terça-feira, 14 de junho de 2022

Guiné 61/74 - P23350: Bom dia, desde Bissau (Patrício Ribeiro) (29): Por terras de Farim - II (e última) Parte: gentes e lugares


Foto nº 5A > Guiné-Bissau > Região do Oio > Farim > 7 de junho de 2022 > Tabanca de Canico  Tomane, mulheres mandingas, horticultoras (2)

Foto nº 5 > Guiné-Bissau > Região do Oio > Farim > 7 de junho de 2022 > Tabanca de Canico  Tomane, mulheres mandingas,  horticultoras(1)

Foto nº 5B > Guiné-Bissau > Região do Oio > Farim > 7 de junho de 2022 > Tabanca de Canico  Tomane, mulheres mandingas, horticultoras (3)

Foto nº 6 > Guiné-Bissau > Região do Oio > Farim > 7 de junho de 2022 >  Tabanca de Canico  Tomane, bajudas mandingas...  Vejam os "progressos" do véu islâmico..., quando comparamos estas imagens com as do passado de 50 anos.


Foto nº 7 > Guiné-Bissau > Região do Oio > Farim > 7 de junho de 2022 > Molhos de lenha, à beira da estrada, no K3. A lenha e o carvão são levados para Bissau para que não falte na época das chuvas na casa das famílias... 90% das famílias de Bissau ainda os utilizam como combustível nas suas cozinhas.

Foto nº 8 > Guiné-Bissau > Região do Oio > Farim > 7 de junho de 2022 > Horta de Djalicunda

Foto nº 9 > Guiné-Bissau > Região do Oio > Farim > 7 de junho de 2022 >  Tabanca de Binar Fula, Dungal

Foto n  10 > Guiné-Bissau > Região do Oio > Farim > 7 de junho de 2022 > Tabanca de Binar Fula, Dungal. Ainda há burros...


Foto nº 11 > Guiné-Bissau > Região do Oio > Farim > 7 de junho de 2022 >  "Torre de observação e de lanternas, na rampa sul de Farim"

Fotos (e legendas): © Patrício Ribeiro (2022). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Continuação da publicação das fotos que o  Patrício Ribeiro (nosso correspondente em Bissau, colaborador permanente da Tabanca Grande para as questões do ambiente, economia e geografia da Guiné-Bissau, onde vive desde 1984, e onde é empresário) nos mandou de Farim no passado dia 9 (*).

Interessantes as fotos nºs 5 e 6, reveladoras da evolução dos costumes no que diz respeito à indumentária feminina e, nomeadamente, ao uso do véu islâmico. Sobre este assunto ver um artigo do El País, de 16 de agosto de 2016 (Islão: ISLÃ - Como identificar os diferentes tipos de véus islâmicos)
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Nota do editor:

Guiné 61/74 - P23349: Parabéns a você (2074): Francisco Silva, ex-Alf Mil Art da CART 3492 e CMDT do Pel Caç Nat 51 (Xitole e Jumbembém, 1971/73)

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Nota do editor

Último poste da série de 8 DE JUNHO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23335: Parabéns a você (2073): João Gabriel Sacoto, ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 617/BCAÇ 619 (Bissau, Catió e Cachil, 1964/66)

segunda-feira, 13 de junho de 2022

Guiné 61/74 - P23348: Bom dia, desde Bissau (Patrício Ribeiro) (28): Por terras de Farim - Parte I: atravessando, de piroga, o rio Cacheu onde há crocodilos...


Foto nº 1 > Guiné-Bissau > Região do Oio > Farim > 7 de junho de 2022 > Pirogas: o único meio de transporte para  atravessar o rio Cacheu  e chegar a Farim


Foto nº 2 > Guiné-Bissau > Região do Oio > Farim > 7 de junho de 2022 > Fila para apanhar as pirogas para a cidade de Farim


Foto nº 3 > Guiné-Bissau > Região do Oio > Farim > 7 de junho de 2022 > Piroga para Farim... Lá vou eu!


Foto nº 4 > Guiné-Bissau > Região do Oio > Farim > 7 de junho de 2022 > Crocodilo-do-Nilo (Lagarto, em crioulo) (Crocodylus nilotcus)... Está protegido por lei... Pode atingir os 7 metros de comprimento...e atacar o homem.


Fotos (e legendas): © Patrício Ribeiro (2022). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Mensagem do Patrício Ribeiro, nosso correspondente em Bissau, colaborador permanente da Tabanca Grande para as questões da ambiente, economia e geografia da Guiné-Bissau, onde vive desde 1984, e onde é empresário:

Data - quinta, 9/06/2022, 17:22
Assunto - Bom dia, desde Bissau

Luís,

Junto algumas fotos, dos meus passeios esta semana, pela região de Farim.

Com o início das chuvas, há muita atividade agrícola, nas recolha e vendas dos produtos:

  • Castanha de caju, centenas de camiões de reboque a retirar dos pequenos armazéns nas tabancas (quase todos de proprietários da Mauritânia) para vender aos grandes armazéns dos Indianos em Bissau;
  • O fole, que um fruto da época, acido, mas que tira a sede e dá um belo sumo;
  • Sacos e sacos cheios de mangos à venda nas tabancas, para serem transportados para as cidades;
  • Lenha e carvão, também vendido à beira da estrada, para ser transportado para Bissau, para não faltar na época das chuvas na casa das famílias. 90% das famílias de Bissau ainda utilizam como combustível nas suas cozinhas.

Junto fotos das pirogas de transporte de pessoas e mercadorias, para travessia do rio Cacheu em Farim, já que os outros meios de transporte estão avariados. (as fotos falam por si) (Parte I). Assim como fotos de algumas tabancas, onde passeamos em trabalho como sempre (Parte II, poste a seguir)

Bom feriado, para os trabalhadores de Lisboa, terra da Maria...

Abraço

Patricio Ribeiro

IMPAR Lda
Av. Domingos Ramos 43D - C.P. 489 - Bissau , Guine Bissau
Tel,00245 966623168 / 955290250
www.imparbissau.com
impar_bissau@hotmail.com
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Nota do editor:

Guiné 61/74 - P23347: (In)citações (209): As virtudes do Ensino em tempos remotos (Hélder Sousa, ex-Fur Mil TRMS TSF)

Em mensagem do dia 11 de Junho de 2022, o nosso camarada Hélder Valério de Sousa, ex-Fur Mil de TRMS TSF (Piche e Bissau, 1970/72), vem falar-nos das condicionantes impostas pelo sistema nos nossos tempos de jovens estudantes que determinavam o nosso futuro como militares e até depois como civis:


AS VIRTUDES DO ENSINO EM TEMPOS REMOTOS

Há sempre uma necessidade reclamada por amigos para que se possa contribuir com textos tendo em vista alimentar as suas publicações.
Nem sempre ocorre inspiração para recorrer à memória a fim de materializar recordações. Desta vez, depois de algum vazio mental, lembrei-me, já nem sei porquê, de um episódio, melhor dizendo, de uma sequência de episódios, que originaram situações que potenciaram consequências.
E por isso atrevo-me a pedir que depois de lerem, se lerem, me ajudem com as vossas opiniões, sobre que lições se podem tirar (se é que se podem tirar algumas) do conjunto das situações.

1. - Vamos aos factos

Depois de ter feito o Curso de Montador-Electricista (era assim que se designava) na Escola Industrial e Comercial de Vila Franca de Xira, terminado em 1964, fui para Lisboa, cidade grande, fazer as chamadas Secções Preparatórias para o possível ingresso no Instituto Industrial. Essa fase intermédia ocorreu na Escola Industrial Machado de Castro, nos anos letivos de 1964/65 e 1965/66. Os exames de admissão decorreram com aproveitamento e deste modo entrei no Instituto Industrial de Lisboa para o Curso de Eletrotecnia e Máquinas em Outubro de 1966.

2. – Enquadramento social

Dois pequenos apontamentos para ajudar a complementar as situações e a focalizar as “cenas” na época.

Um desses apontamentos é para lembrar que o Ensino estava elitizado. Havia a via liceal e a via do chamado “ensino técnico”. Aos “liceais” estava aberta a via para a Universidade, nas suas várias vertentes, com os seus “cursos superiores”, enquanto que para os do “ensino técnico” era privilegiada a “via profissional”, ou seja, a entrada no mercado de trabalho para exercer uma profissão ou então, através dos “Institutos”, para almejar alcançar uma situação que seria sempre reconhecida como “cursos médios”.

Ao nível do ensino da engenharia isso traduzia-se a que as duas vertentes, a “universitária” e a “média” se materializavam no Instituto Superior Técnico (e Faculdades de Engenharia) e nos Institutos Industriais, sendo que essa separação elitizada projetava-se na Instituição Militar com os primeiros a integrar os Cursos de Oficiais Milicianos (o COM) e os outros os Cursos de Sargentos Milicianos (o CSM).

Outro pequeno apontamento é que pelos anos acima indicados, talvez ainda se lembrem, pois já são anos “do século passado”, havia um esforço de guerra governamental em terras africanas para defender da cobiça internacional aquelas terras e aquelas gentes que nos tinham sido legadas pelas gestas dos descobrimentos e que os nossos “antanhos” tinham desbravado e defendido para nós, “numa mão a Cruz, noutra a Espada”.

Para esse esforço foram mobilizados milhares de jovens. Aos que na época eram estudantes, era facultada a possibilidade de adiamento da incorporação nas Forças Armadas através de pedidos nesse sentido, com base no desenvolvimento dos estudos.

Aos jovens que frequentavam o Instituto Industrial, que para lá chegarem tinham tido, para além da 4.ª Classe de escolaridade, 5 anos de Ensino Técnico e depois 2 anos das Secções Preparatórias, num total de 7 anos, mas que não tinham “equivalência funcional” aos 7 anos do Ensino Liceal, era também concedida a possibilidade de “pedido de adiamento” mas, para tal, o “aproveitamento escolar” deveria ser irrepreensível. 

 Havia umas quantas “cadeiras” que davam precedência a outras do ano seguinte e cuja falta implicava não se poder avançar e, consequentemente, ao nível do “aproveitamento” era considerado insuficiente para o fim pretendido.

3. - Continuando então com os factos

Este jovem que vos escreve, que até então tinha sido um aluno de razoável mérito, “distraiu-se” um pouco no meio da “cidade grande” e das suas solicitações, embora diariamente fizesse as viagens de comboio entre a casa familiar e a Escola. 

Como resultado disso, as notas da maior parte das disciplinas da 1.ª Frequência desse ano letivo de 1966/67 foram o que se pode chamar “um desastre”. Após isso, e reganhando vontade, atirou-se a tentar recuperar o possível e aconselhado por um Professor de uma das cadeiras fulcrais, a Física, deixou-a “cair” para ter possibilidade e capacidade para outras. Assim fiz.

Não passei de ano na totalidade, pois algumas cadeiras ficaram para trás, mas como ainda não tinha chegado a idade da incorporação militar não houve consequências imediatas. Entrei então no meu segundo ano de presença no Instituto, ano letivo de 1967/68, embora a frequentar novamente cadeiras do 1.º ano e, salvo erro, apenas duas já do 2.º ano, as que não necessitavam de precedência e tinha tido aproveitamento.

Esse ano correu bem.

4. – A situação “estranha”

No ano seguinte, ano letivo de 1968/69, em que já tinha ido “às sortes” em Agosto e aprovado para todo o serviço), as coisas “complicaram-se” a partir de um acontecimento insólito. A cadeira de Matemática II tinha um professor na “teórica”, de nome “Vítor qualquer coisa”, mas por lá conhecido na gíria por “papá”,  já que tínhamos a “mamã”, esposa dele, a dar a “prática”. Diga-se então, em abono da verdade, que funcionava assim como uma “disciplina familiar”…

A “mamã” era uma pessoa de baixa estatura que contrastava fortemente com a altura física do “papá”, o que por vezes era motivo de piadinhas, mas o mais agravante era o facto de a senhora dar aulas a crianças do preparatório e algumas vezes não se dava conta de estar a leccionar no Instituto a “pessoas crescidas” e com recorrência, para chamar a atenção a qualquer coisa, recorria à expressão “então, meninos, tomem lá atenção a isto”, coisa que criava animosidades.

Num dia de prova prática, ocorrida num dos pavilhões onde se davam aulas por falta de instalações apropriadas (um espaço retangular com o quadro ao fundo, a secretária da docente também, carteiras distribuídas em filas e porta de entrada num canto oposto ao quadro), a “mamã” começa a escrever no quadro o enunciado da prova, obviamente estando de costas para os alunos.

Acontece que aí na terceira ou quarta questão, enquanto a escrevia, a porta do fundo foi aberta e um aluno mais velho começou a dar em voz alta a solução para uma daquelas questões. Claro que houve algum “bruá” com o insólito da situação e eu também, entre outros, voltei a cabeça para trás para ver quem e donde vinha o “atrevimento”. Nesse instante a “mamã” também se virou e disse
- Arrume os seus papéis e saia!.

Com o pressentimento que aquilo podia ser para mim,  perguntei ao colega que estava ao lado, que me disse que lhe parecia que sim. Olhei para a “mamã” que nesse momento estava com a cabeça voltada para baixo e continuei a procurar responder às questões. Voltei a ouvir:
- Já lhe disse, arrume os papéis e saia!.

Incomodado com a injustiça e com o “sangue na guelra” dos 19/20 anos, levantei-me e interpelei pouco amistosamente:
- Isso é comigo?
- Sim, sim, saia!
- Mas, professora, eu não fiz nada, não era eu que falava, além disso já tenho estas questões resolvidas, porque é que tenho que sair?
- Porque eu mando!

Revoltado com a situação, levantei-me e incorretamente (do ponto de vista “civilizacional”) cheguei perto da “mamã” e, literalmente, atirei, à bruta, com o papel onde estavam algumas respostas resolvidas, para cima da secretária e saí. 

É preciso que se diga, também em prol da verdade, que 4 ou 5 dos colegas presentes falaram em meu abono e fizeram também menção de abandonar a sala, mas consegui demovê-los a tal.

5. – Consequências “quase” imediatas

Um pouco mais tarde, aquando da colocação das pautas com as classificações, verifiquei que no que me dizia respeito estava lá um provocador “8”, escrito por cima de número rasurado que, notava-se bem por o verniz corretor nem sequer disfarçar bem, que tinha dois dígitos. 

Estava ainda a tentar perceber/digerir o que se passava e as consequências do mesmo, quando vindo do corredor da secretaria aparece o “papá”. Na minha santa ingenuidade pergunto-lhe se não teria havido algum engano pois estava convicto de que no exame final ter tido um desempenho que esperava ser da ordem dos 14 ou 15 e afinal estava na pauta um 8.

Com a maior desfaçatez perguntou sibilinamente
- Qual é o seu número? - ao que eu disse:
- 8606. -  ele replicou (mostrando assim conhecer bem a “estória”):
- Ah, isso, é para ver se ganhas juízo para o ano!

Com esta situação, não foi possível mostrar que o aproveitamento era bom e como consequência fui chamado a incorporar o Exército, a meio de Julho de 1969 na EPC (Escola Prática de Cavalaria), em Santarém, para o 1.º Ciclo do CSM.

6. - Considerações

É aqui que peço o vosso auxílio para tentar extrair conclusões deste emaranhado de acontecimentos e seus enquadramentos.

Valorizar o sistema de Ensino então vigente? O seu elitismo? A sua forma de aplicar pedagogia?

Por outro lado, é bem verdade que, por via dos acontecimentos, tive a oportunidade de contactar e conhecer tantas pessoas com as quais agora desenvolvo relações de amizade e respeito.

Então qual deverá ser o sentimento que devo privilegiar nestas recordações?

Hélder Sousa
Fur. Mil. Transmissões TSF

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Nota do editor

Último poste da série de 30 DE MAIO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23312: (In)citações (208): Uma tarde maravilhosa, na cidadela de Cascais, vendo com pessoas amigas a exposição "Portugal e Luxembugo: países de esperança em tempos difíceis" e recordando o nosso Aristides Sousa Mendes (João Crisóstomo, Nova Iorque)

Guiné 61/74 - P23346: Notas de leitura (1455): "Era Uma Vez na Tropa, Rescaldos da guerra em desfile de memórias", por Ireneu de Sousa Mac; Europa Editora, 2022 (Mário Beja Santos)



1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 6 de Junho de 2022:

Queridos amigos,

Permitam-me justificar a minha incredulidade face à leitura desta narrativa. Passado meio século, manda a sabedoria do perdão que acompanha os velhos, há ressentimentos, azedumes e horas más que passam para a categoria dos desperdícios. Irineu Mac apresenta-se como uma exceção, di-lo frontalmente: "Toda a guerra depois de finda ainda vive em nós. Uma guerra não acaba enquanto houver um último sobrevivente e enquanto os familiares ou amigos que sofreram danos colaterais tiverem memória. Aqui são retratadas as vivências de um miliciano, em jeito de alter ego, forçado a entrar numa guerra de causas e motivações alheias em condições muito adversas".

 É uma narrativa confessional, onde a guerra propriamente dita e a sua relação com os outros merece escassos parágrafos, no entanto, terá vivido uma experiência bem dura em territórios marcadamente hostis em derredor de Mansoa, foi cofundador e professor na escola regimental de Mansoa, voluntariou-se na escola primária da aldeia na preparação para exames de 4ª classe, são assuntos tratados de raspão, questionamos porquê, numa narrativa onde o timbre é dado pelos tais azedumes e recordações de que a idade nos liberta, tal como ele observa nos encontros de ex-combatentes teimamos nesta bonomia de avançar para o outro de braços abertos.

Um abraço do
Mário



Lembranças da CCAÇ 15 (1970-1971), com amargores e ressentimentos

Mário Beja Santos

É cada vez mais raro encontrar nas obras de cunho memorial sobre a guerra colonial algo que fez parte da 1.ª fase deste ramo literário: os ajustes de contas, a revolta incontida pelos comportamentos militarões, o azedume pelo facto da tropa ter impedido os estudos, a catilinária sobre a absurdez e a perversidade daquelas guerras. A idade e o peso da memória fazem outros escrutínios, é aquela sabedoria em que o fel e a bílis já não têm papel na nossa vida. "Era Uma Vez na Tropa, Rescaldos da guerra em desfile de memórias", por Ireneu de Sousa Mac, Europa Editora, 2022, é uma história pessoal de um furriel miliciano que pertenceu à Companhia de Caçadores Nativos, a 15, sediada em Mansoa. 

Revela que lhe interromperam os estudos, que o mundo desabou à sua volta, estava preste a concluir o 7.º ano de liceu. Quando regressou era uma amostra de si próprio, pesava 54kg com 170cm de altura, já tinha os dois irmãos mais velhos nas penas de África, ainda hoje não consegue esquecer o olhar de despedida e a compaixão de familiares e amigos quando lhe disse que ia para a Guiné. A guerra não acabou para Mac. É a vivência na Guiné que ele vai relatar. Antes, porém, conta-nos que estudou num colégio privado, chegou o dia mais infeliz da sua vida, assentou praça nas Caldas da Rainha, confessa que nunca foi capaz de abrir o baú e deixar que as memórias viajassem pelo mundo fora. Agora, já está mais descontraído, fala-nos da sopa intragável, dos treinos nas serranias laterais ao rio Séqua, estava desarranchado, tinha um companheiro de quarto que acabou por desertar. 

“As atitudes danosas e injustas da tropa, deixaram ao Mac marcas desagradáveis e de aversão, ainda hoje, à flor da mente e dentro da pele”.

Irineu Mac esboçou a arquitetura sobre a forma de diálogos com o amigo, há pergunta e resposta, e depois de se falar em classificações do curso, ei-lo que parte em rendição individual para CCAÇ Nat 15. 

“O mundo de Mac sofre um segundo terramoto. Faliram os projetos, desabaram os sonhos. Nunca mais o futuro se escreveu da mesma maneira”

E parte, em estado lúgubre, em 3 de fevereiro de 1970. Dá-nos a nota de rodapé a composição do quadro de oficiais, sargentos e praças oriundos da metrópole, juntam-se todos em Bolama, onde diz que as condições de vida eram péssimas. E partem para Mansoa, descobre que não pode vir a férias até à metrópole por ter 8 dias de prisão no cadastro, coisas que se passaram em Tavira, tudo má sorte. Tira carta de condução de mota. Foi forçado a ir votar num cidadão qualquer, coisas de eleições do Estado Novo. Conta a história de uma cobra que se escapuliu para um buraco da bota, segue-se um rol de peripécias, mete caça, comida, a vida em Cutia tinha as suas durezas. Não se escapa às considerações erótico-sexuais. Não lhe escapou à memória uma encenação feita para jornalistas estrangeiros, um simulacro de combate na mata, uma autêntica montagem cinematográfica. Há acidentes com armas, fala-se de ataques de abelhas.

Nova confissão, há ressentimentos que pesam: 

“Mac foi impelido para a tropa pela intimação, pela força da lei e dos homens dominados, pela obsessão na qual não navega a razão. Ainda tentei, por duas vias, adiar a tropa para a incorporação seguinte. Em especial porque queria muito concluir o ano letivo. Nunca obtive resposta. Voltei com a guerra às costas. Sem bater à porta, fez-se de convidada, entrou sem autorização e sentou-se à mesa da vida. Enquanto a malária, de febre em riste, entrava pelo postigo, pelas frestas das janelas e pelos interstícios dos telhados. Mas não penses que foi fácil regressar. Inventavam atrasos atrás de adiamentos. Já nos íamos adentrando pelo 25.º mês e ainda não tínhamos sido substituídos. Quanto mais o tempo passava, mais o medo aumentava e a coragem e a vontade de arriscar escasseavam. Ninguém queria morrer ao quebrar da onda na areia”.

Há referências esporádicas a operações, patrulhamentos, situações de fogo cruzado. E vem a história de Zé Mamede que em outubro de 1970 abalou de Mansoa em direção ao seu destacamento, Infandre. Chegou notícia cerca do meio-dia de ter havido uma emboscada entre Braia e Infandre, foi logo gente em auxílio. 17 feridos, 10 mortos, entre eles o Zé Mamede. O alter ego de Mac pergunta-lhe se o Zé Mamede deve ser homenageado enquanto heróis, resposta do Mac: 

“O Zé Mamede não é herói. É uma vítima, mortal, inocente, de estratégias alheias e inconsistentes das ideologias reinantes. O Zé é uma vítima de ambições de grandeza desproporcionadas, ultrapassadas e nefastas. O Zé é uma vítima da ambição errónea e condenável de outros. Da opção do orgulhosamente sós”.

Mais adiante, sentencia: 

“Jamais psicólogo algum ou alguma psiquiatria salvará do trauma a quem matou mesmo para sobreviver”.

O alter ego de Mac tem acesso à sua correspondência: 

“A solidão é a minha companheira. Oh esperança, não me abandones! Fica comigo. Agora. Alimenta e alenta a minha vida em frágil equilíbrio sobre o gume das armas. Agora.”

Escreveu poesia. Em jeito de rememoração, dá-nos a saber que fazia parte da estratégia de Spínola formar companhias de caçadores nativos de elite, Mac integrou uma força operacional, atuou nas matas cerradas. Deu trabalho, mas ao fim daquele tempo todo, foram metidos num avião, regresso a Lisboa. Ficamos a saber que entre a tropa metropolitana e os soldados africanos houvera solidariedade devido à luta vital conjunta que se travava. E descreve demoradamente as peripécias do regresso. Confessa ao seu alter ego: 

“Não tenho estátua, mas tenho um louvor e uma insígnia. Não me perguntes como nem porquê. Nem sei bem responder. O que posso garantir é que, decerto, não foi pela minha valentia ou por qualquer ato de heroísmo. Acredito que possa ter sido por me voluntariar a instaurar uma escola regimental para os soldados africanos aprenderem a ler. E isso bastou-me para obter benefícios propinários, deu-me direito a isenção de propinas extensível aos filhos. Cumpri deveres porque me sujeitei a eles. Também não abdiquei daquele direito. Contudo, preferia não os ter tido”.

Despede-se do leitor, desta vez sem azedumes nem ressentimentos:

“A guerra tira, mas também dá. Enobreceu em nós o espírito de entreajuda e o sentido da amizade. Continuamos unidos pela amizade construída sobre a solidariedade vivida nas matas do Oio, do Olossato, do Morés, do Changalana, do Locher. Eu sei que, ainda hoje, essa união se mantém na trajetória de muitos ex-combatentes. Eu sei porque tenho observado muitos dos seus almoços-convívios. Paro, sempre extasiado pelos abraços emotivos que vejo”.

Vista parcial do destacamento de Cutia. Foto: César Dias, com a devida vénia
Localização do destacamento de Cutia

Crachá da CCAÇ 15

Estandarte do CCAÇ 15
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Nota do editor

Último poste da série de 10 DE JUNHO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23341: Notas de leitura (1454): “La fin de l’empire colonial portugais, Témoignages sur un dénouement tardif et tourmenté”, por Éric e Jeanne Makédonsky; L’Harmattan, 2018 (2) (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P23345: Humor de caserna (55): O anedotário da Spinolândia (VI): no Cumbijã ouvi o nosso general a utilizar mais do que uma vez "a palavra que imortalizou Cambronne", para recriminar um oficial superior (Vasco da Gama, ex-cap mil cav, CCAV 8351, Cumbijã, 1972/74)


Guiné > Região de Tombali > Cumbijã > CCAV 8351 (1972/74) > Da direita: para a esquerda, o cap mil  cav Vasco da Gama, o general Spínola, o cap inf José Malheiro,  da CCaç 3399, de Aldeia Formosa, e o  comandante do BCaç 3852 (Aldeia Formosa, 1971/73). Spínola visitiu três vezes a CCAV 8351 (em Aldeia Formosa, Cumbijã e Nhacobá). 

Foto (e legenda): © Vasco da Gama (2009). Todos os direitos reservados Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. É uma boa história, um bom naco de humor de caserna, que nos ajuda a compreender melhor  a personalidade e a conduta do gen Spínola enquanto foi comandante-chefe e governador geral da Guiné, entre meados de 1968 e meados de 1973.

Foi contada aqui há mais de 13 anos pelo comandante dos Tigres do Cumbijã, cap mil cav  Vasco da Gama, CCAV 8351 (Cumbijã, 1972/74), os bravo de Nhacobá. 


Visita do General Spínola a Cumbijã em 14 de abril de 1973

por Vasco da Gama


Vasco da Gama
(...) Terminei o último capítulo da história da minha Companhia com o relato de um ataque ao arame no dia 9 de Abril de 1973, a um arremedo de aquartelamento que era o Cumbijã: duas fiadas de arame farpado, quinze ou vinte tendas de campanha, valas para protecção de eventuais ataques e uma cozinha de campanha. (...)

No dia 14 de Abril de 1973, mais uma vez recebemos a visita do General Spínola.

Parei este texto neste parágrafo, vai para mais de quinze dias. Problemas da vida pessoal, mas fundamentalmente o medo de não saber expressar, ou fazê-lo de forma menos correcta, os sentimentos acerca do General Spínola, homem controverso que suscitou, e pelos vistos continua a suscitar, sentimentos de amor e desamor, tão depressa acusado como louvado, que na guerra tentava encontrar soluções ou pela via diplomática junto de Senghor, ou invadindo países vizinhos, como aconteceu com a Operação Mar Verde, autor de "Portugal e o Futuro" (mais vale tarde que nunca), abandonando o Guileje ou pelo menos não lhe dando hipóteses de uma defesa racional, recusando o convite de Marcello Caetano para ministro do Ultramar em finais de 1973, recusando-se também e juntamente com o General Costa Gomes a fazer parte da Brigada do Reumático que foi prestar vassalagem a Caetano. 

Este homem, que foi também o primeiro Presidente da República,  após o dia da libertação – 25 de Abril de 1974  , este homem heterodoxo, será no decurso da história que vou escrevinhando acerca da minha Companhia, analisado apenas e só através de um discurso substantivo que se limitará a descrever a vivência que os Tigres do Cumbijã com ele tiveram.

No dia 14 de Abril de 1973 recebemos então a visita do General Spínola. Recordo-me da primeira pergunta que me fez:

−É do quadro ou miliciano?

Recordo-me da resposta imediata e eventualmente atrevida que lhe dei:

− Neste buraco?… Sou miliciano.

Vi nele o esboço de um sorriso, seguido de nova questão:

− Falta-lhe alguma coisa?

− Tudo |

− Tudo, o quê?

Seria fastidioso continuar esta conversa em discurso directo, pelo que os meus camaradas e amigos que são conhecedores das condições desumanas em que vivíamos, facilmente adivinharão o que durante alguns minutos lhe fui solicitando: 
  • cimento para construirmos casernas;
  • chapas de bidão cortadas;
  • apoio da Engenharia para que as coisas andassem mais rapidamente;
  • arcas frigoríficas a petróleo, pois não tínhamos direito a uma cerveja fresca;
  • um gerador;
  • e obuses, já que o apoio da artilharia quando éramos atacados nos era dado ou por Mampatá ou Aldeia Formosa, não tenho a certeza. 

A sua resposta ficou célebre entre os Tigres:

− Terá tudo isso na próxima LDG. Os obuses já estão tratados, o resto, repito, chega a Buba na próxima LDG, incluindo as arcas frigoríficas, nem que tenha de as ir buscar à messe dos oficiais de Bissau.

A parte final da frase obviamente era escusada, mas não imaginam a alegria que todos os soldados, e não só, sentiram ao ouvi-la. 

O General Spínola era exímio neste tipo de tiradas e nunca o ouvi a recriminar nenhum soldado, mas vi-o zangado com um grande do quadro, utilizando por várias vezes no seu discurso a palavra que imortalizou Cambronne (***), apesar da minha presença. 

Visitar-nos-ia ainda em Nhacobá, mas aí não houve tempo para discursos.

Só quero acrescentar que na LDG seguinte o prometido chegou! (...)

[ Seleção / revisão e fixação de texto para efeitos de publicação deste poste: LG]
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Notas do editor:


(***) Pierre Jacques Étienne Cambronne (1770 – 1842), francês, general de brigada do Primeiro Império, 1º Visconde de Cambrone, ficou célebre pelas palavras que terá  proferido na batalha de Waterloo, em 1815, à frente dos granadeiros da Velha Guarda de Napoleão.  Em inferioridade numérica,  cercado pelas pelas tropas do general inglês Charles Colville,  quando instado a render-se, com honra, ficou na história com a sua réplica: "La Garde meurt et ne se rend pas!" (A Guarda morre e não se rende!)... E terá acrescentado:  "Merde!", um típico vocábulo vernáculo dos gauleses... 

A expressão "a palavra que imortalizou Cambronne" (neste caso, "merde")  é um eufemismo, um figura de estilo com que se disfarçam as ideias desagradáveis ou as palavars grosseiras por meio de expressões ou palavaras  mais suaves...

domingo, 12 de junho de 2022

Guiné 61/74 - P23344: Agenda cultural (814): Tabanca dos Melros, 11 de junho de 2022: apresentação do livro do Joaquim Costa, "Memórias de Guerra de um Tigre Azul" (2021) - Parte I: Intervenção de Luís Graça, representado pelo escritor António Carvalho, ex-fur mil enf, CART 6250/72 (Mampatá, 1972/74)


Gondomar > Fânzeres > Tabanca dos Melros > 11 de junho de 2022 >  
Apresentação do livro “Memórias de Guerra de um Tigre Azul”,  de Joaquim Costa (Rio Tinto, Lugar da Palavra, 2021, 179 pp). Teve uma assistência na casa das 7 dezenas de pessoas. Da esquerda para a direita, na mesa (*), 

(i) António Carvalho (ex-fur mil enf, CART 6250/72, "Os Unidos de Mampatá", Mampatá, (1972/74), escritor, autor de "Um caminho de Quatro Passos", Rio Tinto: Lugar da Palavra Editora,2021, 218 pp.,  vive em Medas, Gondomar; representou o nosso editor Luís Graça, de quem leu um texto de apresentação do livro do Joaquim Costa; 

(ii) Carlos Machado, engenheiro técnico, a viver em Lisboa, e ex-furriel dos Tigres do Cumbijã, CCAV 8351 (Cumbijã, 1972/74);

(iii) Joaquim Costa, o autor do livro;

(iv) João Carlos Brito, professor, bibliotecário e escritor, em representação da Editora: Lugar da Palavra. com sede em Rio Tinto, Gondomar.

Foto ( e legenda): © Joaquim Costa (2022). Todos os direitos reservados Todos os direitos reservados [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


Os Tigres do Cumbijã 
e os trabalhos de Sísifo

por Luís Graça


Começo por saudar o nosso novo escritor, o talentoso Joaquim Costa, que nos honra a todos, antigos combatentes da Guiné, e em especial a Tabanca Grande, a que ele pertence, com mais 861 camaradas e amigos da Guiné, entre vivos e mortos. E saúdo naturalmente a Tabanca dos Melros que, generosamente, abriu as suas portas para este evento, na pessoa de um dos seus régulos, e nosso anfitrião, o Gil Moutinho.

Uma saudação muito especial para a família do Joaquim, de que ele muito se orgulha (os filhos Ricardo e Tiago, a “minha maior obra”, como ele diz, bem como a sua heroína Isabel e os seus netos).

Um alfabravo (ABraço) para os Tigres do Cumbijã, alguns aqui presentes, a sua “família da guerra”, os seus irmãos de “sangue, suor e lágrimas”, que vieram com o corpo e a alma tatuados com topónimos guineenses que levarão para a cova: Cumbijã, Nhacobá, Colibuía, Aldeia Formosa (hoje Quebo), Buba, Mampatá… 

 Ele é capaz ainda hoje de se lembrar de boa parte dos seus nomes ou alcunhas… Destaque para o Carlos Machado, que veio propositadamente de Lisboa, e que tem algumas divertidas e elogiosas referências no livro, não só pelos preciosos mapas, que levava consigo no mato, para eventuais pedidos de apoio de artilharia (do 2º Pel Art, que tinha 3 obuses 10,5 em Cumbijã), como pelo seu famoso bigode que era um autêntico sensor, capaz de farejar e detetar à distância a presença de inimigos nas redondezas.

Um abraço para todos os presentes nesta sessão, homens e mulheres de boa vontade, que aqui comparecem, e que tomam as necessárias precauções, não baixando a guarda face à maldita Covid que não desarma e continua por aí a fazer estragos.

Um Oscarbravo (OBrigado) ao António Carvalho, outro dos nossos escritores, vizinho do Joaquim, de Mampatá, que aceitou a ingrata mas solidária tarefa de me dar voz, nessa sessão, e de me representar nesta mesa: ainda com um mês de pós-operatório (fiz uma artroplastia total do joelho), e ainda a andar a quatro patas, ser-me-ia muito penoso fazer mais de 600 quilómetros, num só dia, para poder estar nesta festa. 

Recordo que no passado dia 11 de setembro de 2021 tive a honra de estar presente, na Tabanca dos Melros, entre os convidados que apresentaram o livro de memórias do António, “Um caminho de quatro passos”. Amor com amor se paga…

Mas também é com muita pena que não posso estar desta vez, para mais em dia de festa… E começo por recordar e agradecer as palavras calorosas que o Joaquim escreveu na dedicatória autografada no exemplar do livro que me mandou para casa. Cito-o textualmente:

“Para o ‘Pai’ putativo do meu (nosso) livro de memórias de guerra, amigo recente mas já sentado na primeira fila das pessoas que mais prezo. O meu obrigado pelo contributo decisivo no nascimento do meu terceiro ‘filho’, bem como da ‘nota final’. Joaquim Costa, s/d.”

Joaquim: faço aqui uma “declaração de interesses”, não vá qualquer sombra de dúvida ficar a pairar sob o céu da Tabanca dos Melros: a paternidade e a maternidade deste teu “terceiro filho” são todas tuas… Se quiseres ser generoso comigo, aceito ficar na fotografia como uma das várias parteiras-aparadeiras que te ajudaram a ter um parto eutócico, normalíssimo, feliz, não obstante as contrariedades da pandemia de Covid-19.

O livro saiu em dezembro de 2021, sob a chancela da editora Lugar da Palavra, aqui de Rio Tinto, tem 179 páginas, 30 capítulos, e é ilustrado com cerca de nove dezenas de fotos. Felicito o editor, ou representante da editora, João Carlos Brito, aqui presente também. 

E o preço de capa, meus amigos e camaradas, são dois maços de cigarros. A vantagem é que o livro faz bem à alma e os cigarros fazem mal à saúde. A mortalidade atribuível ao tabaco, num só ano, é superior à mortalidade por todas as causas (combate, acidente e doença) devida à guerra colonial, nos longos 13 anos em que decorreu (10 mil mortos, nos vários teatros de operações).

Em boa hora, e ainda em plena pandemia de Covid-19, o Joaquim começou a pré-publicar alguns excertos (mais de 2 dezenas) do livro que deu à estampa no fim do ano de 2021. Demos um título à série, “Paz & Guerra: Memórias de um Tigre do Cumbijã”… Publicaram-se até à data 27 postes, desde 2 de fevereiro de 2022. (**)

A série publicada no blogue e a versão final, agora dada à estampa sob o título definitivo, não são exatamente iguais. Todos ficámos a ganhar, a começar pelo autor, que, ao expor-se à crítica dos leitores, muitos deles antigos combatentes, receberia em troca cerca de duas centenas de comentários “a quente”.

E mais: teve mais de 3700 visualizações diretas, isto é, leitores, que propositadamente carregaram num ou mais mais links dos postes da série… O que quer dizer que o seu livro já foi lido, “on line”, por algumas centenas de pessoas…

Interessante este “making of” do livro… O que seguramente ajudou a melhorar a sua versão final.

Cabe-me enquanto fundador e editor do nosso blogue, saudar e engradecer este livro de memórias que vem enriquecer o património literário e documental da Tabanca Grande, que é uma tertúlia virtual centrada na experiência de uma guerra, a guerra colonial (1961/74), e em particular a da Guiné, sendo porventura a maior tertúlia do género, em português, quer pelo número de visualizações do blogue (cerca de 13,5 milhões, desde 2004, fora a página do Facebook) quer pelo número dos seus membros registados (= 862) quer ainda pelo volume de memórias partilhadas (mais de 23300 postes). Memórias mas também afetos. E este livro do Joaquim é sobretudo um livro de afetos.

O Joaquim Costa é mais um talento literário que o nosso blogue veio revelar, com a particularidade de, sendo um bom minhoto,  natural de Vila Nova de Famalicão, a terra adotiva do autor de “A Brasileira de Prazins”, a sua prosa ter também belos nacos do português camiliano, a começar pela ironia, o pícaro, o humor e até o sarcasmo, tão bem patentes na reconstituição de algumas das suas memórias de infância e na evocação da sua família, bem como na descrição de cenas da vida castrense (a tropa e depois a guerra), cenas por que passámos muitos de nós, antigos combatentes aqui presentes, e que vivemos tão intensamente, das Caldas da Rainha até Bissau.

Perpassa pelo livro um subtil mas corrosivo humor de caserna que funcionou, na Guiné, durante a guerra colonial, em todo o lado, e sobretudo nos piores momentos... Ajudou muitos de nós a sobreviver ao Suplício de Sísifo que foi aquela estúpida, penosa, absurda e inútil guerra que nos obrigaram a manter, durante anos, sem solução, militar e sobretudo política, à vista… Até que se chega à tarde do dia 26 de Abril de 1974… 

Os rumores de um golpe de Estado em Lisboa, já transmitidos pela “Maria Turra” (a voz mais famosa, e quase familiar, da Rádio Libertação, do PAIGC, que emitia a partir de Conacri), são confirmados por um camarada. Escreveu o Joaquim:

“ (…) Na tarde do dia 26, vinha eu com a minha cerveja e o meu Norte Desportivo na mão, quando o Martins se vira para mim e me diz, de forma perentória: Costa!, há mesmo ‘merda’ em Lisboa” (…) (pág. 154 )….

Com tanta excitação, o autor só se viria a lembrar do seu 24º aniversário (que foi a 27 de abril de 1974), uns dias depois, já nos princípios de maio…

O aquartelamento do Cumbijã (antiga tabanca abandonada nos primórdios da guerra), como muitos outros pela Guiné fora, do Cachil à Ponta do Inglês, de Gandembel a Mansambo, foi construído, a pá e a pica, a enxada e a motosserra, sem ajuda de máquinas e homens da Engenharia Militar… num esforço hercúleo, sobre-humano, um verdadeira epopeia que noutro país qualquer daria uma fabuloso filme...

Não é gratuito evocar-se aqui os trabalhos de Sísifo. Recorde-se que, segundo a mitologia grega, os deuses condenaram Sísifo a fazer rolar uma grande pedra de mármore, com suas próprias mãos,  até ao alto de uma montanha.... Uma vez alcançado o cume, a pedra rolava novamente pela encosta abaixo até ao ponto de partida, movida por uma misteriosa força irresistível. Tratava-se de uma condenação até à... eternidade!...

Por essa razão se diz que todas as tarefas que envolvem esforços gratuitos, inúteis e absurdos são trabalhos de Sísifo... A estrada (asfaltada) de Mampatá a Nhacobá, e que vinha de Buba e devia chegar a Mejo, fundamental para neutralizar a “corredor da morte” ou “corredor de Guileje” (também chamado, pelo outro lado, “caminho do povo”, “caminho da liberdade”) não chegou a ser concluída, com o fim da guerra… Foi um verdadeiro trabalho de Sísifo, tal com a ocupação de Cumbijã, Colibuía e Nhacobá….

O Joaquim escreveu um livro com uma parte da sua história de vida, dos seus verdes anos, história que é também a de muitos de nós, e fez questão dedicá-lo aos que o amam e o estimam. A sua narrativa tem momentos portentosos sobre a epopeia de Cumbijã e de Nhacobá, os seus bravos e as suas vítimas, os seus momentos mais dramáticos e trágicos.

Um dia, quando fizermos uma antologia dos nossos melhores textos, o seu testemunho, na 1ª pessoa, sobre a Op Balanço Final, a conquista e a ocupação de Nhacobá (17-23 maio 1973), por exemplo, terá que lá figurar, com toda a justiça.

A historiografia militar, a começar pelos livros da CECA – Comissão para o Estudo das Campanhas de África, pode, em meia dúzia de linhas secas, telegráficas, resumir aquela “guerra de baixa intensidade”, num contexto, altamente desfavorável a Portugal e às nossas forças armadas, contexto diplomático e geopolítico marcado pela guerra fria e o fim dos impérios, mas também pela crise económica de 1973 e a crescente contestação do Estado Novo, com o fim expectável do marcelismo. Não foi, em todo o uma guerra para “meninos de coro”, como todas as guerras...

Faltará sempre, à escrita do historiador, o nosso "sangue, suor e lágrimas", que no nosso tempo, na Guiné, não foi uma figura de retórica. E é bom que os nossos filhos e netos saibam, por fim, que ali não fizemos só a guerra mas também a paz. E que nenhum de nós escapou ao terrível dilema de matar ou morrer, incluindo os problemas de consciência que a violência armada impõe a qualquer ser humano.

Também, este livro tem belos apontamentos de grande lirismo em que o autor consegue abstrair-se da guerra e dos seus horrores ( as minas, as emboscadas, as flagelações, os ataques, o sofrimento físico e psíquico…), e ver beleza naquela terra e naquela gente, a começar pelas as lavadeiras (obrigatório ler e reler o cap. 11, “as nossas lavadeiras… e o furriel Pequenina, pp. 75 e seguintes).

Sem poder esquecer as intermináveis noites em que ficou emboscado na frente dos trabalhos de construção da estrada para Nhacobá, o Joaquim soube tirar algum prazer e encantamento da fruição da natureza. Vou citá-lo (vd. pág. 83):

  • “as noites escuras com o fresco do cacimbo limpando o suor dos 40º do dia, deixando-nos inebriar pelos sons da floresta húmida, ouvido os macacos ao longe e o ‘piar’ de uma ou outra ave;
  • “as noites de trovoada contínua, que nem nas festa da Sra. da Agonia, fazendo-se dia com as descargas elétricas violentas, de uma beleza indescritível;
  • “as noites de luar, lindas e quase românticas…, sublimando os pensamentos nas nossas namoradas ou madrinhas de guerra;
  • “as noites das primeiras chuvas que nos limpavam o corpo e a alma com o agradável cheiro a terra africana”…

Apesar de se sentirem permanentemente vigiados pelo inimigo, aos “Tigres do Cumbijã” ninguém lhes podia roubar aquele momento inefável da manhã: “ de manhãzinha, com banho tomado e roupa lavada e já seca, não disfarçávamos a alegria, ao vermos chegar a coluna com os dois grupos de combate que nos vinham substituir” (pág. 83).

Estamos gratos ao Joaquim por dar voz a muitos combatentes, não só do nosso lado, mas até do outro lado, que nunca tiveram nem terão oportunidade de escrever, e muito menos de publicar, sob chancela editorial, as suas “vivências” e “memórias doridas” (e algumas até boas) daquela guerra e daquela terra (que, estranhamente, acabou por ficar no nosso coração, contagiando até os nossos filhos, o Tiago Costa, o João Graça, e tantos outros).

E o problema é que muitas memórias vão morrer connosco...E por cada um de nós que morre, é um livro que não se escreveu…

Não quero acabar esta nota de apresentação sem referir os sucessivos “murros no estômago” que, metaforicamente falando, o autor evoca no seu livro, a começar pelo inevitável batismo de fogo, as primeiras minas e emboscadas, o primeiro morto...

Na realidade, aqueles de nós (e fomos muitos) que passámos por essa dura, trágica, traumática experiência, sabe dar valor às palavras do Joaquim onde há raiva e impotência mas também coragem e dignidade, quando ele fala do primeiro camarada que morre ao seu lado.

O batismo de fogo era sempre uma situação-limite... E cedo aprendíamos que um homem não pode uma guerra sem odiar ...Depois, era como tudo: a guerra (e a morte) banalizava-se, tornava-se uma certa rotina... Mas os "embrulhanços" eram sempre temidos, de um lado e do outro... As balas e os estilhaços das granada ou o sopro das minas (antipessoais e anticarro) não tinham código postal... Era a roleta russa...

Diga-se, por fim, que não é um livro panfletário. Mas, mesmo sem querer fazer juízos de valor sobre a legitimidade, a condução e o desfecho daquela guerra, o autor acaba por nos mostrar, com fino mas cáustico humor, que às vezes acontecia sentirmo-nos como um bando de cegos, comandados por outros cegos, à beira de um precipício.

Felizmente o Joaquim voltou, “são e salvo”, para escrever este livro, o seu “terceiro filho”, e dar mais valor e força à liberdade, à justiça, à paz e à solidariedade.

Joaquim, hoje é um dia importante na tua vida. E seguramente tens motivos de orgulho ao apresentar, oficialmente, na Tabanca dos Melros, o teu livro (que, diga-se de passagem merece uma segunda edição, revista, aumentada e melhorada).

Luís Graça, sociólogo, editor do Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné. (**)
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Notas do editor:


(**) Último poste da série > 4 de junho de 2022> Guiné 61/74 - P23325: Agenda cultural (813): Afroencontro: fusão euroafricana de sonoridades... Camones CineBar, Bairro da Graça, Lisboa, sábado, 4 de junho, 21h00: Mamadu Baio, Avito Nanque, Sanassi de Gongoma e João Graça

sábado, 11 de junho de 2022

Guiné 61/74 - P23343: Os nossos seres, saberes e lazeres (507): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (54): Os jardins esplendentes do Palácio Nacional de Queluz - 3 (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 17 de Março de 2022:

Queridos amigos,
Se é facto que o Palácio Nacional de Queluz tem em si muito para ver, lá fora estão os jardins, elaborados para cenário de festas da Família Real, qualquer coisa como 20 hectares da antiga Quinta Nacional de Queluz, circundando o palácio fica-nos o assombro de constatar como estes jardins formam unidade com o edifício, não foi por acaso que as fachadas palatinas se prolongam em jardins de aparato, e assim podemos ir ao antigo jardim botânico, passar pelo jogo da pela, deambular pela Cascata Grande, o Lago das Conchas, o Jardim de Neptuno, o Lago da Nereida, passar pelo Pórtico da Fama, descer ao Canal dos Azulejos, daqui contemplar as Escadaria dos Leões e o Pavilhão Robillion, enfim, então pode dizer-se que a visita ficou quase completa, e diz-se quase porque ainda não se visitou o palácio, fica feita a promessa que em breve acontecerá.

Um abraço do
Mário



Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (54):
Os jardins esplendentes do Palácio Nacional de Queluz – 3


Mário Beja Santos

Não há visita ao Palácio Nacional de Queluz que não culmine por passear pelos belos jardins, aliás ao percorrermos a Sala do Trono, a Sala de Música ou a Sala dos Embaixadores, é inevitável não darmos uma espiada sobre o Jardim de Malta, as estátuas de John Cheere, a magnificência dos jardins superiores, descer ao Canal de Azulejos, visitar a Alameda do Lago das Medalhas, passar pelo Pórtico da Fama e a Cascata Grande. É, o que de certo modo, e com muita satisfação, se pretende mostrar ao leitor.
Pan com a sua flauta e o seu especial sorriso malicioso
Quem percorre a região das estufas, todas elas recuperadas, contempla uma bela azulejaria onde se acolhem canteiros, o que há de mais surpreendente é que o motivo é sempre igual e nunca cansa, tal a festividade do colorido.
A estufa de ananases

Já se observou que esta Quinta Real de Queluz tinha três tipos de espaços verdes: a zona agrícola, o parque e os jardins superiores, funcionando como prolongamento dos salões do palácio. Depois do Jardim da Malta, temos os Jardim Pênsil ou Neptuno. Descendo, à esquerda e ao fundo podemos ir visitar as estufas e a Cascata Grande. Por ora queremos mostrar o Canal de Azulejos, uma das obras mais notáveis do Palácio Nacional de Queluz. Foi construído por volta de 1756, tinha por objetivo canalizar o curso da ribeira do Jamor, mas foi preciso recorrer à abertura de minas e à construção de aquedutos e reservatórios. Montou-se um sistema de comportas de ferro, a água era represada, durante o verão, de modo a encher todo o canal formando um extenso lado artificial que permitia aos membros da Família Real aqui andarem de barco. Interiormente o canal era revestido de azulejos azuis e brancos. Como iremos ver, os temas tratados são diversos: torres, castelos, galeões e bergantins, portos de mar, paisagens. No exterior, as paredes estão recobertas de painéis azuis solares, policromados, basta ver a imagem seguinte, os temas decorativos agora são diferentes: cenas galantes, palacianas e de caça.
Exemplos do revestimento azulejar exterior do Canal de Azulejos
Exemplos do revestimento interior do Canal de Azulejos. No início do século XX, o rei D. Carlos ou a rainha D. Amélia incumbiram dois artífices de restaurar os azulejos do canal. Por essa altura foram colocados ao longo do canal vasos de faiança azul e branca e que são réplicas dos que se encontram no Jardim Pênsil. Ao longo do percurso da ribeira do Jamor foram plantadas amoreiras. O aproveitamento lúdico do canal e dos espaços envolventes levou a que existisse na parte central do canal uma casa de música.
Antes de percorrer a Alameda do Lago das Medalhas temos este elegantíssimo lago e a estátua de Caim matando Abel
Segundo se crê, esta alameda constituiria o eixo central a partir do qual teriam sido estruturados os jardins da casa de campo dos marqueses de Castelo Rodrigo, herdeiros de Cristóvão de Moura, o primeiro proprietário da Quinta de Queluz. É a alameda mais extensa destes jardins, tendo o seu arranque no largo onde se encontra o conjunto escultórico, que vimos na imagem anterior, da autoria de John Cheere, Caim matando Abel. É um percurso que termina no Tanque do Curro, antes passasse pelo Lagos das Medalhas e pela Fonte de Neptuno
Andando pelo Canal dos Azulejos temos em frente a Escadaria dos Leões e o Pavilhão Robillion. Por aqui se fazia o acesso principal ao Palácio de Queluz, sendo os visitantes conduzidos depois à Sala dos Embaixadores. Não deixa de surpreender a forte componente cenográfica, é uma escadaria de três lances divergentes, forma como Robillion encontrou solução para resolver o problema do desnível de cotas entre o palácio e a parte baixa do jardim, atenda-se à grande elegância da escadaria, à decoração com vasos de flores e estátuas de pedra.

Assim se põe termo a este percurso um tanto à la minuta pelos jardins, não se visitaram as hortas nem se contemplou a Cascata Grande nem se entrou no Pavilhão de D. Maria, hoje residência dos chefes de Estado estrangeiros em visita oficial a Portugal (foi no passado a residência de verão de Marcello Caetano). Fica para a próxima, ainda não se visitou, com o desvelo necessário, o interior do palácio, é um itinerário que já está em agenda.

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Nota do editor

Último poste da serie de 4 DE JUNHO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23324: Os nossos seres, saberes e lazeres (506): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (53): Os jardins esplendentes do Palácio Nacional de Queluz - 2 (Mário Beja Santos)