levava a crer que a realidade superava a ficção e que daquele encontro frutificaria um romance encantado.
O que então não aconteceu passa a acontecer, o bordão da imaginação assegura certos devaneios para se voltar à Guiné e sentir o soar das nossas passadas, atravessando mares de capim, laterite que parece pó de talco que se entranha em todos os poros do corpo, é sempre bom momento para render homenagem a quem tão fielmente me acompanhou nas venturas e desventuras.

Um abraço do
Mário


Esboços para um romance – II (Mário Beja Santos):
Rua do Eclipse (5): A funda que arremessa para o fundo da memória

Mário Beja Santos

Cher Paulo Guilherme, estou encantada com o seu regresso previsto para daqui a uma semana, já me disse ter reservado bilhete, vem sexta-feira de manhã, ainda não sei se estou disponível nesse dia, provavelmente não, tenho na minha agenda marcação no Conselho Económico e Social Europeu, funciona na Rua Ravenstein, provavelmente só estarei disponível depois das 17 horas, vou esclarecer a situação, tenho muito gosto em que jante na Rua do Eclipse. Achei curioso, o relato que me fez da sua infância, ter escrito que a sua avó paterna era uma judia sefardita que se converteu. Até agora não veio a propósito, mas sou descendente de judeus. O meu apelido é Cantinaux porque os meus pais não tinham sido até perto da libertação de Bruxelas molestados, por uma razão muito simples. O meu pai, de nome Jacob, era membro da direção do Partido Comunista da Bélgica, fazia parte da resistência, saiu discretamente de Bruxelas no início de 1944. A minha mãe e os meus avós, pais dela, viviam na Avenida Georges Petre, imagine, com nomes falsos. Temendo uma denúncia de informadores leais ao Partido Rexista, quando eu nasci, em 16 de fevereiro, a minha mãe, não tinha eu ainda quinze dias, após uma conversa com uma amiga, aquela que vai ser a minha primeira mamã, Sara Poncelle, levou-me discretamente para o bairro típico de Marolles, o Paulo Guilherme conhece-o perfeitamente, sempre que cá está e não está mau tempo não perde a feira de velharias, que funciona todos os dias, mas é mais abundante aos sábados e domingos. Aí vivi, penso que vai ficar surpreendido, até ao fim da guerra, os comunistas belgas juntaram-se aos holandeses, o meu pai arriscou tudo. A minha mãe e os meus dois irmãos partiram para o fundo das Ardenas, a vida em Bruxelas era intolerável, um racionamento violento, houvera mau ano agrícola, em casa dos Cantinaux não me faltou nada.

Avenida Georges Petre, comuna de Saint-Josse, Bruxelas

Bairro de Marolles, Rua do Falcão, Bruxelas

Desfile alemão em frente ao Palácio Real, Bruxelas

Hitler cumprimentando Leon Degrelle, o seu aliado belga do Partido Rexista


Na verdade, só em 1948 é que voltei à vida familiar dos Altermann, não sei verdadeiramente explicar as razões que fundamentaram a decisão do meu pai de eu não ter o seu nome de família. Como sabe, a Bélgica depois da II Guerra Mundial viveu inúmeras tensões, Leopoldo III teve que abdicar no seu filho Balduíno, agudizaram-se as relações entre valões e flamengos. O antissemitismo não desapareceu, ficou atenuado, ainda pairava no ar o espetro das forças leais a Hitler e que comungavam das suas ideias raciais. O meu pai nunca desfaleceu com os seus princípios comunistas, mesmo quando o partido, tão prestigiado como força da resistência, se foi afundando eleitoralmente. Não sei se sabe que houve um abaixo-assinado, um pouco antes do Partido Comunista da Bélgica se dissolver, com o impressionante número de nomes relevantes de partidos de todos os quadrantes, intelectuais e artistas, e até empresários, que apelavam a que o Partido Comunista não desaparecesse da cena política devido aos serviços inultrapassáveis que prestara à Pátria. Jacob viveu amargamente todo este período, faleceu em 1984, vivendo sempre na maior das simplicidades, nunca assumindo qualquer jactância pelos seus atos de bravura.

Fiz o ensino liceal, frequentei depois a Universidade Livre de Bruxelas, atraída pela filologia germânica, o meu pai e os meus avós eram fluentes nesta língua, a minha mãe, de nome Juliette, nascida em Metz, comunicava comigo em francês e tinha primos que preferiam falar comigo em flamengo. É então que descubro esta faculdade para estudar línguas, juntei ao francês o flamengo e alemão, seguiu-se o inglês e depois atirei-me ao italiano, só muito mais tarde é que me apliquei no espanhol e no português.

Chega de o aborrecer com as minhas origens e a minha formação. Lembrei-me, já que me disse que gosta muito de passear na Floresta de Soignes, eu preferia sábado pela simples razão que domingo ao anoitecer parto para o Luxemburgo, tenho anotado um dia de trabalho de um comité farmacêutico qualquer todo o dia, depois regresso a Bruxelas. Podíamos ir a pé à comuna de Watermal-Boitsfort, arrumo aí o carro, entramos pelo parque Tournai-Solvay e passeamos até Rouge Cloître, há aí locais simpáticos para almoçar, aliás, contou-me que os seus amigos desta região lhe propõem estas caminhadas, fica tudo dependente do bom tempo, é uma simples proposta. Há outras sugestões, evidentemente, passear pelo Mercado do Midi é fascinante, ainda por cima já me disse que gosta muito de flores, é um espetáculo, passa pela carne, o peixe, os legumes e a fruta de todas as proveniências e depois temos o mundo floral, ouve-se o árabe, o espanhol e o português muitas vezes, há muitos estabelecimentos portugueses nesta região do Midi, não ignorará. Se preferir começar o dia assim, tenho aqui a lista de boas exposições, é só escolher. Se estiver mau tempo, terei muito gosto em o acompanhar a essas lojas de livros e discos em segunda mão e como me disse que ainda não visitou o Museu da Banda Desenhada, é outra hipótese.

Imagem antiga da Floresta de Soignes, o grande pulmão de Bruxelas

Loja de livros usados no Boulevard Lemonnier

Mercado do Midi, Bruxelas

Antes de me despedir, quero-lhe dizer que fiquei muito impressionada com a descrição da sua viagem no início de agosto de 1968, parece-me que num batelão, numa viagem de dez horas, como observou, correndo vários riscos de vida naquilo que chamou o Geba estreito, onde esses barcos podiam ser fortemente atacados. Li atentamente o que me mandou sobre a sua chegada a um local chamado Bambadinca, a missão que lhe deram, até o felicitaram, seria um local de férias desde que garantisse que naquele ponto do rio os barcos civis e militares nunca fossem atacados. Achei muito interessante a descrição que fez da viagem até ao destacamento de Finete, a sessão de cumprimentos com reverências, a sua aflição quando viu o estado miserável do que chamou sistema defensivo, tudo a cair e mantido num enorme desleixo; não esquecerei os pormenores da tal viagem desde que atravessou de canoa o rio e entrou por o estreito trilho onde a viatura não podia cometer nenhum deslize, senão caía dentro dos arrozais; e depois a chegada a Missirá onde o chefe local o recebeu de forma cerimoniosa e lhe entregou uma espada que o Paulo prontamente devolveu dizendo que os poderes dele eram invioláveis, a sua missão ali era defender aquele pequeno povo e impedir o avanço da guerrilha. Estamos em agosto de 1968. O Paulo arranca o seu romance com o nosso fortuito encontro. Há dias dei comigo a pensar num filme de que já vi duas versões, intitulado Breve Encontro, gostei mais da primeira versão, a de David Lean com Célia Johnson e Trevor Howard, ela recebeu Óscar, uma versão empolgante pelo arrebatamento emocional que nos provoca. A grande diferença entre eles e nós, permita-me o gracejo, eles eram casados e recuaram, foi uma separação dilacerante, lembrança que jamais se apagou; mas nós os dois somos livres de escrever o nosso livro aberto que aponta para o futuro, não devemos concessões a ninguém.
Continue de boa saúde, escreva mais coisas, é um prazer receber o seu correio, os seus telefonemas, gosto muito da companhia que me dá, e nunca deixe de pensar que tudo começou naquele fortuito encontro em que era preciso encontrar um ser de carne e osso para contar a sua experiência numa guerra, algures, num ponto diminuto dos trópicos. Bien à vous, Annette

Porto de Bambadinca por volta de 1914

O porto de Bambadinca nos tempos da guerra, imagem pertencente a Mourato de Oliveira, publicada no nosso blogue, com a devida vénia

(continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 29 de Maio de 2020 > Guiné 61/74 - P21019: Esboços para um romance - II (Mário Beja Santos): Rua do Eclipse (4): A funda que arremessa para o fundo da memória