sábado, 23 de abril de 2022

Guiné 61/74 - P23191: Os nossos seres, saberes e lazeres (502): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (47): De Jardim Colonial a Jardim Botânico Tropical (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 24 de Janeiro de 2022:

Queridos amigos,
Nesta cerca do Palácio de Belém houve zona de caça, herbário real suburbano, Jardim Colonial multifuncional, lugar de mostra da Exposição do Mundo Português, foi uma das mais importantes zonas de estudo das plantas do Império, nestes hectares podem ser vistas espécies tropicais e exóticas das mais fascinantes. Recordo que em 1976 a Fundação Gulbenkian promoveu um colóquio que teve à frente Teixeira da Mota e Orlando Ribeiro com a finalidade de no pós-Império todo este imenso acervo científico ser posto à disposição da cooperação com os novos Estados independentes. Bem curioso seria fazer-se hoje o ponto da situação desta nova passada riqueza de alta perícia tropical estar, ou não, ao serviço da cooperação portuguesa.

Um abraço do
Mário



Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (47):
De Jardim Colonial a Jardim Botânico Tropical

Mário Beja Santos

O segundo volume do Guia de Portugal Artístico, dedicado aos jardins, parques e tapadas de Lisboa, coordenado por Robélia de Sousa Lobo Ramalho, da Associação dos Arqueólogos Portugueses, 1935, é uma verdade preciosidade de quem hoje pretende estudar e até comparar o que efetivamente existe e o passado com o Jardim Botânico da Ajuda, o antigo Jardim Botânico da Faculdade de Ciências (de quem há já uma itinerância), o Jardim Guerra Junqueiro (atual Jardim da Estrela), o Jardim da Praça Rio de Janeiro (atual Jardim do Príncipe Real), uma série de pequenos jardins, caso do Jardim Alfredo Keil, na Praça da Alegria, o Jardim das Amoreiras, o Jardim Braamcamp Freire, no Campo dos Mártires da Pátria, o Jardim Cesário Verde, o Parque do Campo Grande, o Parque Eduardo VII, o Parque Silva Porto, a Tapada da Ajuda (de quem já se fez também uma itinerância), a Tapada das Necessidades (outra itinerância efetuada) e dá-se o devido relevo ao que então se denominava Jardim Colonial. Oiça-se a descrição: “Ocupando a maior parte da antiga Cerca do Palácio de Belém e situado entre o majestoso Templo dos Jerónimos e o Museu Nacional dos Coches, tem o Jardim Colonial a sua principal entrada ao fundo da Calçada do Galvão. Criado em 1906, como dependência do antigo Instituto de Agronomia e Veterinária, instalou-se, no ano seguinte, no Jardim Zoológico, onde passou ocupar as antigas estufas do Conde de Farrobo. Em 1912 resolveu o governo transferi-lo para a Cerca do Palácio de Belém que nessa altura se encontrava devoluta e semiabandonada”. Nascia assim o Jardim Colonial, com objetivos multifuncionais: demonstrações experimentais do ensino, há reprodução, multiplicação, seleção e cruzamento de plantas úteis a fornecer às colónias, ao estudo de culturas e doenças dos vegetais tropicais e ao tirocínio dos funcionários agronómicos que desejem servir o ultramar; fornecer plantas e sementes às colónias portuguesas e promover a introdução de novas culturas nas referidas colónias.

Um antigo ministro da agricultura e prestigiado professor catedrático de agronomia, Mário de Azevedo Gomes, escrevia numa revista em 1928, a propósito deste jardim que é hoje monumento nacional: “A sua curta vida tem sido agitada; uma crise de pobre e má vontade orçamental por pouco lhe não liquidava, há tempos, custosas coleções e plantas raras; hoje, porém, e depois que as colónias interessam pelo custeio das despesas, convencidos da utilidade da instituição, os ventos sopram fagueiros e aqueles que visitam o Jardim, mesmo os mais exigentes, encontrarão nele motivos de íntima satisfação ao verificar a obra feita”.

A visita foi efetuada em época natalícia, havia no interior do Jardim Botânico Tropical um espetáculo dedicado a Alice no País das Maravilhas, razão pela qual o leitor encontrará imagens que induzem uma viagem de som e luz com as figuras prodigiosas imaginadas por Lewis Carroll.


Acompanhou a criação do Jardim Colonial um conjunto de estufas, prendia-se com as variedades de café e até o ananás açoriano. Este conjunto de hectares que constituem um dos mais fabulosos herbários tropicais em Portugal tem uma história anterior ao século XX. Aqui houve um hospício de frades arrábidos, depois D. João V criou a Casa e Quinta do Pátio das Vacas, era um horto real suburbano. Arrasado o Palácio dos Duques de Aveiro e salgado o chão, foi a cerca ampliada com os terraços do Jardim de Aveiro. O Infante D. Fernando, irmão de D. João V aqui andou a correr corças entre ulmeiros, loureiros, choupos e olaias. Na década de 1940, o Jardim acolheu motivos coloniais graças à Exposição do Mundo Português, de que resta hoje um espaço em forma de estufa e um apreciável conjunto de esculturas de etnias do Império Português, entre África e Ásia, uma série delas já recuperadas.
Na parte rústica do Jardim o visitante pode contemplar estatuas de fino mármore de Carrara, reproduções de modelos clássicos de museus italianos, a última imagem que aqui se mostra intitula-se a Caridade Romana, simbolizada numa rapariga amamentado o seu próprio pai, é de Bernardo Ludovici. Durante uma parte da vida do Jardim Colonial, ele funcionou como dependência pedagógica do Instituto Superior de Agronomia. O Jardim teve sempre a sua vida ligada a passantes que ali procuraram sombras nas tardes amenas, dilui-se, é certo, o ar balsâmico dos cervos, dos eucaliptos e das casuarinas, e lê-se no Guia de Portugal Artístico que naquela época dos anos de 1930 ali apareciam alguns oficiais do ultramar reformados, o Jardim mitigava-lhes as saudades nostálgicas dos meios coloniais. Mas não há dúvida nenhuma, depois das alterações institucionais mais recentes, o Jardim mantém-se como local de aprazimento, de remanso, palmeiras e araucárias, buxos e cortinas flores são elementos de sedução que o ajardinamento oferece aos visitantes.
Amostra do conjunto de bustos alusivos aos povos coloniais

Até 1944, o Jardim Colonial exerceu as funções que acima se refiram, incluindo o suporte pedagógico ao Instituto Superior de Agronomia. Nessa data o Jardim Colonial fundiu-se com o Museu Agrícola Colonial e deu origem ao Jardim e Museu Agrícola Colonial, deixou de estar da dependência pedagógica do Instituto Superior de Agronomia. Anos depois, em 1951, a nomenclatura evoluiu para Jardim e Museu Agrícola do Ultramar e com o 25 de Abril o Museu com a Junta de Investigações do Ultramar passou a designar-se Instituto de Investigação Científica Tropical, com sede no Palácio Calheta, que ainda está em restauro. Mas vamos prosseguir viagem.

(continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 16 DE ABRIL DE 2022 > Guiné 61/74 - P23174: Os nossos seres, saberes e lazeres (501): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (46): Trancoso é muito mais do que o seu núcleo histórico (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P23190: 18.º aniversário do nosso blogue (1): Entrevista a Cherno Baldé, nosso colaborador permanente, dada a Verónica Ferreira, doutoranda ("Memórias Virtuais. Representações digitais da guerra colonial", Projeto CROME, Centro de Estudos Sociais, Universidade de Coimbra)


Guiné > Zona Leste > Região de Bafatá > 
Sector L1  (Bambadicna) > Subsector do Xitole > 2/3 janeiro de 1970 > 

Forças da CCAÇ 12 (na foto, o 2.º Grupo de Combate, dos furriéis milicianos Humberto Reis e Tony Levezinho) atravessando uma bolanha, a caminho da península de Galo Corubal -Satecuta, na margem direita do Rio Corubal. O Humberto vem atrás dos homens da bazuca e do lança-rockets (igual à dos páras). E, mais atrás, os 1ºs cabos (metropolitanos) Alves e Branco. 

Não aparecço na foto mas participei na Op Navalha Polida, em 2 e 3 de janeiro de 1970,  integrado desta vez no 4.º Gr Combate. Como me dizia amavelmente o meu capitão Brito - era um gentleman! - , eu era o peão de nicas, o tapa-buracas, o suplente, o que substituía os camaradas furriéis doentes, convalescentes, desenfiados ou em férias... Não sei por que carga de água é que os psicotécnicos me disseram que eu era bom para apontador de armas pesadas de infantaria. Como a CCAÇ 12 era uma companhia de intervenção, não tendo armas pesadas, eu tornei-me um polivalente, um pau para toda a obra ... (LG)

Foto da autoria de Humberto Reis (ex-fur mil op esp, CCAÇ 12, Bambadinca, 1969/71). Tem sido imensa e despudoradamente  "pirateada" por aí, nas redes sociais, em livros, etc. , sem referência ao autor e ao nosso blogue.

Foto:  © Humberto Reis (2006). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Com a devida autorização do Cherno Baldé (entrevistado) e da doutoranda Verónica Ferreira (entrevistadora), divulgamos hoje, dia em que o nosso blogue faz 18 anos (a maioridade...) as interessantes e extensas respostas dadas pelo nosso colaborador permanente, que vive em Bissau,  às questões que lhe foram colocadas por escrito,  no âmbito do doutoramento da autora (que irá defender a sua tese em meados deste ano, na Universidade deCoimbra

Mensagem de ontem, 22 de abril de 2022, 16:51 :

Boa tarde, Professor Luís Graça,

No seguimento da nossa conversa, venho apenas confirmar a nossa autorização para a utilização da entrevista. Mais uma vez parabéns pelo aniversário do blogue e um abraço para os restantes membros!

Cordialmente,

Verónica Ferreira
PhD student | Junior Researcher

CROME - Crossed Memories, Politics of Silence.
The Colonial-Liberation Wars in Postcolonial Times
(European Research Council - ERC-2016-StG-715593)
Centro de Estudos Sociais - Universidade de Coimbra (CES)


Doutoramento >Verónica Ferreira >
 “Memórias Virtuais. Representações digitais da guerra colonial” 

 
Trabalho de campo. Entrevista a Cherno Baldé, colaborador permanente do Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné 
(com a devida vénia...)



Cherno Baldé economista,
Bissau. Tem 260 referências
no blogue.

1. Conte um pouco da sua história pessoal.


R: Esta parte tu podes encontrar no Blogue de forma mais desenvolvida e com todos os detalhes que eu poderei completar caso vier a ser necessario.

Eu nasci em meados de 1959/60, na aldeia de Farimbali, arredores da vila de Fajonquito, no sector de Contuboel, região de Bafatá. 

Comecei a dar os primeiros passos e conhecer o mundo a minha volta na nova aldeia fundada pela familia que recebeu o nome de Luanda (mais tarde descobri que, havia em Bolama, cidade onde ele tinha prestado serviço como policia gentilica ao serviço da administraçao colonial, um bairro com esse nome), mas que todos chamavam de Sintchã Samagaia (Samba Gaia era o nome do patriarca a quem todas as crianças da familia chamavam de pai), porque a nossa comunidade ainda era muito conservadora e não aderira a ideia por ser estranha a nossa língua e aos usos e costumes tradicionais.

Em meados de 1963/64, começou o movimento de deslocação das populações das suas aldeias devido à guerra que se alastrava a partir do Sudoeste, dos regulados vizinhos de Oio, Caresse e Cola que foram completamente abandonados. Assim, a nossa familia foi obrigada a deslocar-se para uma aldeia perto da fronteira do Senegal.

Numa noite escura e de chuva fomos atacados e ouvimos tiros e rebentamentos, fugimos juntamente com a nossa avó materna, primeiro para uma aldeia do Senegal e depois para a vila de Cambaju onde trabalhava o meu pai como empregado comercial da casa Barbosa, um Luso-Caboverdiano.

Em 1967/68 o meu pai foi transferido para uma outra loja do mesmo comerciante em Fajonquito, mais para o interior e com ele veio toda a familia numa coluna militar de soldados metropolitanos.

Em 1970, comecei a frequentar oficialmente a escola portuguesa local e ao mesmo tempo que fazia incursoes frequentes ao aquartelamento dos soldados metropolitanos, onde acabei por fazer amizades e encontrar trabalho como faxina junto dos condutores a partir de 1972 e frequentar com certa assiduidade a oficina mecânica de reparação de viaturas onde alguns dos meus amigos trabalhavam como mecânicos-auto.

Com a independencia em 1974, a situação mudou drasticamente e, para acompanhar estas mudanças, tive que mudar a minha atitude em relação aos estudos, único meio que me permitiria acompanhar a evolução do mundo, encarando-os com atenção redobrada.

Em 1975, com mais ou menos 14/15 anos de idade, terminei a escola primária e com isso transferi-me para a cidade de Bafatá para a continuação dos estudos. No ano lectivo de 1979/80 terminei o curso geral dos Liceus de então e mudei-me para a Capital, Bissau onde funcionava o unico Liceu da época (Liceu Honório Barreto, rebaptizado Kuame N’krumah).

Em 1982 terminei o curso complementar dos Liceus (7º Ano) e depois fui recrutado, como se fazia na época, para dar aulas numa escola da região de Biombo (Quinhamel), onde trabalhei durante 3 anos.

Em 1985 (Setembro), viajei para a URSS na companhia de meia centena de jovens guineenses, para frequentar o curso de economia numa universidade de Kiev (Ucrânia) que terminei em 1990, tendo antes passado um ano na cidade de Kichinev (capital da Moldavia) para preparação e aprendizagem da língua Russa.

Com o regresso, ingressei novamente na função pública guineense, tendo feito algumas incursões em varios projectos e organizações internacionais.


2. Que tipo de contacto teve com os combatentes das Forças Armadas Portuguesas durante a guerra colonial (de libertação)?

R: Os meus primeiros contactos com soldados metropolitanos ocorreu em Cambaju, em meados de 1964/65 e consolidou-se em Fajonquito, tendo acabado por trabalhar como faxina em pequenas tarefas caseiras.

O inicio foi de terror pelo insólito de ver pessoas completamente diferentes, de ver pessoas com caras e olhos semelhantes às criaturas diabólicas que povoavam o nosso imaginário nascidos dos contos tradicionais africanos da época, onde os Irãs ou seres satánicos ( chamados em fula de Djinnés, do árabe Jinn) eram de cor branca e cabelos compridos.

Depois pouco a pouco, fomo-nos habituando e entrando dentro dos aquartelamentos onde viviam, para satisfazer as nossas curiosidades crescentes à medida que os conheciíamos e descobríamos o seu mundo e os seus hábitos alimentares, muito diferentes dos nossos, na época.


3.  Qual foi o motivo que o fez interessar-se e aderir à Tabanca Grande? E em que data pediu a adesão?


R: Devo ter entrado em meados de 2008/9 (as datas estão no Blogue), logo depois de descobrir o Blogue por acaso.

Num dia em que, talvez, não tinha muito que fazer, deu-me vontade de saber o que é que o Google sabia sobre Fajonquito, a minha aldeia. Foi um assombro, pois a pesquisa conduziu-me para um trabalho do José Marcelino Martins (um dos colaboradores permanentes do Blogue), sobre uma lista resumo das companhias que tinham passado por Fajonquito de 1964 a 1974 com datas, nomes dos comandantes entre outras informações.

De repente foi como o rebobinar de uma fita magnética com milhares de imagens, de acontecimentos e de momentos que se encontravam adormecidos na minha cabeça. Não conseguia dormir com tanta excitação e então resolvi escrever aos editores o meu percurso de infância e a experiência que tivera com as tropas metropolitanas entre os quais tinha feito amizades, mesmo que passageiras, e que ainda não tinha esquecido. Os Editores, todos ex-combatentes, acho que ficaram sensibilizados e me receberam de braços abertos, passando de simples e curioso seguidor para colaborador permanente, passados alguns anos.


4. Existem outros guineenses a contribuir para a Tabanca Grande?

R: Sim, conheço 2 ou 3 casos, o que é muito pouco pela importância que o Blogue pode ter para o nosso país do ponto vista histórico e da (re)construção dos laços de amizade e fraternidade entre os três paises (Guiné-Bissau, Cabo-Verde e Portugal).


5. Como é que o blog Luís Graça & Camaradas da Guiné evoluiu ao longo dos últimos anos e como se organiza, atualmente?

R: Questão que remeto para os Editores, especialmente para o Editor Chefe, Luis Graça.


6. Que tipo de contribuições faz para o blogue?

R: Eu encaro a minha contribuição como uma forma pedagógica de tentar corrigir as interpretações que muitas vezes os ex-combatentes fazem sobre a Guiné e suas gentes e que parecem-me enviesadas ou deturpadas por lembranças que já perderam objectividade e/ou realidades mal compreendidas na época.

Também, por incentivo, dos Editores tenho enviado alguns trabalhos sobre história da antiga provincia portuguesa da Guiné, pequenas narrativas sobre personalidades históricas e localidades antigas, a cultura dos diferentes grupos étnicos que conheço e diferentes temas de natureza etno-linguística.


7. Revê-se nas histórias e na forma como os ex-combatentes portugueses descrevem a Guiné e os Guineenses?

R: Nem sempre, dai a importância que eu atribuo à minha colaboração no Blogue, com a finalidade de atenuar os impactos negativos das interpretações erróneas que algumas pessoas trazem ao universo do Blogue e que, muitas vezes, não correspondem à realidade dos factos ou são deliberadamente deturpadas para gozar e divertir a malta, como costumam dizer.

Todavia, tenho evoluido positivamente e aprendido muito com os ensinamentos, relatos e experiências muito ricas dos antigos combatentes em geral e que não podia deixar de aferir e valorizar. No Blogue interessa-me tudo, até os aspectos banais que poderiam passar despercebidos e outros claramente menos positivos e que tendem para o menosprezo e a caricatura dos africanos em geral e guineenses em particular, tudo serve para apreender e compreender o outro, uma ferramenta que já trazia comigo desde os tempos em que frequentava os aquartelamentos onde já tinha cruzado com o comportamento excessivamente etnocêntrico dos soldados portugueses diante das nossas populações e culturas, provavelmente resultante da imposição e cultura colonial da época.


8. Existiram ou existem tensões e conflitos de opinião? Se sim, em que assuntos?

R: De uma forma geral, os intervenientes do Blogue sao ex-combatentes, muito maduros e diametralmente opostos aos jovens irrequietos e irreverentes (para não dizer insolentes) que eram quando pisaram solo guineense como soldados e por isso, temos tido discussões e troca de ideias de forma serena e amistosa, mas às vezes aparece um ou outro com ideias muito fixas e com atitudes e palavrões menos dignos e respeitosos quando os seus discursos são colocados ao crivo da crítica e do contraditório. E quando isso acontece, os Editores ou colaboradores, qual bombeiros diante do fogo posto, intervêm para acalmar os ânimos e tudo volta ao normal.


9. Qual a sua opinião sobre a guerra?

R: Eu nao fiz a guerra, fui vitima da mesma e, hoje, os ex-combatentes são unânimes em considerar que a guerra foi injusta e nunca poderia ser resolvida por via das armas, logo não deveria acontecer, mas aconteceu, sobretudo, devido a irreductividade das posições da parte a parte e, penso eu, porque o regime de Lisboa, por razões históricas e geo-estratégicas de interesses nacionais, quiça imperiais, não conseguia vislumbrar uma saída que não fosse a guerra para acabar com a insurreição armada, da mesma forma que já acontecera no passado, sem ter em devida conta os ventos da história e as mudanças de paradigma ocidental em relação à colonização à escala mundial.

Se dependesse da opinião dos chefes tradicionais fulas, não haveria guerra contra os portugueses nos anos 60/70 como pretendiam os nacionalistas originários das elites urbanas, e aqueles, com ou sem razão, eram de opinião de que a presença dos portugueses era necessária para consolidar os alicerces do território e seus fundamentos.

Constituido colónia apenas em finais do sec. XIX, ocupado e pacificado de facto no séc. XX, coexistiam, no território da Guiné, mais de 30 grupos étnicos de diferentes credos e modos de vida que muitas vezes não se entendiam entre si.


10. Essa opinião mudou ao longo dos anos? Se sim, de que forma? O blogue contribuiu para essa mudança?

R: Claro, na vida tudo muda no dia a dia, e cada vez estou mais convencido que a guerra só podia acabar com a desistência de uma das partes, como veio a acontecer com o 25 de Abril. As duas partes tinham objectivos irreconciliáveis, logo não podiam haver negociações a bom termo.

Com a desistência de Portugal, tudo ficou resolvido a contento dos nacionalistas que queriam ocupar o lugar dos colonizadores e usufruir das benesses daí inerentes em detrimento das populações em geral como já acontecia noutros paises africanos independentes.

O Blogue foi fundamental para poder fazer uma leitura mais abrangente do contexto, dos objectivos e meios postos á disposiçao na contenda e descartar algumas núvens e fumos artificiais que existiam na minha cabeça, fruto das diversas campanhas de propaganda de parte a parte e responder a algumas questões de que até à data desconhecia as motivações de fundo. O Blogue foi mais que uma enciclopedia para mim, nos últimos anos.


11. Como é que avalia a contribuição do blogue para a preservação da memória da guerra?

R: Positivamente, pois acho que, inclusive, o governo português já devia patrocinar ou ajudar a patrocinar a produção do Blogue de forma a valorizar e projectar o seu conteúdo de forma a que possa atingir patamares mais elevados e ganhar mais visibilidade no mundo em geral e na sociedade portuguesa em particular.

Os ex-combatentes, pelo que dizem, mostram ter uma consciência clara de que, se não fizerem nada para a preservação da memoóia da guerra, onde foram obrigados a combater, serão os bodes expiadores de todos os horrores que aconteceram e as suas histórias serão simplesmente colocadas debaixo do tapete, por outras palavras, do lixo da história como a pátria sempre fez para com as suas vitimas ao longo da sua existência como nação.

Em relação à Guiné não posso dizer nada porque ela ainda não está livre e, em consequência, não acordou para poder falar sem amarras da sua verdadeira história, talvez um dia.


12. Considera que a memória da guerra que os combatentes das Forças Armadas portuguesas constroem no blogue é incompatível com a memória dos combatentes da liberdade da pátria? Quais são as suas críticas aos textos do blogue?

R: Trata-se de visões diferentes sobre o mesmo objecto histórico. Há muita poeira ao ar e muitas coisas escondidas dos dois lados e que, talvez, nunca viremos a saber, seja por constituirem actos menos abonatórios e dignos do ponto de vista humanitário, seja porque os seus autores simplesmente não conseguem dar a voz, como faz o Blogue da Tabanca Grande, e transmitir às gerações vindouras os feitos e proezas que protagonizaram na sua juventude em condições das mais imprevisiveis e impensáveis.

Apesar dos estímulos e desafios lançados, não tem havido muita vontade de falar da guerra por parte dos combatentes do partido “libertador”. Mas, por outro lado, considero que as reacções menos favoráveis e mesmo agressivas dos ex-combatentes portugueses inibem a participação dos combatentes e guineenses em geral da narrativa da guerra no Blogue, pois existem irreductíveis que não querem ouvir o outro lado da barricada e preferem acantonar-se nas suas trincheiras num terreno e numa lingua que é mais dele que dos outros.


13. Quais são os seus elogios aos textos do blogue?

R: Tenho lido, no Blogue, textos maravilhosos e que me ajudaram a ser melhor e mais humano e sobretudo a compreender as razões porque combateram, alguns por convicção patriótica, outros por obrigação e ainda aqueles que, não o afirmando abertamente, mas que era uma forma de progredirem na vida, saindo das suas aldeias onde não acontecia nada, para as cidades, à procura de uma vida melhor.


14. Gostaria de acrescentar alguma história, informação ou reflexão?

R: Por agora não, mas existem diversos textos já produzidos no Blogue que, caso sejam de interesse para o vosso trabalho, sempre poderão ter à vossa disposição e utilizar dentro das regras impostas pela comunidade e Editores da TG.

[ Cópia do guião da entrevista  com as respostas escritas, disponibilizada pelo Cherno Baldé. Revisão / fixação de texto / negritos,  para efeitos de publicação  no blogue: LG]
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sexta-feira, 22 de abril de 2022

Guiné 61/74 - P23189: Memória dos lugares (440): A antiga pista de Cufar...e uma torre de vigia do tempo da CART 2477 (1969/71) (Martin Evison, Action Guinea-Bissau, Catió e Cufar)

 












Guiné-Bissau >Região de Tombali > Catió > Cufar  > A antiga pista de Cufar, usada pela Força Aérea Portuguesa durante a guerra colonial (1961/74). Posto de sentinela do tempo da CART 2477 (Cufar, 1969/71).

Fotos (e legenda): © Martin Evison  (2022). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]




Guiné > Região de Tombali > Cufar > c. 1973 > O Nordatlas na pista de Cufar... Posando junto dele o Eduardo Ferreira Campos, ex-1º Cabo Trms, CCAÇ 4540 (Cumeré, Bigene, Cadique, Cufar e Nhacra, 1972/74) (*)



Guiné > Região de Tombali > Cufar > c. 1973 > O Nordatlas na pista de Cufar (*).

Cufar era uma placa giratória de apoio logístico para o Sul e, por esse motivo, originava um movimento muito fora de vulgar, quer em meios aéreos, quer em viaturas e pessoal militar.


Fotos (e legendas): © Eduardo Campos  (2009). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



1. Mensagem de 20/04/2022 à(s) 20:31, enviada por Martin Evison, através do formulário de contacto do Blogger:

Estive em Cufar na semana passada. Tenho algumas fotos da pista de pouso (sic).
 
Um tem um prédio marcado como CART 2477. Por favor, deixe-me saber se eu posso enviá-los para você. Martin.


2. Respondemos-lhe de imediato nestes termos:

Olá, Martin, teríamos todo o gosto... Temos poucas referências a essa companhia de artilharia, a CART 2477, que por lá passou, em Cufar, em 1969/71, durante a guerra colonial. 

 Saudações, "mantenhas". Luís Graça


3. Nova mensagem do Martin Evison, quinta, 21/04, 19:48  


Olá, Luis,

Anexo algumas fotos. Há algumas mullheres na passarela secando arroz.

Tive problemas por tirar as fotos e tive que me apresentar ao comandante em Buba. Acho que também era um acampamento do exército português. A pista tem sido usada por traficantes de drogas. O exército colocou toras 
 [, toros, em português dePortugal] na pista para controlar seu uso. Supõe-se que a recente tentativa de golpe de Estado tenha sido relacionada a drogas.

Tive o prazer de encontrar uma foto de blog mostrando a 'torre de controle' (?), com um Nord Nordatlas.

4. Depois de recebermos as fotos, perguntámos, com data de ontem, 11:53 e 14:36:

Olá, Martin, está tudo OK. Vou publicar  as fotos com o teu nome. Podemos identificar o autor das fotos ? Não há problema (de segurança, por exemplo) ?

 Gostava de resto que, enquanto amigo da Guiné-Bissau e falando português, te juntasses a esta "tertúlia" ou "comunidade virtual", a Tabanca Grande, que tem 860 "amigos e camaradas da Guiné"... E faz amanhã 18 anos de existência na Net, um grande longevidade... 

 É apenas um blogue de "partilha de memórias (e de afectos)", sem quaisquer "bandeiras" (político-ideológicas, religiosas, étnicas, etc.)... Claro que a maioria dos participantes (90%) são antigos combatentes...E gostariámos que houvesse mais guineenses

Vives na Guiné-Bissau ? Vai dando notícias...  Mantenhas. Luís

5. Resposta do Martins Evison, com data de ontem, 16:05

Olá, Luis,

Obrigado por suas respostas.

Não sou guineense - sou inglês e estava visitando Guiné a convite de uma instituição de caridade inglês - "Action Guinea Bissau" - que ajuda a restaurar poços de água, casas de banheiro e prédios escolares, e patrocinar  uns estudantes de direito e mediina, por exemplo.

Estou aprendendo português, mas meu progresso é lento. Interesso-me pela história portuguesa, de que nós, em Inglaterra, não conhecemos o suficiente.

Por isso, tirei as fotos da pista e da torre, e pouso (sic) e encontrei a foto de 69/71 do Nordatlas com a torre de controle mostrada nele em seu blog! (*)

Tudo bem,  você usar meu nome como autor. Seria possível incluir algumas fotos do trabalho da "Action Guinea-Bissau", uma  instituição de "charity" (beneficência) em Catió e Cufar, e um link para projetos anteriores - se você acha que é apropriado?   (**)

https://www.actionguineabissau.org.uk/project-gallery

Publicaremos a seguir um poste, com as fotos referentes  à " Action Guinea Bissau", " uma organização sem fins lucrativos,  fundada em 2020", sediada no Reino Unido, e que  "está a trabalhar para resolver questões relacionadas com a igualdade de género, desemprego e ambiente na Guiné-Bissau."
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Notas do editor:

(*) Vd. poste de 31  de dezembro de 2009 > Guiné 63/74 – P5569: Histórias do Eduardo Campos (2): CCAÇ 4540, 1972/74 - Somos um caso sério (Parte 2): 5 meses como operador de mensagens em Cufar

Guiné 61/74 - P23188: Notas de leitura (1439): “A Balada do Níger e Outras Estórias de África”, por Amílcar Correia, Civilização Editora, 2007 (2) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 17 de Julho de 2019:

Queridos amigos,
O livro de viagens de Amílcar Correia agarra-nos do princípio ao fim. Não é um guia, é um registo muito próprio de contatos humanos e de visitas a lugares onde há um halo mágico, não se descura a presença portuguesa. Há muitos anos atrás, a Fundação Calouste Gulbenkian abalançou-se a um empreendimento que continua a ser singular, o levantamento de arte portuguesa em todos os pontos onde o navegador, o comerciante, o missionário ou a civilização portuguesa marcaram presença, desde a fortaleza às igrejas. Acima desta descabelada controvérsia no Museu dos Descobrimentos ou das Descobertas, ou da escravatura, este património, de um valor incalculável, não pode ser descurado pelas novas gerações, a despeito de uma parte deste património estar associado a valores hoje combatidos. Este livro de Amílcar Correia tem o dom de fazer cruzar património material, o oral e o imaterial, não deixando de alertar para o que se desvanece e merecia o nosso cuidado, porque também faz parte do nosso dever de memória.

Um abraço do
Mário



Ali para as bandas da Guiné e um pouco por toda a África (2)

Beja Santos

“A Balada do Níger e Outras Estórias de África”, por Amílcar Correia, Civilização Editora, 2007, é um livro de cambanças, tudo começa na mítica Tombuctu, seguiu-se a Mauritânia, o deserto do Sara é um referencial, por diversas razões: é o maior depósito de sal do continente africano, nele se cruzam as redes comerciais entre o Mediterrâneo e a África negra, há mesmo a registar a presença portuguesa na ilha de Arguim, ao largo da Mauritânia. O viajante chega à capital, Nouakchott, e lembra uma frase de um dos maiores repórteres de todos os tempos, Ryszard Kapuscinski: “Uma vez estive em Nouakchott, uma cidade do Sara, onde periodicamente se limpa o asfalto de montes de areia, como na Polónia se limpa a neve das ruas nos meses de Inverno”. A cidade foi projetada para duzentas mil pessoas, hoje tem uma população cinco vezes superior, as gentes dos desertos preferem viver aqui em bairros de lata de que suportar as prolongadas secas. Cidade de disparidades, não faltam lojas que lembram a expansão da sociedade digital e é sobretudo uma cidade segura, como diz o autor: “É impossível passear pelas ruas de Lagos, Maputo, Nairobi ou Joanesburgo como se passeia pelas escuras ruas de Nouakchott”. Estamos num país marcado pelas dicotomias: mouros e negros, a costa atlântica é amena e até ventosa, enquanto o interior é de um calor inclemente no deserto, não é nem Magreb nem África negra. “No plano geoestratégico, o país praticamente não existe. O investimento estrangeiro é invisível e o seu desaproveitamento turístico é a melhor prova disso. Se excetuarmos os telemóveis, os Mercedes, a Coca-Cola e a Fanta, globalização é um vocábulo desconhecido na terra dos golpes militares”. E dá-nos informações chocantes: “A escravatura foi abolida em 1980 na Mauritânia, quando o número de escravos negros rondava os 100 mil, pelo que uma parte considerável da população da Mauritânia terá então passado à categoria de ex-escravos”.

A viagem muda de rumo, segue-se Marrocos, o turismo salta a olhos vistos: “Deixa-me contar que subir o Alto Atlas, de Marraquexe até Ouarzazate é uma prova imprópria para ciclistas. A paisagem vai mudando à medida que a temperatura vai aumentando e o autocarro estafando. Aviso-te que o que Ouarzazate tem para oferecer é muito pouco: um clube Med, voos diretos de Paris e uma lufada de ar quente. Mas há uma atmosfera absolutamente relaxada, um hotel árabe igualmente atmosférico, o Sara logo a seguir”. Fala-se de Agadir, Essaouira, Marraquexe, Rabat, Meknez, Fez, Casablanca. E parte-se para Cabo Verde. Invoca-se um professor canadiano, Richard Pattee que viajou na década de 1950 por parcelas do Império Colonial Português, começou pelo Forte de São João Baptista de Ajudá, no Benim e que quando chegou a Cabo Verde foi sensível ao aspeto lunar, ao deserto insular tropical, sentiu que estava longe de África. O que é verdade, pois o viajante tem sério embaraço com a mistura de cores, com os sinais indeléveis da cultura portuguesa. Desta experiência irá passar-se para outra, São Tomé e Príncipe, começa-se mesmo pela Ilha do Príncipe: “Aos Domingos, em Santo António, também como se nada se tivesse passado, o mar esbarra na marginal e as cabras pastam despreocupadas. A missão católica chega ao fim e as pessoas dispersam-se dolentemente pelas ruas da capital da Ilha do Príncipe. A presença portuguesa nesta ilha resume-se às igrejas católicas, que sofrem agora a concorrência apostólica e adventista, e a um ou outro edifício público insípido. Capital abandonada pelo Portugal colonial, pelo Portugal pós-revolução, pelo governo do arquipélago. A população queixa-se da macrocefalia de São Tomé, mas também se pode queixar de ter sido abandonada por Deus à boca do grande continente em forma de coração”. E cita uma passagem do Plano Nacional de Educação português na década de 1950: “A costa, profundamente recortada e bordada por praias enormes, abre-se, a certa altura, na chamada Baía de Santo António, ao fundo da qual surge a cidade de Santo António do Príncipe que, de 1752 a 1852, desempenhou o papel de capital da província, porque o seu desenvolvimento, desafogo económico e nível de civilização não permitiam que gozasse, à época, das regalias concedidas às restantes províncias do país”.

Agora dá-se um salto até à África Austral, estamos em Inhambane, Moçambique. E veio à baila uma estória incrível do rapto coletivo no corredor do Limpopo. “Foi noticiado que a Renamo raptou todo o cortejo de casamento, incluindo os noivos, quando emboscou uma coluna de viaturas da festa nupcial que seguia da Vila da Manhiça (a 70 quilómetros de Maputo) para o distrito de Chibuto, na província de Gaza. Até ao momento, apenas uma pessoa conseguiu fugir”. E dá-nos um retrato de Inhambane:
“O encanto desta cidade revela-se na esquadria das ruas de traço europeu e das suas casas portuguesas. São habitações de rés-do-chão de uma simplicidade eficaz, rodeadas por um jardim e cujos detalhes se repetem coerentemente pela cidade. O impressionante em Inhambane é esta conservação cloroformizada: há estabelecimentos comerciais cujas montras parecem ter ficado intactas desde 1974. Produtos de um tempo que não existe mais, mas que ali ficaram para nos relembrar que naquela cidade há comboios que ainda não chegaram e bocados de História que ainda não partiram”.

O passado português vai-se diluindo, o país é belíssimo e os turistas falam predominantemente inglês, vêm da África do Sul ou de outro país da África Austral. Sente-se que o viajante está enamorado pela Ilha de Moçambique:
“A ilha pouco mudou. A beleza do traço e da arquitetura da cidade de pedra e cal, a norte, quer a habitada exclusivamente por portugueses, não se apaga, por mais que o tempo fuja. Seria assim o Algarve medieval? Talvez o seja na sua beleza rasurada, como aconteceu com a casa onde Camões, diz a lenda, escreveu a Ilha dos Amores. É bem certo que o abandono e as figueiras-bravas, com as suas raízes aéreas, condenaram a cidade à ruína. Mas, o que classificou a UNESCO como Património Cultural da Humanidade em 1992 não foi a beleza centrífuga das figueiras, cuja sombra pode ser, como diz Pedro Rosa Mendes, ‘uma sala de visitas quando o sol anda na rua’. Foi a Fortaleza de São Sebastião, que data do século XVI, o Palácio de São Paulo, antiga residência do governador, o velho hospital, a Capela de Nossa Senhora de Baluarte, considerada a mais antiga construção europeia do hemisfério Sul, os templos hindus e as mesquitas que fazem da ilha um composto invulgar – o ecumenismo só não vale para a morte, uma vez que cada religião possui o seu próprio cemitério”.

E vem à lembrança Vasco da Gama que aqui chegou em 1498. Aborda-se graciosamente a capulana, peça obrigatória do vestuário feminino em Moçambique, graças a ela mães e filhos ficam inseparáveis, pois a mãe leva o filho às costas. E dá uma explicação:
“Ninguém sabe precisar a origem da palavra capulana. Sabe-se apenas que a expressão não é utilizada em mais nenhum país de língua oficial portuguesa. O uso destes panos de tecido de algodão estampado e colorido ter-se-á tornado mais comum nos países vizinhos da África Oriental durante o século XIX. Contrariamente ao que acontece em outros países vizinhos, as mulheres moçambicanas não usam as capulanas com a esfinge de dirigentes políticos ou com mensagens impressas. Em Moçambique foram poucas as exceções, uma delas foi a capulana com o rosto de João Paulo II”.
E continuamos em Moçambique.

(continua)


Fortim de São Lourenço na Ilha de Moçambique
Mulher com capulana
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Nota do editor

Último poste da série de 18 DE ABRIL DE 2022 > Guiné 61/74 - P23178: Notas de leitura (1438): “A Balada do Níger e Outras Estórias de África”, por Amílcar Correia, Civilização Editora, 2007 (1) (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P23187: Documentos (37): Boletim Informativo n.º 1 do Movimento das Forças Armadas na Guiné, de 1 de Junho de 1974 (Victor Costa, ex-Fur Mil Inf)

1. Mensagem do nosso camarada Victor Costa, ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 4541/72 (Safim, 1974), com data de 5 de Fevereiro de 2022:

Amigos e camaradas da Guiné,
Como é do conhecimento geral, a JSN (Junta de Salvação Nacional) foi constituída por 7 militares das Forças Armadas, onde os Srs. Generais António de Spínola e Costa Gomes eram dominantes. Penso que o primeiro, por muitos considerado um Cabo de Guerra era mais militar e menos político e o segundo além de militar, foi o fundador da 5ª Divisão e era mais hábil na política.

Estas duas figuras são incontornáveis antes e depois do 25 de Abril de 74 e seguiram caminhos diferentes depois da constituição da 5º Divisão. Eles entraram em ruptura em 28 de Setembro de 1974, tendo gerado consequências para o Sr. Gen. Spínola e a 5ª Divisão continuou a exercer um papel dominante na política portuguesa até à sua extinção em 25 de Agosto de 1975.

Em retrospectiva, devemos questionar se o Sr. Gen. Costa Gomes esteve bem e se a outra via não fosse a melhor,  porque se o não fizermos, corremos o risco dos nossos netos voltarem a repetir os mesmos erros. Por isso este debate é necessário.

Na Metrópole o Boletim Informativo das Forças Armadas n.º 1 foi publicado em 9 de Setembro de 1974, sendo nesta data constituída formalmente a 5.ª Divisão do EMGFA, com honras de primeira página.

Mas de facto, é em 1 de Junho de 1974 que o MFA na Guiné publica o seu Boletim Informativo n.º 1 que mostra que a 5.ª Divisão nasceu na Guiné (se é que nasceu...) estava era já na mente de alguém que se encontrava na Metrópole. Isto porque me parece que existiu aqui uma utilização rebuscada e abusiva da Lei Mental. Na História, D. João I foi o da Boa Memória e o de 1974/75 vai ser lembrado como o cinzento ou o da má memória.

Na primeira página deste Boletim Informativo encontra-se a constituição da Comissão Central, da Comissão Coordenadora e do Secretariado do MFA na Guiné e os nomes dos militares que as compunham e resultam da deslocação à Guiné do Sr. Ten. Cor. Almeida Bruno em 7 de Maio de 74. Também está lá publicado como deviam ser constituídas as Delegações do MFA nas Unidades. As páginas seguintes contêm informação sobre o Programa do 1.º Governo Provisório que o Boletim Informativo considera notável, o Programa do MFA, as Conversações para um Acordo de Paz para a Guiné e Cabo Verde e onde já é abordado o futuro das NT nativas que tinham combatido contra o PAIGC, a dissolução da JSN, Constituição durante um ano, etc.

Este Boletim Informativo n.º 1 do MFA na Guiné, aposta fortemente na informação e é também o primeiro e o único a fazê-lo.

O segundo Boletim Informativo é já o Órgão Oficioso da 5.ª Divisão e porque são muito diferentes, irei abordá-los em separado. Este Boletim Informativo virá também acompanhado de uma outra mensagem.

Um abraço,
Victor Costa
Ex-Fur. Mil. At. Inf.

Página 1 de 4 do Boletim Informativo n.º 1 do MFA na Guiné, publicado em 1 de Junho de 1974

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Comentário do editor:

Pedimos desculpa ao Victor Costa por só agora publicarmos o "Boletim Informativo n.º 1 do MFA na Guiné", que gentilmente enviou para conhecimento da tertúlia.
Como não era tecnicamente viável a edição e publicação das páginas no Blogue de modo a serem facilmente lidas, optamos agora pelo acesso directo ao Google Drive onde o Boletim está alojado.

Ver aqui

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Nota do editor

Último poste da série de 2 DE ABRIL DE 2022 > Guiné 61/74 - P23133: Documentos (36): Psico e propaganda: por uma "Guiné Feliz": um desdobrável com postais a cores, tipo Banda Desenhada, doado à Tabanca Grande pelo Joaquim Sequeira, o "Sintra", ex-1º cabo carpinteiro, BENG 447 (Brá, 1965/67)

Guiné 61/74 - P23186: Manuscrito(s) (Luís Graça (212): Em memória de Maria Irene Martins (Lisboa, 1944 - Grenoble, França), assistente social, imigrante, católica progressista, ativista política contra a guerra colonial e o Estado Novo, amiga e colega da Alice Carneiro, assistiu semi-clandestinamente em Lisboa ao 25 de Abril de 1974

 


Lisboa >Parque das Nações > 22 de setembro de 2011 > A Alice Carneiro e a Irene Martins



Lourinhã > Moledo > 24 de junho de 2012 > "Por terras de Pedro e Inês"... Irene Martins e Alice Carneiro


Fotos (e legendas): © Luís Graça (2022). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]



Maria Irene Martins
(Lisboa, 1944 – Grenoble, França, 2022) foi uma querida amiga e colega de trabalho da Alice Carneiro. Deixou-nos muito recentemente, aos 77 anos, vítima de ataque cardíaco, na véspera  de partir com a neta para uma viagem de turismo à Madeira. Vivia em Grenoble, desde o início dos anos 70. Tem dois filhos. Era uma pessoa muito estimada entre a comunidade francesa e portuguesa. 

Conhecia-a pessoalmente em 2011, em Lisboa, no Parque das Nações. E no ano seguinte foi nossa anfitriã na Lourinhã. Voltámos a encontrarmo-nos, no Norte, em Candoz e em Tormes, em 2015. Juntou-se aqui com a Alice e várias antigas colegas de trabalho da Junta de Colonização Interna.

Assistente social, católica progressita, formou-se no Instituto Superior de Serviço Social de Lisboa, o mesmo onde o nosso saudoso Jorge Cabral será depois professor a seguir ao 25 de Abril de 1974. Não sei se alguma vez se conheceram.

Trabalhou, com a Alice, na antiga Junta de Colonização Interna. Casou-depois com um francês, e emigrou para Grenoble. Aqui desenvolveu um notável trabalho, solidário, de apoio não só aos jovens que fugiam à guerra colonial (faltosos, refractários, desertores e exilados políticos) mas também simples trabalhadores, imigrantes. Pela sua casa também passaram cantores de intervenção como Zeca Afonso, Zé Mário Branco, Fanhais, Tino Flores e outros.

Aos filhos e netos, eu e a Alice já  endereçamos os nossos mais profundos votos de pesar pela brutal notícia da sua morte. Já seguiu também, para um dos filhos, uma seleção de fotos, de 2011 e 2012,  que fizemos, do nosso álbum. Temos mais, de 2015, tiradas no Marco de Canaveses e em Baião,  não disponíveis de momento.

2. Tomo, entretanto,  a liberdade de reproduzir aqui um excerto do livro "Exílios: testemunhos de exilados e desertores portugueses na Europa (1961-1974)", Carcavelos, Associação de Exilados Políticos Portugueses (AEP61-74), 2017, 160 pp.  Um dos 21 autores deste volume  I de "Exilios"  é a Maria Irene Martins.

O seu testemunho ("Desertores e refractários, pp. 53-58) pode ter um interesse adicional para os leitores do nosso blogue, ao dar uma ideia, mais aproximada, dos caminhos do exílio e da emigração que muitos portugueses da nossa geração percorreram.  E é também revelador da personalidade, da generosidade,  da solidariedade e da alegria de viver da Irene Martins, de quem também guardo saudades, e de quem fiquei amigo, mesmo só  tendo privado com ela em três curtos momentos das nossas vidas. A amizade, de resto, não tem barreiras nem preconceitos nem bandeiras. Até sempre, Irene!


Capa do livro "Exílios" (1º volume, 2016), de que a Maria Irene Martins é coautora (conforme nosso sublinhado a vermelho).


Maria Irene Martins, Grenoble,  França - Desertores e refractários (pp. 53-38) (com a devida vénia ao editor e aos herdeiros da autora...)




(…) A primeira acção de ajuda a desertores do serviço militar e refractários à Guerra Colonial [sic], surgiu logo no início da minha formação no Instituto Superior de Serviço Social (ISSS) [em Lisboa] quando a nossa colega e amiga Gabriela nos pediu, à Isabel e a mim, para levar o seu namorado e dois outros amigos para França, de onde eles partiriam para outros destinos. [Este episódio deve ter-se passado em meados de 60, a autora em 1962 já tinha 18 anos, já seria emancipada e teria passaporte, e deve ter sido o ano em que entrou no ISSS].

Lá fomos, eu e a Isabel, amiga desde os anos do liceu [Rainha Dona Leonor]. Ela conseguiu um carro emprestado pela família. Um Diane azul.

Partimos as duas de Lisboa, dormimos perto de Leiria, na casa de férias da família da Isabel. Na manhã seguinte, sem querer dar nas vistas, pusemos tudo em ordem de marcha, os sacos dos rapazes atrás, os nossos bem à vista e a merenda para a viagem. Logo aconteceu que a Isabel, ao sair, fez resvalar o carro que ficou prisioneiro numa vala da estrada. Lá foi chamar o caseiro que veio com o tractor para tirar o Diane, mais a aldeia em peso, para ajudar a “menina”...

Passado o acontecimento fomos até à Guarda onde dormimos numa pensão. A cama cheirava a “ pés sujos “ que se fartava ... Tínhamos encontro de manhã cedo em Espanha, numa estrada secundária. Passámos a fronteira 
[em Vilar Formoso ] sem dificuldade e lá os encontrámos. Partimos numa alegria contagiante que nos apanhava as entranhas.

Os rapazes atrás, as raparigas à frente, mapa de Espanha na mão. Quando chegámos à fronteira Espanha/França, em São Sebastião, os rapazes deixaram as roupas e subiram ao longo do rio para o passarem a vau.

Deixámos decorrer algum tempo e passámos a fronteira sem incidentes. Gritámos uf! E lá seguimos para o sítio do encontro em França.

Ao fim de uma grande subida, um carro da polícia francesa manda-nos parar. Garganta seca, fizemos como se não soubéssemos falar francês, não respondemos às perguntas que nos fizeram, mas falávamos muito em português. Eles queriam saber aonde íamos e porque tínhamos roupa que não era nossa no carro, a quem pertenciam aquelas calças e aqueles sapatos. Depois de revistarem tudo, foram-se embora.

Arrumámos o carro como pudemos e partimos rumo a uma estrada secundária na direcção de um ribeiro que faz a fronteira. Lá esperámos. Ao fim de um certo tempo, vimos surgir os nossos amigos. Chegaram todos molhados e sujos do “rio da merda”, como eles lhe chamaram. Sentadas numa vereda, esperámos que eles se limpassem e vestissem.

Já fazia escuro quando voltámos à estrada. Calados de medo, seguimos até Biarritz. Comemos e depois procurámos um albergue, enquanto os rapazes foram para a estação dos comboios. Era ali o fim da nossa viagem juntos. Abraçámo-nos emocionados. Foi difícil deixá-los, pois apetecia acompanhá-los até ao fim da viagem.

No dia seguinte, regressámos. Passámos por Pamplona, pois tínhamos dito à família que íamos às festas desta cidade [referência às famosas festas de São Firmino, que se realizam anualmente de 6 a 14 de julho]. Queríamos trazer alguns panfletos e outra publicidade que confirmassem a nossa “história”.

(…) A passagem da fronteira portuguesa foi complicada. Obrigaram-nos a estacionar o carro num parque, atrás da alfândega. Fomos levadas para dentro da alfândega onde nos interrogaram. Este tempo pareceu infinito. As respostas tinham sido já pensadas antes de partirmos. Muito firmes, respondemos a tudo. Eu tinha em mente uma frase do nosso professor de filosofia, Honorato Rosa [padre católico, falecido em 1968] , “A verdade é para quem a merece”.

Voltámos para o carro, com dois polícias que o desmancharam todo. Tiraram tudo do porta-bagagens, os revestimentos do porta-bagagem, o pneu sobressalente, enfim, um pavor! Por fim deixaram-nos passar. Não soubemos se telefonaram para Lisboa, para as nossas famílias, ou não. Mas passámos um mau bocado.

(...) Estas ajudas continuaram com outras modalidades e outras cumplicidades (…) O Carlos foi um dos últimos refractários que ajudámos a sair de Portugal, desta vez pelos lados de Trás-os-Montes. Era o amigo da Merita, minha amiga desde os nossos estudos universitários.

Ela foi ter com ele a Grenoble, e eu fui visitá-los várias vezes ao Chemin Jésus, nome da rua onde ficava um apartamento, numa casa antiga, com grandes quartos onde se vivia em comunidade entre os refugiados, desertores, refractários e exilados, numa convivência de “república de estudantes coimbrões”.

Aí conheci um francês que, mais tarde, no Verão de 1970, me veio visitar com a Merita e mais amigos, ao Norte de Portugal, onde trabalhava.(…)

(...) Fins da Primavera, princípios do Verão de 1973, amigos meus chegaram a Grenoble, fugidos de Portugal, a seguir à prisão da Xexão com a célebre “mala das armas”.

A nossa casa, um apartamento num bairro popular da periferia de Grenoble, onde viviam muitos compatriotas, meus vizinhos, transformou-se num albergue. Tentámos encontrar soluções para os amigos e outros portugueses fugidos à guerra. (...)

Nessa altura, conheci outras “redes” como a associação Chrétiens français-immigrés ["Ronda do Soldadinho", canção de José Mário Branco gravado em 1969 com o apoio de associações de imigrantes  portugueses] (...)

(…) A minha vida de imigrante em Grenoble era muito agitada. A semana começava às 6 horas da manhã no hospital e nunca acabava, pois a seguir ao trabalho eram os encontros e as reuniões.

Algum tempo depois de eu chegar a Grenoble, os imigrantes revoltaram-se contra as leis racistas francesas. Os imigrantes que habitavam nos “lares dos trabalhadores” fizeram greve.

(...) Os imigrantes portugueses estavam pouco organizados com os outros colegas de trabalho, não conheciam os sindicatos, queriam ser discretos, não dar nas vistas. Era preciso explicar, mobilizar.

(...) Em Varses e Vif, cidades muito perto de Grenoble, onde existiam muitos portugueses , ensinávamos cantigas, explicando o texto e o sentido da história : “Um e dois e três, era uma vez um soldadinho” teve grande sucesso.

Sábados e domingos, depois do almoço, íamos para as Associações de Portugueses: Em Echirolles onde vivia, no bairro Des Alpins, em Fontaine, no Clos d’Or....

Nós, o Noël [,o marido,] e eu, ficávamos com os mais jovens, crianças e adolescentes, cantávamos, dançávamos, discutíamos, falávamos de Portugal, das colónias, da guerra, da imigração...

Também falávamos da História de Portugal. Mostrávamos diapositivos dos monumentos, etc. Tanto os pais como os filhos, conheciam de Portugal, apenas a aldeia de onde vinham, onde passavam as férias e onde construíam “a casa”.

Sexta-feira à tarde ou sábado de manhã, nós as mulheres, preparávamos os nossos encontros do fim-de-semana. Lá em casa era um regabofe. Umas descascavam as batatas, outras desfiavam o bacalhau, picavam cebolas e salsa. Tudo isto no meio de cantares e histórias das vidas vividas. Risadas e falares alto com grande alegria e entusiasmo. Bons momentos de confidências e convivência.

(...) Nessa altura, a nossa casa estava à disposição de todos os que vinham pois tínhamos espaço e comodidades. Estou a ver ainda o Zeca Afonso, a fazer composições de novas músicas e novas letras e a gravar, em várias vozes sobrepostas, no nosso gravador, numa cassette que ainda tenho.

Nestas manifestações, os pastéis de bacalhau eram indispensáveis e, lá estávamos nós, as mulheres, às voltas a fazermos quilos e quilos de frituras que perfumavam a casa durante semanas.

Nesta altura, em França, e sobretudo em Grenoble, onde nasceu o Planeamento Familiar, uma militância importante cresceu entre as mulheres portuguesas e as mulheres francesas.

(...) Reuníamos entre nós para trabalharmos sobre acções políticas, para mobilizarmos a opinião pública francesa, na denúncia da política fascista e colonialista em Portugal.

Mobilizar a opinião pública internacional era um meio muito importante e eficaz na luta contra a política portuguesa, sempre muito sensível ao que se dizia de Portugal, no estrangeiro. Sempre foi assim e continua a ser.

(...) As reuniões faziam-se em nossa casa. Longas noites e longas tardes de Sábado, onde o sério se conjugava com risadas e anedotas.

(...) Mais tarde, formámos uma associação francesa (sob a lei de 1905), o GAP (Grupo de Acção Política), para termos acesso ao espaço público francês de maneira oficial.

(...) Voltemos a Grenoble e aos anos 1973/74. As manhãs de domingo eram dedicados à venda de O Alarme nos mercados. Éramos muitos, nesta tarefa militante, pois O Alarme chegava a todos os mercados de Grenoble e arredores. ["O Alarme" era um jornal regional, criado em Junho de 1972, sendo destimado aos imigrantes portugueses; era de publicação mensal e distribuído na região de Grenoble].

(...) Também íamos a cidades mais longe onde os portugueses nos esperavam para aqueles dois dedos de conversa, trocas das novidades do País e das famílias. Lembro Vienne, Rives, Tulin... Depois fazíamos as nossas compras. Vínhamos sempre carregados de couves e outros legumes bem ao nosso gosto, chouriços e outras delícias.

(...) Como sempre, éramos mais mulheres que homens . O “machismo”, bem português, também aí se fazia sentir pois tínhamos que seguir à letra o que o “chefe” dizia e estipulava. Brigávamos muito mas recomeçávamos sempre.

(...) A ida a Portugal para irmos buscar “os últimos objectores e refractários” foi a 22 de Abril 1974.

Partimos, o Noël e eu na nossa Renault 4L, rumo ao Alentejo. Ficámos em Madrid em casa do Bart, um amigo meu, holandês expulso de Portugal. Ele deu-nos as últimas notícias dos amigos que tinham sido presos nuns dias anteriores e insistia comigo para não seguir viagem pois, dizia ele, se eu entrasse em Portugal ia “dentro”, como os nossos amigos. A PIDE andava muito assanhada.

Nós tínhamos compromissos e partimos no dia seguinte. Escolhemos entrar pela fronteira de Vila Real de Santo António, mais discreta.

(...) Resolvemos seguir caminho. Parámos em Sines. Fomos comer alguma coisa num café. Que espanto, ouvíamos na rádio música e cantares proibidos. Não era possível! Perguntámos o que se passava. O empregado não sabia muito bem. Falava-se de Movimento das Forças Armadas. Ninguém sabia muito bem o que se passava em Lisboa.

Uns gritavam “Agora é que é ! O governo já caiu” . Outros gritavam “Ai meu Deus, que eles vão matar o povinho todo”.

Resolvemos vir rapidamente para Lisboa, sem parar em Évora onde tínhamos encontro com alguém que nos devia indicar o que devíamos fazer em seguida.

(…) Em Lisboa percebemos TUDO! Vimos amigos, sentimos o alvoroço. Fomos até à casa dos meus pais, no Bairro do Arco Cego, em frente do Ministério do Trabalho. “Chaimites” impediram que parássemos o carro em frente da casa.

Os meus pais estavam à janela do primeiro andar da moradia. A curiosidade era maior que todos os medos. A minha mãe, sempre com medo das revoluções e das guerras civis, que lembravam a sua infância, dizia-me “se eles te vêem minha filha... Isto está muito feio. Não sei em que isto vai dar”. Mas não saía da janela!

Telefonei, marcámos encontros, trocamos alegrias e esperanças. Saímos para ir para a Baixa. Não havia autocarros, nem Metropolitano. Fomos pelas Avenidas Novas em direcção ao Saldanha, com a intenção de descer a Avenida da Liberdade. Não pudemos avançar. Toda a Lisboa estava na rua.

O resto todos sabemos! 

[Seleção / Revisão e fixação de texto / Negritos e paratênses rectos com legendas explicativas, para publicação exclusiva no blogue: LG]

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Nota do editor:

Último poste da série > 18 de abril de 2022 > Guiné 61/74 - P23179: Manuscrito(s) (Luís Graça) (211): "Viva o compasso pascal / Desta linda freguesia, / Fizeram-nos muito mal / Estes dois anos de pandemia."