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“Memórias Virtuais. Representações digitais da guerra colonial”
Trabalho de campo. Entrevista a Cherno Baldé, colaborador permanente do Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné
(com a devida vénia...)
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Cherno Baldé economista, Bissau. Tem 260 referências no blogue.
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1. Conte um pouco da sua história pessoal.
R: Esta parte tu podes encontrar no Blogue de forma mais desenvolvida e com todos os detalhes que eu poderei completar caso vier a ser necessario.
Eu nasci em meados de 1959/60, na aldeia de Farimbali, arredores da vila de Fajonquito, no sector de Contuboel, região de Bafatá.
Comecei a dar os primeiros passos e conhecer o mundo a minha volta na nova aldeia fundada pela familia que recebeu o nome de Luanda (mais tarde descobri que, havia em Bolama, cidade onde ele tinha prestado serviço como policia gentilica ao serviço da administraçao colonial, um bairro com esse nome), mas que todos chamavam de Sintchã Samagaia (Samba Gaia era o nome do patriarca a quem todas as crianças da familia chamavam de pai), porque a nossa comunidade ainda era muito conservadora e não aderira a ideia por ser estranha a nossa língua e aos usos e costumes tradicionais.
Em meados de 1963/64, começou o movimento de deslocação das populações das suas aldeias devido à guerra que se alastrava a partir do Sudoeste, dos regulados vizinhos de Oio, Caresse e Cola que foram completamente abandonados. Assim, a nossa familia foi obrigada a deslocar-se para uma aldeia perto da fronteira do Senegal.
Numa noite escura e de chuva fomos atacados e ouvimos tiros e rebentamentos, fugimos juntamente com a nossa avó materna, primeiro para uma aldeia do Senegal e depois para a vila de Cambaju onde trabalhava o meu pai como empregado comercial da casa Barbosa, um Luso-Caboverdiano.
Em 1967/68 o meu pai foi transferido para uma outra loja do mesmo comerciante em Fajonquito, mais para o interior e com ele veio toda a familia numa coluna militar de soldados metropolitanos.
Em 1970, comecei a frequentar oficialmente a escola portuguesa local e ao mesmo tempo que fazia incursoes frequentes ao aquartelamento dos soldados metropolitanos, onde acabei por fazer amizades e encontrar trabalho como faxina junto dos condutores a partir de 1972 e frequentar com certa assiduidade a oficina mecânica de reparação de viaturas onde alguns dos meus amigos trabalhavam como mecânicos-auto.
Com a independencia em 1974, a situação mudou drasticamente e, para acompanhar estas mudanças, tive que mudar a minha atitude em relação aos estudos, único meio que me permitiria acompanhar a evolução do mundo, encarando-os com atenção redobrada.
Em 1975, com mais ou menos 14/15 anos de idade, terminei a escola primária e com isso transferi-me para a cidade de Bafatá para a continuação dos estudos. No ano lectivo de 1979/80 terminei o curso geral dos Liceus de então e mudei-me para a Capital, Bissau onde funcionava o unico Liceu da época (Liceu Honório Barreto, rebaptizado Kuame N’krumah).
Em 1982 terminei o curso complementar dos Liceus (7º Ano) e depois fui recrutado, como se fazia na época, para dar aulas numa escola da região de Biombo (Quinhamel), onde trabalhei durante 3 anos.
Em 1985 (Setembro), viajei para a URSS na companhia de meia centena de jovens guineenses, para frequentar o curso de economia numa universidade de Kiev (Ucrânia) que terminei em 1990, tendo antes passado um ano na cidade de Kichinev (capital da Moldavia) para preparação e aprendizagem da língua Russa.
Com o regresso, ingressei novamente na função pública guineense, tendo feito algumas incursões em varios projectos e organizações internacionais.
2. Que tipo de contacto teve com os combatentes das Forças Armadas Portuguesas durante a guerra colonial (de libertação)?
R: Os meus primeiros contactos com soldados metropolitanos ocorreu em Cambaju, em meados de 1964/65 e consolidou-se em Fajonquito, tendo acabado por trabalhar como faxina em pequenas tarefas caseiras.
O inicio foi de terror pelo insólito de ver pessoas completamente diferentes, de ver pessoas com caras e olhos semelhantes às criaturas diabólicas que povoavam o nosso imaginário nascidos dos contos tradicionais africanos da época, onde os Irãs ou seres satánicos ( chamados em fula de Djinnés, do árabe Jinn) eram de cor branca e cabelos compridos.
Depois pouco a pouco, fomo-nos habituando e entrando dentro dos aquartelamentos onde viviam, para satisfazer as nossas curiosidades crescentes à medida que os conheciíamos e descobríamos o seu mundo e os seus hábitos alimentares, muito diferentes dos nossos, na época.
3. Qual foi o motivo que o fez interessar-se e aderir à Tabanca Grande? E em que data pediu a adesão?
R: Devo ter entrado em meados de 2008/9 (as datas estão no Blogue), logo depois de descobrir o Blogue por acaso.
Num dia em que, talvez, não tinha muito que fazer, deu-me vontade de saber o que é que o Google sabia sobre Fajonquito, a minha aldeia. Foi um assombro, pois a pesquisa conduziu-me para um trabalho do José Marcelino Martins (um dos colaboradores permanentes do Blogue), sobre uma lista resumo das companhias que tinham passado por Fajonquito de 1964 a 1974 com datas, nomes dos comandantes entre outras informações.
De repente foi como o rebobinar de uma fita magnética com milhares de imagens, de acontecimentos e de momentos que se encontravam adormecidos na minha cabeça. Não conseguia dormir com tanta excitação e então resolvi escrever aos editores o meu percurso de infância e a experiência que tivera com as tropas metropolitanas entre os quais tinha feito amizades, mesmo que passageiras, e que ainda não tinha esquecido. Os Editores, todos ex-combatentes, acho que ficaram sensibilizados e me receberam de braços abertos, passando de simples e curioso seguidor para colaborador permanente, passados alguns anos.
4. Existem outros guineenses a contribuir para a Tabanca Grande?
R: Sim, conheço 2 ou 3 casos, o que é muito pouco pela importância que o Blogue pode ter para o nosso país do ponto vista histórico e da (re)construção dos laços de amizade e fraternidade entre os três paises (Guiné-Bissau, Cabo-Verde e Portugal).
5. Como é que o blog Luís Graça & Camaradas da Guiné evoluiu ao longo dos últimos anos e como se organiza, atualmente?
R: Questão que remeto para os Editores, especialmente para o Editor Chefe, Luis Graça.
6. Que tipo de contribuições faz para o blogue?
R: Eu encaro a minha contribuição como uma forma pedagógica de tentar corrigir as interpretações que muitas vezes os ex-combatentes fazem sobre a Guiné e suas gentes e que parecem-me enviesadas ou deturpadas por lembranças que já perderam objectividade e/ou realidades mal compreendidas na época.
Também, por incentivo, dos Editores tenho enviado alguns trabalhos sobre história da antiga provincia portuguesa da Guiné, pequenas narrativas sobre personalidades históricas e localidades antigas, a cultura dos diferentes grupos étnicos que conheço e diferentes temas de natureza etno-linguística.
7. Revê-se nas histórias e na forma como os ex-combatentes portugueses descrevem a Guiné e os Guineenses?
R: Nem sempre, dai a importância que eu atribuo à minha colaboração no Blogue, com a finalidade de atenuar os impactos negativos das interpretações erróneas que algumas pessoas trazem ao universo do Blogue e que, muitas vezes, não correspondem à realidade dos factos ou são deliberadamente deturpadas para gozar e divertir a malta, como costumam dizer.
Todavia, tenho evoluido positivamente e aprendido muito com os ensinamentos, relatos e experiências muito ricas dos antigos combatentes em geral e que não podia deixar de aferir e valorizar. No Blogue interessa-me tudo, até os aspectos banais que poderiam passar despercebidos e outros claramente menos positivos e que tendem para o menosprezo e a caricatura dos africanos em geral e guineenses em particular, tudo serve para apreender e compreender o outro, uma ferramenta que já trazia comigo desde os tempos em que frequentava os aquartelamentos onde já tinha cruzado com o comportamento excessivamente etnocêntrico dos soldados portugueses diante das nossas populações e culturas, provavelmente resultante da imposição e cultura colonial da época.
8. Existiram ou existem tensões e conflitos de opinião? Se sim, em que assuntos?
R: De uma forma geral, os intervenientes do Blogue sao ex-combatentes, muito maduros e diametralmente opostos aos jovens irrequietos e irreverentes (para não dizer insolentes) que eram quando pisaram solo guineense como soldados e por isso, temos tido discussões e troca de ideias de forma serena e amistosa, mas às vezes aparece um ou outro com ideias muito fixas e com atitudes e palavrões menos dignos e respeitosos quando os seus discursos são colocados ao crivo da crítica e do contraditório. E quando isso acontece, os Editores ou colaboradores, qual bombeiros diante do fogo posto, intervêm para acalmar os ânimos e tudo volta ao normal.
9. Qual a sua opinião sobre a guerra?
R: Eu nao fiz a guerra, fui vitima da mesma e, hoje, os ex-combatentes são unânimes em considerar que a guerra foi injusta e nunca poderia ser resolvida por via das armas, logo não deveria acontecer, mas aconteceu, sobretudo, devido a irreductividade das posições da parte a parte e, penso eu, porque o regime de Lisboa, por razões históricas e geo-estratégicas de interesses nacionais, quiça imperiais, não conseguia vislumbrar uma saída que não fosse a guerra para acabar com a insurreição armada, da mesma forma que já acontecera no passado, sem ter em devida conta os ventos da história e as mudanças de paradigma ocidental em relação à colonização à escala mundial.
Se dependesse da opinião dos chefes tradicionais fulas, não haveria guerra contra os portugueses nos anos 60/70 como pretendiam os nacionalistas originários das elites urbanas, e aqueles, com ou sem razão, eram de opinião de que a presença dos portugueses era necessária para consolidar os alicerces do território e seus fundamentos.
Constituido colónia apenas em finais do sec. XIX, ocupado e pacificado de facto no séc. XX, coexistiam, no território da Guiné, mais de 30 grupos étnicos de diferentes credos e modos de vida que muitas vezes não se entendiam entre si.
10. Essa opinião mudou ao longo dos anos? Se sim, de que forma? O blogue contribuiu para essa mudança?
R: Claro, na vida tudo muda no dia a dia, e cada vez estou mais convencido que a guerra só podia acabar com a desistência de uma das partes, como veio a acontecer com o 25 de Abril. As duas partes tinham objectivos irreconciliáveis, logo não podiam haver negociações a bom termo.
Com a desistência de Portugal, tudo ficou resolvido a contento dos nacionalistas que queriam ocupar o lugar dos colonizadores e usufruir das benesses daí inerentes em detrimento das populações em geral como já acontecia noutros paises africanos independentes.
O Blogue foi fundamental para poder fazer uma leitura mais abrangente do contexto, dos objectivos e meios postos á disposiçao na contenda e descartar algumas núvens e fumos artificiais que existiam na minha cabeça, fruto das diversas campanhas de propaganda de parte a parte e responder a algumas questões de que até à data desconhecia as motivações de fundo. O Blogue foi mais que uma enciclopedia para mim, nos últimos anos.
11. Como é que avalia a contribuição do blogue para a preservação da memória da guerra?
R: Positivamente, pois acho que, inclusive, o governo português já devia patrocinar ou ajudar a patrocinar a produção do Blogue de forma a valorizar e projectar o seu conteúdo de forma a que possa atingir patamares mais elevados e ganhar mais visibilidade no mundo em geral e na sociedade portuguesa em particular.
Os ex-combatentes, pelo que dizem, mostram ter uma consciência clara de que, se não fizerem nada para a preservação da memoóia da guerra, onde foram obrigados a combater, serão os bodes expiadores de todos os horrores que aconteceram e as suas histórias serão simplesmente colocadas debaixo do tapete, por outras palavras, do lixo da história como a pátria sempre fez para com as suas vitimas ao longo da sua existência como nação.
Em relação à Guiné não posso dizer nada porque ela ainda não está livre e, em consequência, não acordou para poder falar sem amarras da sua verdadeira história, talvez um dia.
12. Considera que a memória da guerra que os combatentes das Forças Armadas portuguesas constroem no blogue é incompatível com a memória dos combatentes da liberdade da pátria? Quais são as suas críticas aos textos do blogue?
R: Trata-se de visões diferentes sobre o mesmo objecto histórico. Há muita poeira ao ar e muitas coisas escondidas dos dois lados e que, talvez, nunca viremos a saber, seja por constituirem actos menos abonatórios e dignos do ponto de vista humanitário, seja porque os seus autores simplesmente não conseguem dar a voz, como faz o Blogue da Tabanca Grande, e transmitir às gerações vindouras os feitos e proezas que protagonizaram na sua juventude em condições das mais imprevisiveis e impensáveis.
Apesar dos estímulos e desafios lançados, não tem havido muita vontade de falar da guerra por parte dos combatentes do partido “libertador”. Mas, por outro lado, considero que as reacções menos favoráveis e mesmo agressivas dos ex-combatentes portugueses inibem a participação dos combatentes e guineenses em geral da narrativa da guerra no Blogue, pois existem irreductíveis que não querem ouvir o outro lado da barricada e preferem acantonar-se nas suas trincheiras num terreno e numa lingua que é mais dele que dos outros.
13. Quais são os seus elogios aos textos do blogue?
R: Tenho lido, no Blogue, textos maravilhosos e que me ajudaram a ser melhor e mais humano e sobretudo a compreender as razões porque combateram, alguns por convicção patriótica, outros por obrigação e ainda aqueles que, não o afirmando abertamente, mas que era uma forma de progredirem na vida, saindo das suas aldeias onde não acontecia nada, para as cidades, à procura de uma vida melhor.
14. Gostaria de acrescentar alguma história, informação ou reflexão?
R: Por agora não, mas existem diversos textos já produzidos no Blogue que, caso sejam de interesse para o vosso trabalho, sempre poderão ter à vossa disposição e utilizar dentro das regras impostas pela comunidade e Editores da TG.