sexta-feira, 2 de setembro de 2022

Guiné 61/74 - P23578: Notas de leitura (1487): "Sinais de Vida, cartas da guerra 1961-1974", por Joana Pontes; Tinta-da-China, 2020 (1) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 29 de Janeiro de 2020:

Queridos amigos,
Temos aqui um olhar singular sobre a correspondência trocada entre militares e família e amigos, uma sala de conversa onde cabem namorados, pais e filhos, amigos e camaradas de armas e muitas madrinhas de guerra. Joana Pontes disseca admiravelmente as mentalidades, o papel do homem ainda cheio de autoridade, o mundo rural a caminho do abandono, os sinais de desenvolvimento, a muita gente que parte para o estrangeiro à procura de melhores condições de vida. E ver-se-á à frente, quando a abordagem for o modo de viver a guerra, que até se ultrapassam os limites impostos pela censura, há quem se vanglorie das suas façanhas, quem chore os amigos mortos e feridos. Enfim, um olhar sobre documentos, necessariamente de valor limitado, mas que podem contribuir para entender como estes jovens mudaram lá fora numa sociedade que mudava cá dentro.

Um abraço do
Mário



A correspondência da guerra colonial: uma amostra de mudanças em Portugal (1)

Mário Beja Santos

Trata-se de um belíssimo trabalho, de uma fecunda investigação, é uma das obras mais originais que até hoje se produziu em torno dos olhares sobre a guerra colonial, documento a partir de agora indispensável: "Sinais de Vida, cartas da guerra 1961-1974", por Joana Pontes, Tinta-da-China, 2020. 

Joana Pontes é doutora em História na especialidade de Impérios, Colonialismo e Pós-Colonialismo, tem currículo firmado no jornalismo televisivo e foi membro da Direção da Liga dos Amigos do Arquivo Histórico-Militar. Colaboradora no Projeto Recolha, destinado a evitar o desaparecimento da memória escrita da guerra, acompanhou de perto a chegada de um arquivo fecundíssimo, pois foram contabilizadas cerca de 4400 cartas e aerogramas, aproximadamente 11300 páginas, operação que decorreu entre 2003 e 2010. 

Recordo que ainda hoje não é difícil encontrar aerogramas e cartas deste período na Feira da Ladra, o artista Manuel Botelho adquiriu na Feira da Ladra um acervo da correspondência de um casal, ele fazia a sua comissão no Bachil, a 25 km de Cacheu, deu origem a uma instalação. Uma correspondência espantosa, há os entusiasmos iniciais, os projetos que ficaram adiados dois anos, em dado momento há sinais de desalento, parágrafos onde se manifesta o acabrunhamento, a dúvida, o fogo lento da solidão, por vezes pavorosa. Quantos casais não partilharam esta esfera sentimental?

No prefácio da obra, Aniceto Afonso dá-nos uma explicação comportamental dos ex-combatentes:

“A relação dos ex-combatentes com a sua memória da guerra teve um percurso complexo. Começou timidamente após o 25 de Abril, estagnou por vários anos e acabou por florescer em torno da passagem do século. A partir daí, multiplicaram-se os fóruns, os livros de memórias (ficcionados ou não), as entrevistas, as publicações individuais ou mesmo coletivas. A abundância de depoimentos, de regressos escritos ou falados, de despreocupadas ou penosas intervenções nas redes sociais, onde tantos têm tido oportunidade de contar a sua história, toda esta corrente de informação, de lembranças, de opiniões, vêm colocando, como sempre colocaria, um sério problema aos estudiosos que se dispõem a analisar todo este imenso material, que todos os dias se acrescenta”

E o investigador refere igualmente o interesse manifestado na esfera universitária pelo universo da guerra colonial, nas suas múltiplas vertentes.

Joana Pontes estrutura o seu trabalho em dois enormes módulos: o primeiro intitula-se “As palavras escritas no papel e na alma”, com o subcapítulo “A vida por mensagem”; o segundo “Viver a guerra”.

Confesso que valorizo mais este primeiro módulo, a investigadora é rigorosa nos enquadramentos de um Portugal que caminha para o modelo industrializado e abandona a agricultura. Ela não tem ilusões e escreve:

“A visão de conjunto dada por estas narrativas individuais é necessariamente uma visão incompleta e imperfeita da guerra, mas permite encontrar respostas a questões que são políticas no sentido lato e que se colocam relativamente a este acontecimento: o que é que aconteceu, que importância e consequências teve?”

Elenca os intervenientes, na sua maioria de origem rural, também a maioria pertenceu ao Exército, e apresenta microbiografias dos intervenientes. O aerograma é a principal ferramenta de comunicação; aliás, escasseia o papel, os envelopes e os selos no mato, as chamadas telefónicas eram dispendiosas, qualquer telefonema era marcado com antecedência. Há correspondência que leva desenhos e até poemas. Quando se mandam cartas, escolhe-se geralmente papel fino. Luís, destacado no extremo norte de Moçambique, escreve à mulher o espaço em que está confinado e a importância do correio para os militares:

“Existe em Nangade um retângulo de terra batida onde aterram aviões. Às sextas e terças-feiras sentimo-nos como que impulsionados para junto desse pedaço de terra lisa e barrenta. Todos, iguais, soldados e chefes, são nivelados pela mesma ansiedade e palpitar de emoção. E poucos são aqueles que têm o privilégio de ainda dentro do edifício onde se abrem os sacos de correio receberem o pedaço de papel que lhes revigora a alma e lhes faz sentir menos penoso o calvário. Mas são também poucos aqueles que têm que esconder duas lágrimas quando este privilégio os coloca na situação de simples espetadores…”

E desfilam as emoções, o momento da distribuição do correio, o desalento e até algum desespero de quem não recebe notícias, é o amor de mãe, são as notícias da mulher ou da namorada, é o perceber que a milhares de quilómetros de distância existem raízes e alguém que informa o que por ali se passa, até os falecimentos de outros jovens. É bom que alguém nos escreva lá nosso fim do mundo, aquela frase cala fundo: quando recebo carta tua é uma alegria tão grande que tenho e ajuda-me a viver. Quem está na guerra procura explicar o terreno, o tempo, as tarefas, faz perguntas, vem completamente à tona o quadro de mentalidades: o meter a cunha, o querer a mulher recatada, os códigos cifrados em matéria sexual, a conversa variegada com as madrinhas de guerra. 

As fotografias são da maior importância, o ausente é classificado como ícone: “A tua fotografia está em todos os cantos da casa”. A ânsia por novidades cabe nesta frase, vinda da guerra: “Se souberes novidades manda dizer que eu gosto de saber”. Há famílias em extrema dificuldade financeira, há as fugas a salto para França e outras paragens, em dado momento vão pululando informações sobre o dinheiro da França, o turismo no Algarve, os apoios sociais, o subsídio de Natal. A imagem do homem que manda aparece com muita nitidez, quem está na guerra pede recato, há mesmo saudades de autoridade do macho: tu chegavas os sábados vinhas ainda me batias mas eu tenho tudo guardado quanto passei contigo.

A religião pesa e muito:

“Encontramos inúmeras referências às figuras de devoção a quem se fazem estas promessas: São Lázaro, São Judas Tadeu, São Roque, Anjos da Guarda, Senhora da Hora, Santa Maria Adelaide, Santa Maria Madalena, Santa Sãozinha, Nossa Senhora da Paz, Nossa Senhora da Saúde, Nossa Senhora dos Aflitos, que acode a quem vai ter filhos, São José, São Veríssimo, São Sebastião, advogado dos soldados, Santo Amaro, advogado dos ossos e Santa Rita, advogada das coisas impossíveis”

O culto mariano é uma constante nesta correspondência. A Igreja e o Movimento Nacional Feminino não esqueciam a necessidade de manter o moral em alta e levar os militares a um comprometimento maior com o esforço de guerra, patriótico e cristão.

Mas ainda há mais algumas coisas a dizer sobre a experiência da distância de casa, o que chega à guerra e o que da guerra parte para a família e para os amigos.
Exposição/instalação de Manuel Botelho intitulada Cartas de Amor e Saudade, Centro Cultural de Cascais, 2011

(continua)

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Nota do editor

Último poste da série de 1 DE SETEMBRO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23577: Notas de leitura (1486): "Panteras à solta", de Manuel Andrezo (pseudónimo literário do ten gen ref Aurélio Manuel Trindade): o diário de bordo do último comandante da 4ª CCAÇ e primeiro comandante da CCAÇ 6 (Bedanda, 1965/67): aventuras e desventuras do cap Cristo (Luís Graça) - Parte VI: "Cercados de guerrilheiros por todos os lados", diz o alf mil Ribeiro, no "briefing" da praxe...

quinta-feira, 1 de setembro de 2022

Guiné 61/74 - P23577: Notas de leitura (1486): "Panteras à solta", de Manuel Andrezo (pseudónimo literário do ten gen ref Aurélio Manuel Trindade): o diário de bordo do último comandante da 4ª CCAÇ e primeiro comandante da CCAÇ 6 (Bedanda, 1965/67): aventuras e desventuras do cap Cristo (Luís Graça) - Parte VI: "Cercados de guerrilheiros por todos os lados", diz o alf mil Ribeiro, no "briefing" da praxe...

 

Croquis, basedo na carta de Bedanda (escala 1/50 mil), abrangendo os subsectores de Bedanda e Cufar... O rio principal era o Cumbijã, de que o rio Ungarinol era afluente (aqui se situava  o porto interior de Bedanda). Em 1965/67, as "barracas" do PAIGC e outros pontos logísticos (com população) vão assinaldos a vermelho... A 4ª CCAÇ / CCAÇ 6, com sede em Bedanda, ao tempo do cap inf Aurélio Manuel Trindade, "partiu mantenhas" com a gente do mato que vivia por aqui... Em Cufar, estava  a CCAÇ 763 (1965/66), do nosso amigo e camarada Mário Fitas, ex-fur mil oo esp. E mais abaixo, a sede de batalhão, em Catió, sector S3: primeiro o BCAÇ 619 (jan 1964 / jan 1966),e  depois o BCAÇ 1858 (jan 1966 / mai 1967).

Infografia: Aurélio Manuel Trindade / Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2022)










Anúncios de casas comerciais que, em meados dos anos 50, operavam no sul da Guiné, na região de Tombali, na altura o celeiro da província... Fonte:Turismo - Revista de Arte, Paisagem e Costumes Portugueses, jan/fev 1956, ano XVIII, 2ª série, nº 2. (Recolha do nosso camarada Mário Vasconcelos, 1945-2017)



1. Continuação da leitura do livro "Panteras à solta: No sul da Guiné uma companhia de tropas nativas defende a soberania de Portugal", de Manuel Andrezo, edição de autor, s/l, s/d [c. 2020] , 445 pp. , il. [ Manuel Andrezo é o pseudónimo literário do ten gen ref Aurélio Manuel Trindade, ex-cap inf, 4ª CCAÇ / CCAÇ 6, Bedanda, jul 1965/jul 67, exemplar gentilmente facultado, a título de empréstimo, pelo cor inf ref Mário Arada Pinheiro, com dedicatória autografada do Aurélio Trindade, datada de 13/12/2020] (*).


Mas a patir de agora, tomamos como referência a edição de autor, de 2010 , de 399 pp., il.,, disponível em formato pdf,  na Biblioteca Digital do Exército (Panteras_a_Solta (PDF, 6 MBlink para descarregar o ficheiro em pdf, cortesia do autor e da Biblioteca Digital do Exército).

O cap Cristo ("alter ego do cmdt da 4ª CCAÇ / CCAÇ 6, no período que vai de meados de 1965 a meados de 1967)  não nos explica  por que razão Bedanda  estava em decadência, e isolada do resto do território, com a população dependente do exterior para se alimentar, quando uma dezena de anos antes fazia parte, com Catió e Cacine, do grande celeiro da província (**)...

A Guiné que exportava arroz, teve que começar a importá-lo. A explicação era, naturalmente, a guerra, com a consequente destruição do tecido económico e social do território. Na aregião de Tombali, no sul, a população balanta caiu sob o controlo do PAIGC e os fulas refugiaram-se em Bedanda, A admitraçao civil era totamente inoperante. Como dizia o seu responsável, Fernandes, cabo-verdiano, ao capitão Cristo, no dia em este o foi cumprimentar: (...) "Sou o administrador mas quem manda é a tropa, porque eu estou limitado a ir do posto para casa e de casa para o posto. É uma dura rotina." (... )pág. 19),

Leia-se o, entretanto,  o que o autor escreveu no início do capítulo intitulado "Reforma Agrária" (pp. 76-82):

(...) Em tempos, um outro capitão tentou levar os nativos da povoação a cultivar as ricas bolanhas de Bedanda. Era uma pena ver estas terras que antes da guerra roduziam muito arroz quando trabalhadas por balantas, agora cheias de mato. A população de Bedanda é hoje predominantemente fula, quando a região foi sempre, ao longo dos anos, chão balanta. O fula é fundamentalmente negociante e não gosta muito de lavrar a terra. No entanto, todos nós militares víamos que a actual situação não se podia manter. A população não produzia nem para comer. Vivia, por um lado, do trabalho de guia e da milícia, isto os homens, e por outro, de relações com os militares, as mulheres.(...) 

Veja-se também este diálogo entre o capitão e o régulo Samba Baldé (pág. 77/78)  

(...) "─ As pessoas não têm o que comer, passam muita fome e eu não quero que vivam pior que a gente do mato. Samba, tu és o homem grande e eu preciso de saber o que devemos fazer.
─ Nosso capitão, não há trabalho em Bedanda, apenas na milícia. Mulher é lavadeira da tropa e mais nada. O dinheiro é pouco, não dá para comprar arroz, peixe e óleo. Nosso capitão tem razão. A gente passa fome.
─ Samba, eu não compreendo a tua passividade. É preciso arranjar maneira de toda a população ter comida. Está na altura de preparar a bolanha para semear o arroz. emos muito boa bolanha em Bedanda. Toda a gente vai cultivar arroz. Tu divides a bolanha por todos e verás que ainda sobra bolanha.
─ Nosso capitão não pode ser, fula não cultiva arroz. Fula é comerciante e no seu chão faz arroz de sequeiro, não de bolanha. Fula da população não sabe cultivar arroz.
─ Samba, ouve bem o que eu te digo. Eu sou filho de pessoas que cultivam a terra lá no puto. Eu cultivei a terra. Já aprendi com o senhor Aniceto a cultivar arroz e já andei pela bolanha a ver as terras. Há terras livres para toda a gente. E vamos cultivar rroz porque eu não quero que as pessoas passem fome. Quero que cultivem arroz para comer e para vender. A bem ou a mal vamos cultivar arroz. (...)

O sucesso da sua  "reforma agrária" deve ter sido motivo de orgulho para o cap inf Aurélio Manuel Trindade. Naturalmente, não temos  acesso a outras fontes para comprovar a eficácia e a eficiência das medidas então tomadas pelo capitão. Confiamos no seu testemunho (Ou nas suas memórias passadas ao papel meio século depois).

Para o novo comandante da 4ª CCAÇ, Bedanda é uma ilha, fisica e metaforicamente falando

(...) "─ Ilha,  não digo, ─ diz o Dino [antigo tropa, agora pequeno conerciante]   ─ pois Bedanda é mais uma península cercada de água por todos os lados menos por um que é Guilleje.
─ Sabe Dino, ─ esclarece Cristo ─ eu falava de ilha em sentido figurado, eu não queria dizer cercada de água mas de guerrilheiros, que estão por todo o lado, e Bedanda é de facto uma ilha nesse sentido". (...)  (pág, 22).

E a verdade é que o croquis que publicamos acima, não enganava... Tirando Bedanda e Cufar, a guerrilha parecia estar por todo o lado... Era o "reino do ino" (pp. 354-365): Comumba, Bobedê/Melinde, Cabolol,Incala, Salancaur (já no corredor de Guile), Chugué, Cabedú, Nhai,Buchenon, etc., são topónimos de guerra... E sobre todos eles há histórias que ficaram para sempre gravadas na memória dos bravos de Bedanda e, naturalmente, do capitão Cristo que as viveu e escreveu, com paixão, coragem, inteligência e desassombro...

(...) "Em zonas mais afastadas como Salancaur, Nhai, Caboxanque e Cabolol, só duas companhias dão garantia de sucesso da operação. " (...) (pág. 101). Por sua vez, "Bobedê era considerada uma área onde só se ia com três pelotões" (pág. 107). E estamos a falar de uma companhia que era não de intervemnção mas de quadrícula, da guarnição normal, incialmente constitu+ida por "matrapilhas" (com a velha farda do caqui amarelo, esfarrapada, equipada com a velha Mauser, bebendo o café por latas de salsichas, sem roupa de cama, nem mosquiteiros)...Mas que, quando vai para o mato com o cap Critso,  não vai me "traje de passeio:

(...) "O Antunes prepara fogos de artilharia, a executar à ordem, sobre Samenhite. Levamos rações de combate para um dia, 200 cartuchos por homem, 2 granadas ofensivas por militar, 4 granadas de morteiro 60 por cada morteiro e 3 de lança-granadas por pelotão. Não se esqueçam de verificar se os homens levam água. A água que vamos encontrar é salgada" (...= (pp- 107/108)-

2. Quantos militares estavam aquarelados então em Bedanda, incluindo um pelotão de milícias (40 homens), e eçotão de artilharia, com duas bocas de 8.8  ? 

(...) A companhia tem cerca de duzentos e cinquenta homens na sua maioria negros. Quando na companhia houve uma tentativa de revolta, o Comando do Batalhão fez deslocar para Bedanda duas secções de brancos de outras duas companhias do batalhão. Essas secções ainda permanecem em Bedanda. Deve haver cerca de quarenta brancos, entre oficiais, sargentos e praças, para duzentos e dez negros. No sul da Guiné, em que a maior parte do território está controlado pelos guerrilheiros, existe uma companhia de nativos que soma êxitos sobre êxitos nas operações contra eles." (...)  (pág. 103). 


Embora extenso (pp. 26/27), vale a pena repoduzir a seguir o "briefing",  feito a sério e a brincar (também fazia parte da "praxe" aos "maçaricos", como então se dizia),  ao capitão Cristo, pelo  alf mil Ribeiro, o mais velho e o melhor operacional dos oficais milicianos da 4ª CCAÇ. (Vd. foto à esquerda, fonte: "Panetras à Solta", ed. autor, 2010, pág. 395; descobrimos que se trata de José Augusto Nogueira Ribeiro, natural de Fafe, 1940 - 2017, cor inf ref, condecorado com a "Torre e Espada" por feitos nos TO da Guiné Moçambique, vd. aqui no portal UTW . Ultramar Terra Web, Dos Veteranos da Guerra do Ultramar.)

(...) "─ Meu capitão, estamos na cantina, no ponto mais alto da Companhia. À nossa frente temos um rio navegável que separa, a norte, a área controlada pelos guerrilheiros, é o rio Ungauriuol. Este rio nasce a leste e corre para oeste, indo desaguar no rio Cumbijã que contorna a área da Companhia a oeste. A norte do Ungarinol, começando junto à sua foz, temos uma mata muito densa, mais ou menos paralela ao rio e que serve de esconderijo a vários acampamentos de guerrilheiros de efectivos variáveis mas com capacidade para se apoiarem uns aos outros quando atacados. 

Aoeste e a norte do rio Ungarinol, na mata referida, temos primeiro Incala, um dos pontos fortes dos guerrilheiros donde controlam a navegação não só do rio Cumbijã mas também do Ungarinol. A sudoeste de Incala o rio faz uma curva muito acentuada que é conhecida como a curva da morte. A última vez que a tropa tentou trazer um barco até ao porto interior de Bedanda, o barco foi fortemente atacado nesse local tendo morrido ou ficado feridos vários militares.  partir desse dia a Marinha recusou se a navegar no rio Ungarinol por falta de segurança. 

Desviando a nossa vista mais para leste encontramos primeiro Contumbum e depois Samenhite. Sabe-se que há um acampamento de guerrilha entre estas duas localidades que nunca conseguimos referenciar ou localizar em patrulhas pela zona. A seguir temos Bobedê, um dos pontos fortes dos guerrilheiros para evitar a passagem do rio Ungauriuol pelas nossas tropas. Já ali demos e levámos muita porrada.

 Mais para norte e na outra extremidade da mata fica Nhai e depois Salancaur, esta já no conhecido corredor de Guileje por onde passam os reabastecimentos dos guerrilheiros provenientes da Guiné-Conacri. Salancaur é mais um dos pontos fortes e mais ainda por ser um ponto de passagem, de concentração e descanso antes das colunas aí se dividirem em duas, uma seguindo para sul, para a mata do Cantanhez, onde está o Nino, o comandante guerrilheiro de todo o sul da Guiné, e a outra, atravessando o rio Cumbijã, vai com destino à base de Cansalá que fica para os lados do nosso Comando do Batalhão sediado em Catió

De novo para leste encontramos uma densa mata, já dentro dos limites do Cantanhez, que
é atravessada pela estrada que, vinda de Salancaur, segue depois até Cabedú, a sul dos
limites do Cantanhez, onde está estacionada uma companhia do nosso Batalhão. Não
há ligação entre a nossa Companhia e a de Cabedú. É uma zona completamente dominada pelos guerrilheiros. 

Partindo daqui para leste para alcançar Bedanda, encontramos outra estrada que se embrenha na mata. Esta estrada conduz até à fronteira da Guiné-Conacri, encontra-se cheia de abatizes5, de minas e de armadilhas,  e a primeira tropa que se encontra nessa direcção é um pelotão estacionado no Mejo, já pertencente à companhia de Guileje. Houve em tempos uma ligação terrestre entre Bedanda e Mejo, mas actualmente não conseguimos sequer chegar ao cruzamento para Salancaur. Sempre que tentámos chegar ao cruzamento fomos emboscados e retirámos com mortos e feridos. É uma zona dos diabos que os guerrilheiros querem controlar a todo o custo para garantirem o reabastecimento do Cantanhez. 

Voltando-nos agora para sul, vemos outra mata que, começando nas imediações de Bedanda, termina no rio Cafunebom, afluente do Cumbijã. O Cafunebom pode ser atravessado a vau. Antes de alcançarmos esse o rio, encontramos duas povoações, Cura e Braia. Estão na orla da mata, uma na margem do Cumbijã, a outra voltada para as tabancas de Flanque Injã e Caboxanque. São zonas onde se pode ir com um grupo de combate com muito cuidado pois é possível ter encontros com patrulhas dos guerrilheiros. Cura e Braia estão destruídas e desabitadas. 

Ainda mais a sul, já para lá do rio Bixanque, fica o coração do Cantanhez onde está o Nino, ocupando fortemente vários pontos da mata em que os mais conhecidos são Cadique e Cafal. A sul do Bixanque é já zona de acção da companhia de Cabedú. Para oeste, a nossa zona de acção termina no Cumbijã, via fluvial que é preciso manter a todo o custo pois é por ela que, uma vez por mês, nos chegam os reabastecimentos. É neste rio que fica o porto exterior de Bedanda. 

Este porto, onde já estivemos no outro dia quando da primeira saída do meu capitão, fica a
4 kms de Bedanda, em frente a Cobumba que já pertence à zona da acção da companhia de Cufar. Ponto muito forte dos guerrilheiros que dele precisam para garantirem a passagem e o reabastecimento dos seus acampamentos de Cabolol.

Cobumba é atravessada pela estrada que a cerca de 8 kms cruza com a que vem de Catió. Esta estrada segue depois para Cufar onde está mais uma companhia do nosso
batalhão. Seguindo para norte, até Empada, aí fica ainda mais outra companhia do batalhão. 

Na mata a sul de Cobumba ficam as tabancas de Cabolol e Cantumane, onde é muito difícil entrar. A norte de Cobumba fica Chugué, dominado pelos guerrilheiros, onde em tempos esteve destacado um pelotão da companhia. Uma noite, o pelotão foi atacado, arrasaram tudo e nunca mais lá conseguimos ir. Os sobreviventes do ataque retiraram para o quartel destroçados tanto física como moralmente. Aconteceu o mesmo em Salancaur onde no início existia uma secção destacada. Uma noite a secção foi atacada e só dois soldados conseguiram chegar à companhia. Dos outros elementos ainda nada se sabe, se terão sido mortos ou raptados. 

Resumindo, eu diria que estamos cercados de guerrilheiros por todos os lados e que sempre que saímos do quartel e nos afastamos mais de 4 kms, acabamos a tomar banho nas bolanhas ou nos rios e tiroteio também não nos deve faltar. Terminei a minha exposição. Espero ter sido explícito e desejo que tenha sido útil para o meu capitão poder ficar com uma ideia da área onde veio cair. Nenhuma das companhias mais próximas de Bedanda pode vir em nosso auxílio, em tempo útil se formos atacados. " (...)

Guiné 61/74 - P23576: (In)citações (217): Reflexão (Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887, Canquelifá e Bigene, 1966/68)

© ADÃO CRUZ


REFLEXÃO

adão cruz

Pela minha profissão, sempre tive na minha frente toda a espécie de pessoas, desde a mais ignorante à mais sábia. Respeito tanto os ignorantes como os sábios, os cultos e os incultos, mas não tenho o mínimo respeito pela ignorância e pela incultura. Também não sinto respeito pelo trabalho de quem quer que seja que se dedique, de uma maneira ou de outra, a cultivar a ignorância, a escamotear a verdade e a anular a razão.

Por mais que se pregue e por mais conferências que se faça, nada anula o descrédito em que caíram os donos do mundo ao pretenderem convencer-nos de que as expectativas de paz, liberdade e justiça são possíveis com as suas corrompidas doutrinas ou com as orações a Deus, as quais, pelos vistos, só são ouvidas quando saem da boca dos afortunados e não quando tomam a forma de gemidos na boca dos milhões de espezinhados que morrem às pilhas no deserto do silêncio, da fome e do sangue.

Quem não vive de luxos e excessos, quem considera a paz, a educação e a cultura uma prioridade, quem luta pela justiça social e deseja que o sol nasça para todos, quem considera o amor, a amizade e a solidariedade humana como os maiores valores da vida, quem luta contra a exploração e contra o abismo entre ricos e pobres, de forma autêntica e não através de hipócritas caridades, quem mede a liberdade dos outros pela sua própria liberdade, pode ser o que quiserem, mas nunca será um vencido.

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Nota do editor

Último poste da série de 23 DE AGOSTO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23548: (In)citações (216): Reflexão (Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887, Canquelifá e Bigene, 1966/68)

Guiné 61/74 - P23575: Parabéns a você (2096): Manuel Joaquim, ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 1419/BCAÇ 1857 (Bissorã e Mansabá, 1965/67)

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Nota do editor

Último poste da série de 27 de Agosto de 2022 > Guiné 61/74 - P23560: Parabéns a você (2095): Jaime Machado, ex-Alf Mil Cav, CMDT do Pel Rec Daimler 2046 (Bambadinca, 1968/70)

quarta-feira, 31 de agosto de 2022

Guiné 61/74 - P23574: Historiografia da presença portuguesa em África (331): Impressões da Guiné de um missionário franciscano, início da década de 1940 (4) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 15 de Novembro de 2021:

Queridos amigos,
Sabemos que o Padre António Joaquim Dias regressou muito combalido dos seus oito anos e meio de missionação na Guiné, e depois lançou-se ao trabalho, vamos ter as suas impressões no Boletim Mensal das Missões Franciscanas e Ordem Terceira desde 1942 a 1945. Irá ainda publicar um resumo histórico das missões católicas na Guiné, a pretexto das comemorações do V Centenário da Descoberta da Guiné. Infelizmente, depois perdemos-lhe o rasto. Terá seguramente trazido consigo os seus cadernos onde guardou inúmeras referências que lhe serviram para estruturar os artigos que ia publicando, desta feita sobre a organização social e política indígena, a vida familiar, a transmissão de bens, as indumentárias e os adornos, não esqueceu as tatuagens, os penteados que ele classifica de exóticos, até os anéis e anilhas de latão no cabelo, tranças com conchas e moedas, os amuletos em bolsas de couro ou prata lavrada, não deixando de sublinhar que na Guiné era melhor falar em práticas islamizadas do que islamismo, o poder do animismo era muito forte e os religiosos da religião muçulmana tinham a prudência de não serem severos para que o seu proselitismo não levasse ao abandono das práticas religiosas convencionais.

Um abraço do
Mário



Impressões da Guiné de um missionário franciscano, início da década de 1940 (4)

Mário Beja Santos

Que grande surpresa, estas Impressões da Guiné escritas por um missionário que ali viveu mais de oito anos, são documentos que ele vai publicando ao longo dos anos no Boletim Mensal das Missões Franciscanas e Ordem Terceira, ainda não sei o que nos reserva este conjunto de cartapácios, a verdade é que há imagens magníficas sobretudo no noticiário guineense. O padre António Joaquim Dias regressou a Portugal depois de oito anos e meio de apostolado missionário em terras da Guiné e resolveu vazar no Boletim Mensal das Missões Franciscanas e Ordem Terceira a partir do número de novembro de 1942 em diante impressões e dados históricos da presença missionária franciscana na antiga Senegâmbia Portuguesa.

O Padre Dias vai-nos dando todas as suas impressões, agora detém-se na organização política e social das etnias, refere que o território está dividido em regulados, assistidos os régulos pelo conselho de anciãos, o poder e ação destes régulos ficaram reduzidos pela Reforma Administrativa Ultramarina, não deixando de referir que vão longe os tempos em que havia de lhes pagar anualmente direitos de suserania. Em termos hierárquicos temos a seguir os chefes de povoação ou de tabanca e que são escolhidos ou confirmados pelas autoridades portuguesas. Os crimes e pleitos entre naturais, julgados e punidos ou dirimidos antigamente pelos chefes e régulos sobem hoje à apreciação, resolução e punição pelas autoridades administrativas. E comenta seguidamente o que distingue morança de tabanca, conceito que consideramos inadequado, mas é o do missionário. Para ele, morança é o conjunto de casas pertencente à mesma família e pode dar o aspeto de grande povoação, principalmente na etnia Brame ou Mancanha. A tabanca é propriamente o aglomerado urbano de várias famílias reunidas em aldeia, embora as palhotas não estejam dispostas em arruamentos e as moranças encontram-se mais ou menos isoladas umas das outras e rodeadas a cada passo de estacaria ou cercado privativo. E dá-se ao trabalho de nos descrever os materiais com que se constroem as moranças, explica a natureza das coberturas e oferece-nos uma curiosidade: “Merece referência especial a palhota dos Balantas. De paredes de barro, amassado com palha de arroz, consta dois pisos sobrepostos. Num e noutro, há divisões que se podem destinar a quartos, armazéns de víveres, currais, etc. Nestes edifícios, as tulhas ou bembas, reservadas aos víveres, são colocadas dentro de casa antes de levantadas as paredes, porque atingem por vezes grande porte e jamais caberiam pelas portas”.

Segue-se uma descrição da organização familiar dos indígenas da Guiné, começa por sublinhar o comando das pessoas de mais idade como elemento predominante, ao lado do papel desempenhado pelos avós e pais. E chama a atenção para o valor económico que reside nos instrumentos de trabalho, nos braços que aram a terra, que lançam a semente, o conjunto de tarefas até à recolha aos celeiros. Quanto ao casamento, diz-nos que geralmente o futuro genro tem de prestar ao sogro serviços vários no amanho das terras. E lança o seu olhar sobre o comportamento que classifica de cruel ou desumano: “Os guineenses rejeitam os gémeos e os defeituosos que antes dos 3 ou 4 anos expõem na selva à voracidade das feras ou afogam nos rios e pântanos. A mesma sorte cabe frequentemente às crianças cujas mães faleçam de parto e ainda às que, por crendice, forem classificadas de feiticeiras. Entre os Manjacos, não pode o indivíduo, criança ou adulto, estar doente mais de 8 a 10 dias. Sucede o mesmo entre os Brames. Aqueles matam-no fazendo ingerir água a ferver; estes abrem-lhe as veias das fontes com uma faca, ou, mais vulgarmente, utilizando vidro de garrafa. Em 1934, surpreendi em Bula uma velhota que terminava esta última operação a um neto, perdido aliás para uma infeção grave de um maxilar”.

Informa-nos igualmente que as missões católicas mantinham e dirigiam um asilo de crianças do sexo feminino em Bor, a sete quilómetros para nordeste de Bissau, a que fora apensada uma secção de creche destinada precisamente a salvar a vida das crianças órfãs e das repudiadas pelos pais. Mais adiante dá-nos uma explicação sobre a transmissão dos bens: “É muito raro o indígena da nossa Guiné dispor dos seus bens em forma testamentária perante as autoridades gentílicas ou europeias. Por uma parte, as usanças tradicionais inibem-no de aliená-los à própria família; e, por outra, ele sabe que serão atribuídos infalivelmente quem pertençam por direito consuetudinário da etnia, fiscalizado pelo régulo. Os filhos não são os herdeiros, nem dos bens nem dos cargos paternos. Refiro-me aos bens de vínculo, ao património da família, recebido dos antepassados que devem transitar para os sucessores certos e legais. Ao herdeiro incumbe fazer a despesa dos funerais ou o Choro pelo falecido. A sonoridade e duração deles depende da fortuna do morto ou dos recursos do herdeiro”.

Dentro da sua observação cabe também o traje e os adornos do indígena. Fala já em processos de aculturação, menciona o contato das etnias autóctones com os islâmicos ou islamizados do Sudão, da Mauritânia e de outras regiões africanas que os levou ao conhecimento dos tecidos e ao aproveitamento do algodão. Lembra que segundo Zurara, os primeiros portugueses que aqui arribaram encontraram árvores de algodão e que os tecidos e peças de roupa eram tidos em grande apreço nas trocas com os portugueses. E elenca essas peças: calção, saias, tangas, chapéus, lenços, cofiós, entre outros. Também está atento a pormenores bizarros e não perde ocasião de os comentar, como é o caso deste: Estava eu a pesquisar neste boletim mensal mais textos do Padre Dias quando me apareceu a notícia de que no dia 8 de dezembro de 1950 tinha sido solenemente sagrada a nova Igreja de Bissau a que chamamos catedral. Dias antes chegara o bispo sagrante, prelado de Cabo Verde, recebido como hóspede de honra da Guiné. Na primeira parte das cerimónias estiveram presentes Monsenhor Ribeiro de Magalhães, franciscano e Prefeito Apostólico, Monsenhor Próspero Dodds, Prefeito Apostólico de Ziguinchor, autoridades civis e militares, missionários e povo. A 8 foi completada a sagração, na presença do governador Raimundo Serrão. “As ruas apareceram à noite ricamente iluminadas, foi queimado vistoso fogo de artifício e potentes holofotes faziam realçar, no negrume da noite calma, a brancura da fachada do novo templo”. No dia 11 teve lugar uma luzida sessão solene comemorativa da celebração.

(continua)

A velha Igreja de Amura
A nova Igreja de Bissau
Assistem à Sagração os Revmos. Srs. Prefeitos Apostólicos da Guiné e de Ziguinchor
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Nota do editor

Último poste da série de 24 DE AGOSTO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23551: Historiografia da presença portuguesa em África (330): Impressões da Guiné de um missionário franciscano, início da década de 1940 (3) (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P23573: Notas de leitura (1485): "Panteras à solta", de Manuel Andrezo (pseudónimo literário do ten gen ref Aurélio Manuel Trindade): o diário de bordo do último comandante da 4ª CCAÇ e primeiro comandante da CCAÇ 6 (Bedanda, 1965/67): aventuras e desventuras do cap Cristo (Luís Graça) - Parte V: Bedanda, em meados de 1965


Croquis de Bedanda, em meados de 1965, ao tempo do cap inf Aurélio Manuel Trindade, último cmdt da 4ª CCAÇ e primeiro cmdt da CCAÇ 6 (In "Panteras à Solta",  de Manuel Andrezo, ed. autor, c. 2020, pág. 3)


1. Continuação da leitura do livro "Panteras à solta: No sul da Guiné uma companhia de tropas nativas defende a soberania de Portugal", de Manuel Andrezo, edição de autor, s/l, s/d [c. 2020] , 445 pp. , il. [ Manuel Andrezo é o pseudónimo literário do ten gen ref Aurélio Manuel Trindade, ex-cap inf, 4ª CCAÇ / CCAÇ 6, Bedanda, jul 1965/jul 67, exemplar gentilmente facultado, a título de empréstimo, pelo cor inf ref Mário Arada Pinheiro, com dedicatória autografada do Aurélio Trindade, datada de 13/12/2020] (*).

Há, porém uma edição, de autor, aparentemente  mais antiga. Ou então é a mesma, sendo que o autor mandou imprimir, com capa dura,  o seu livro na Alemanha, presumivelmente em 2020.  O livro não se encontra no mercado livreiro. Tem 445 pp.  

Ficha bibliográfica da edição autor de 2010:

Autor(es): Trindade, Aurélio Manuel, 1933-
Publicação: Lisboa : Edição de autor, 2010
Desc. Físicia: 399 p. : il. ; 26 cm
Contém: No sul da Guiné uma companhia de tropas nativas defende a soberania de Portugal
Notas: Manuel Andrezo é pseudónimo do Tenente-General Aurélio Manuel Trindade
Assuntos: Campanhas de África, 1961-1974 / Guerra colonial, 1961-1974 / Guiné, Portugal, até 1974

Cont. Digital: Panteras_a_Solta (PDF, 6 MB) (link para descarregar o ficheiro em pdf, 407 pp) (Cortesia do autor e da Biblioteca Digital do Exército)

Muitos "bedandenses" (e temos cerca de um vintena de camaradas, membros da Tabanca Grande, que estiveram em ou passaram por Bedanda, entre 1961 e 1974, mormente na 4ª CCAÇ e na CCAÇ 6) vão ler, de um fôlego, com saudade e sobretudo com muito prazer, este livro de memórias do capitão Cristo ("alter ego" do cap inf Aurélio Manuel Trindade, hoje ten gen ref, nascido em 1933).


Temos estado a selecionar uma ou outra história ou episódio dos cerca de 70 capítulos, não numerados, que o livro apresenta, uns sobre a atividade operacional da 4ª CCAÇ / CCAÇ 6,  outros sobre o quotidano da tropa e da população (incluindo a população do mato). 

 Há ligeiras diferenças entre a edição de 2010 e a de 202o. É natural que no espaço de 10 anos o autor tenha revisto, acrescentado ou melhorado algumas páginas.  Mas, pelas páginas que cotejámos, não há diferenças de conteúdo. O índice é o mesmo, com pequenas diferenças de paginação.  A diferença de 4 dezenas de páginas terá a ver com a impressão em livro, com um um tipo de letra talvez maior e mais espaçamentos. 

Mas deixemos, por agora, aos nossos leitores, a título de "nota de leitura" (**),  mais um peqeuno excerto do livro, neste caso sobre a Bedanda de meados de 1965, quando o capitão Cristo a conheceu:


PARA QUE O LEITOR NÃO SE PERCA EM BEDANDA (pp.  1-2)

Bedanda, sul da Guiné e região do Tombali, quartel da 4ª companhia de caçadores nativos, 4ª CCAÇ  no texto, ano de 1965. Distribuída por uma área com cerca de 8 kms de perímetro, dispondo de abrigos e redes de arame farpado, a 4ª CCAÇ  compreende diversos aquartelamentos ou sectores. 

Um desses sectores, a sede da companhia também será referido no texto como Companhia ou quartel [vd. croquis acima]. Conta com 2 pelotões de caçadores de um total de 4. O capitão tem aí o seu quarto, que funciona também como gabinete de trabalho, sala de reuniões e casa de banho. 

Não confundir com companhia, com inicial minúscula no texto, que é a componente operacional da Companhia. O depósito de géneros será a cantina no texto  [vd. croquis acima].. Tem 1 pelotão de caçadores e 1 pelotão de artilharia com 2 obuses 8.8. 

A povoação comercial, ou simplesmente povoação, é o sector onde se concentra a actividade comercial de Bedanda. Este sector dispõe de 1 pelotão de caçadores com uma secção destacada na Casa Gouveia, uma das casas comerciais [vd. croquis acima].

O sector da população indígena será a tabanca, onde está instalado  1 pelotão de milícias. O posto administrativo, por vezes designado apenas por posto, inclui a residência do administrador [vd. croquis acima].

Para suporte da sua actividade comercial e reabastecimentos militares, Bedanda é servida por 2 portos fluviais, situando-se um deles no rio Ungarinol, chamado porto interior, situado a cerca de 200 metros do quartel, e um outro mais distante, a cerca de 4 kms, no rio Cumbijã. É o porto exterior [vd. croquis acima].

À volta de Bedanda encontram-se muitos outros rios, matas cerradas como o célebre Cantanhêz, o corredor de Guileje e acampamentos de guerrilheiros armados de kalashnikov. À data da chegada do capitão Cristo a Bedanda, os soldados da 4ª CCAÇ dispunham da velha Mauser, do tempo da segunda Grande Guerra Mundial.

Local perdido nos confins da Guiné, como uma ilha cercada por todos os perigos, votada ao abandono pelo Comando Militar em Bissau, vejam como o capitão Cristo, ao ser ali colocado em rendição individual, assumiu a desdita que o destino lhe tinha reservado e a transformou numa caminhada de vitórias, num exemplo único de coragem, empenho, lucidez e de afirmação das nobilíssimas virtudes militares dos “capitães do  mato”, que fizeram do capitão de Bedanda uma lenda viva, que permaneceu e se espalhou, mesmo depois do capitão Cristo ter terminado a sua comissão, não só pelas unidades militares portuguesas como também por toda a guerrilha do PAIGC. 

[Seleção, revisão e fixação de texto, negritos e itálicos: L.G.] (Com a devida vénia...)
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Notas do editor:

(*) Vd. poste de 30 de agosto de  2022 > Guiné 61/74 - P23568: Notas de leitura (1482): "Panteras à solta", de Manuel Andrezo (pseudónimo literário do ten gen ref Aurélio Manuel Trindade): o diário de bordo do último comandante da 4ª CCAÇ e primeiro comandante da CCAÇ 6 (Bedanda, 1965/67): aventuras e desventuras do cap Cristo (Luís Graça) - Parte IV: as circunstâncias da morte do 2º sargento mecânico auto Rodolfo Valentim Oliveira, em 11/8/1965...

(**) Último poste da série > 31 de agosto de 2022 > Guiné 61/74 - P23572: Notas de leitura (1483): "Aprendiz de Mágico", de António Mário Leitão: "Um romance autobiográfico surpreendente (...) Ao longo da narrativa aparecem as diferentes facetas profissionais vividas por um farmacêutico que também foi professor, analista clínico, director de um serviço hospitalar, animador cultural, aviador, patrão de alto-mar, instrutor de mergulho e chefe de expedições de aventura, até se converter em escritor compulsivo" (António Trovela)

Guiné 61/74 - P23572: Notas de leitura (1484): "Aprendiz de Mágico", de António Mário Leitão: "Um romance autobiográfico surpreendente (...) Ao longo da narrativa aparecem as diferentes facetas profissionais vividas por um farmacêutico que também foi professor, analista clínico, director de um serviço hospitalar, animador cultural, aviador, patrão de alto-mar, instrutor de mergulho e chefe de expedições de aventura, até se converter em escritor compulsivo" (António Trovela)

 «1.  O António] Mário Leitão é um limiano, nascido em 1949,  que toca "sete instrumentos" e tem "muitas vidas". Além de marido, pai e avô, terno, extremoso, babado, é ou foi: 

(i)  fur mil na Farmácia Militar de Luanda, Delegação n.º 11 do Laboratório Militar de Produtos Químicos e Farmacêuticos (LMPQF), 1971 a 1973;
 
(ii) membro da nossa Tabanca Grande, o nº 741,  desde 12/4/2017; 

(iii) tem cerca de 4 dezenas de  referências no nosso blogue; 

(iv) licenciado em farmácia pela Universidade do Porto, antigo director técnico da Farmácia Lopes, em Barroselas, Viana do Castelo, hoje  reformado, tendo leccionado também na Escola Superior de Enfermagem de Viana do Castelo ; 

(v) piloto civil (com mais de 300 horas de voo), patrão de alto-mar e instrutor de mergulho;

 (vi) autarca, cidadão empenhado, ambientalista,  dirigente associativo,  com vasta colaboração na imprensa; 

(vii) escritor, membro da Associação de Escritores, Jornalistas e Produtores Culturais de Ponte de Lima, membro da Associação Portuguesa de Escritores, autor dos seguintes livros:

  • "Aprendiz Mágico" (Lisboa,  Astrolábio, 2022, 264 pp.)
  • “Heróis Limianos da Guerra do Ultramar”(Ponta de Lima, ed. autor, 2018, 272 pp.);
  • "História do Dia do Combatente Limiano"  (Ponte de Lina, ed. autor, 2017)
  • "Biodiversidade das Lagoas de Bertiandos e S. Pedro d´Arcos"  (Ponte de Lima: Lions Clube de Ponte de Lima, 2012, 295 pp. e mais de 500 fotografias).

 Participou ainda no XI volume da obra "Guerra Colonial - a História na primeira pessoa" (QUIDNOVI, 2011 a pág. 18 a 28), com o artigo "A farmácia militar".

Sexta-feira, dia 2/9/2022, às 20h00, vai estar presente na Feira do Livro de Lisboa, Parque Eduardo VII, pavilhões D44, D46, D48, D50, D52, para autografar o seu último livro   "Aprendiz de Mágico",  editada pela Astrolábio / Grupo Editorial Atântico (Prefácio do jornalista e diretor de comunicação Carlos Enes.  Preço de capa: 12 euros | ebook: 5 euros) (*)


2. Texto do poeta limiano António Trovela:

Aprendiz de Mágico,

 por António Trovela

Como diz Carlos Enes no prefácio, a vida do Autor, contada, não se acredita: da escuridão do fundo do mar à claridade celestial que pastoreia as nuvens, o protagonista enfrenta a morte com escandalosa insistência e arrebatador desprendimento.  João Barbosa, escritor limiano, comparou os relatos do “Aprendiz de Mágico” com as aventuras de Dan Brown, mas realçou uma diferença importante: a autobiografia de A. Mário Leitão é verídica!

Não é todos os dias que aparece uma obra a contar as “excentricidades” de alguém que sobreviveu a um grave choque anafilático na infância, que foi salvo de afogamento na adolescência, que foi libertado da forca in extremis, que escapou a um assombroso assalto de indígenas em terra africana, que esteve a morrer por paludismo, enfim… que pertence ao restrito clube dos pilotos sobreviventes de desastres aéreos!

Muitos leitores referem a sua experiência de terem lido o livro de uma assentada, e têm razões para isso: a pequena extensão de cada um dos 44 capítulos e cativação que a leitura provoca. De facto, em determinados momentos surge no leitor a interrogação sobre o que é que virá a seguir!

Esta é uma peça literária que junta a aventura com o humor, ambos polvilhados com adequada dose de lirismo. No prefácio, o livro é descrito como um parque de diversões de géneros literários, onde cabem a biografia, a crónica, o romance fantástico e até qualquer coisa de novela de cavalaria. Não poderá haver melhor definição para este “Aprendiz de Mágico”.

Contudo, há três capítulos verdadeiramente desconcertantes no que respeita ao que é permitido a um ser humano viver na sua passagem por este mundo.

Um deles relata a experiência do furriel miliciano que foi convidado para a mesa do General Luz Cunha, comandante-chefe das Forças Armadas de Angola, meticulosamente relatada.

Outro descreve, segundo a segundo, o disparo de uma espingarda submarina de pressão-de-ar, cujo arpão de 330 gramas beijou a face do autor e atravessou a sua máscara de mergulho, algures na praia de Vila Chã, em Vila do Conde.

O terceiro testemunho é um hino à vida, pois o Autor deixa escapar o orgulho que sente por ter impedido a consumação de três abortos. Por via disso, confessa jubilosamente, considera-se uma espécie de “pai espiritual” de três seres humanos, concretamente um médico, um professor e um advogado.

Ao longo da narrativa aparecem as diferentes facetas profissionais vividas por um farmacêutico que também foi professor, analista clínico, director de um serviço hospitalar, animador cultural, aviador, patrão de alto-mar, instrutor de mergulho e chefe de expedições de aventura, até se converter em escritor compulsivo.

É plausível que este livro venha a ser objecto de larga divulgação, quiçá global, pois é um romance autobiográfico surpreendente. (**)
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Notas do editor:

(*)  Vd. poste de 5 de maio de  2022 > Guiné 61/74 - P23232: Agenda cultural (809): "Aprendiz de Mágico" (Lisboa, Astrolábio, 2022, 264 pp.), de António Mário Leitão: sessão de lançamento, sábado, 7 de maio, 17h30, auditório da CM Ponte de Lima


(**) Último poste da série > 30 de agosto de 2022 > Guiné 61/74 - P23568: Notas de leitura (1482): "Panteras à solta", de Manuel Andrezo (pseudónimo literário do ten gen ref Aurélio Manuel Trindade): o diário de bordo do último comandante da 4ª CCAÇ e primeiro comandante da CCAÇ 6 (Bedanda, 1965/67): aventuras e desventuras do cap Cristo (Luís Graça) - Parte IV: as circunstâncias da morte do 2º sargento mecânico auto Rodolfo Valentim Oliveira, em 11/8/1965...

HGuiné 61/74 - P23571: Facebook...ando (67): Francisco Domingues, ex-fur mil art, Pel Art, Bedanda (1970/72), natural de Trancoso, vive em Vila Nova de Gaia

Guiné > Região de Tombali > Bedanda > Pel Art > c. 1970/72 > O fur mil art Francisco Domingues

Guiné > Região de Tombali > Bedanda > Pel Art > c. 1970/72 > "Olá Mário Azevedo, lembras-te desta?"


Guiné > Região de Tombali > Bedanda > Pel Art > c. 1970/72 > Bastante  mais novos, a caminho do piquenique.


Lisboa > Cais da Rocha Conde de Óbidos > T/T "Niassa" (?) > Partida para a Guiné > "Quase lá dentro... 26 de julho de 1970".

Fotos (e legendas): © Francisco Domingues  (2014). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. O Francisco Domingues contactou-nos através do Formulário de Conta do Blogger, na passada segunda feira, dia 29, às 15h46. A mensagem, telegráfica,  dizia que tinha estado em Bedanda, como furriel miliciano de artilharia, e apresentava-nos cumprimentos. 

Deixa-nos o seu email. Em resposta, já o  juntámos à nossa lista de bendandenses (*), de que faz parte, entre outros, o seu amigo, vizinho e contemporâneo Mário de Azevedo.

Sabemos, pela sua página no Facebook, que  é natural de Trancoso e que vive em Vila Nova de Gaia. Na nossa página da Tabanca Grande, no Facebook,  deixou este comentário: 

(...) Não tenho saudades de Bedanda, mas tenho saudades das suas gentes, dos meus camaradas, da minha juventude. O tempo não volta atrás, nem eu. Abraço a todos os bedandenses. (...)

Na sua págima, tem algumas fotos da Guiné (para onde embarcou em 27 de julho de 1970, no T/T "Niassa, se não erra,ps). Tem também fotos de convívios do pessoal da CCAÇ 6, ou que passou  por (ou esteve em) Bedanda... Já identificámos alguns bedandenses, membros (a maior parte) da Tabanca Grande, como o Amaral Bernardo, o Tibério Borges, o José Vermelho, o Carlos Carrondo, etc.  (no convívio da "família bedandense, realizado na  Mealhada, de 25 de julho de 2016). (**)

terça-feira, 30 de agosto de 2022

Guiné 61/74 - P23570: Os nossos seres, saberes e lazeres (521): Trabalhos de pintura da autoria de Jaime Machado, ex-Alf Mil Cav, CMDT do Pel Rec Daimler 2046 (1)



1. Depois da prova de vida, o nosso camarada Jaime Machado, ex-Alf Mil Cav, CMDT do Pel Rec Daimler 2046 (Bambadinca, 1968/70), que no passado dia 27 de Agosto festejou o seu aniversário, enviou-nos alguns dos seus trabalhos de pintura que vamos começar a mostrar hoje na série "Os nossos seres, saberes e lazeres".
Flores - Acrílico sobre papel - 30X42
Paisagem - Acrílico sobre papel - 30X42
Muçulmano - Acrílico sobre papel - 30X42
Mulher - Acrílico sobre papel - 30X42
Mulher - Acrílico sobre papel - 30X42
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Nota do editor

Último poste da série de 27 DE AGOSTO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23561: Os nossos seres, saberes e lazeres (520): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (65): Voltar à minha querida Bruxelas, depois da pandemia - 3 (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P23569: In Memoriam (451): Gratas recordações do confrade António Júlio Emerenciano Estácio (1947-2022) (4): “Bolama, a saudosa…”, lembranças afetuosas da sua juventude (Mário Beja Santos)

1. Mensagem de 26 de Agosto de 2022 do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70):

Queridos amigos,
É a hora da despedida do António Estácio, saboreei a releitura da sua pesquisa sobre a presença portuguesa na Guiné, não há revelações surpreendentes, mas uma enumeração exaustiva de eventos, vamos ter informações em catadupa desde a criação de Bolama até à sua viagem de despedida, falará comovidamente da família, do convívio, das brincadeiras com outros meninos, é tocante. Minucioso, não esquece tanto as guerras de pacificação como a questão de Bolama, bateu à porta de muita gente, neste texto recolheu o testemunho de alguém que viveu no ilhéu do Rei e que descreve a intensidade fabril daquela Casa Gouveia; viajaremos por diferentes tempos, ouviremos falar de muita gente, fas publicações, dos escritores e em dado momento ele lembra-nos Fernanda de Castro que era filha do capitão do porto de Bolama, aqui morreu sua mãe, aqui ela encontrará inspiração para aquele que terá sido o best seller infanto-juvenil do Estado Novo, Mariazinha em África. Há que confessar que António Estácio adoeceu entretanto e a edição ressentiu-se da falta de revisão. Mas o que é mais relevante é que esta viagem a Bolama é um testamento de amor que não esqueceremos tão cedo.

Um abraço do
Mário


Gratas recordações do confrade António Estácio:
“Bolama, a saudosa…”, lembranças afetuosas da sua juventude

Mário Beja Santos

Deste livro, edição de autor, 2016, nesse mesmo ano aqui deixei as minhas impressões de leitura, o meu pasmo com o acervo informativo que Estácio foi recolhendo, primeiro sobre a história da nossa presença na Guiné, antes de 1879, quando esta foi desafetada de Cabo Verde. Estácio leu muito, e não se limitou ao Boletim Oficial da Guiné. Leu António Loureiro da Fonseca que recorda aos vindouros o sangue que se derramou em sucessivas guerras. Não esquece os dados essenciais dessa nossa presença, desde as companhias de tipo majestático, o comércio de Cacheu e Ziguinchor, a questão de Bolama, a criação do seu município em setembro de 1871, entre tantíssimos exemplos que eu aqui podia relevar.

Recorre a testemunhos de gente do seu tempo, caso do Manuel Duarte Freire que era filho de trabalhador da Casa Gouveia e que descreve a vida no ilhéu do Rei, ficamos a saber um pouco mais sobre a CUF:

“No ilhéu do Rei, local onde a CUF tinha o seu complexo industrial, talvez o único e o maior que me lembre, o qual era composto por vários armazéns, de enorme capacidade, consoante o tipo de mercadoria a que se destinasse, como, por exemplo, de 30.000 toneladas para o amendoim, 10.000 toneladas de arroz em casca e de várias toneladas de coconote. Tinha uma fábrica de descasque de arroz, outra para mancarra e uma outra de aproveitamento de óleo. Na fábrica destinada ao descasque de mancarra ficava a de óleo de amendoim, sendo esta ali construída no ano de 1956, ou seja, no mesmo ano em que foi construída uma ponte nova que tornou possível a atracagem de barcos de maior dimensão. 

No ilhéu, havia tratores para mudar e transportar as mercadorias, assim como as diversas balanças para assegurarem as pesagens. No caso do descasque de arroz, ele era ali processado e embalado, enviando-se para Bissau ou carregando-se para outros destinos, quer fosse Lisboa ou diversos países. A mancarra foi ali descascada, ensacada e enviada para a metrópole, onde era produzido o conhecido Óleo Fula. Porém, a partir de 1957, a fábrica de óleo da ilha do Rei começou a separar logo e a produzir o óleo, farinhas, sabão, glicerina e o Óleo Fula passou a ser logo ali produzido. Todos os resíduos foram aproveitados para farinhas que eram exportadas para a Holanda, o mesmo sucedendo com o sabão e a glicerina. Este é o meu testemunho, vivido no ilhéu do Rei, na boa e velha Guiné, onde cheguei em 15 de março de 1951 e permaneci até 1958. Regressei com a finalidade de continuar a estudar em Tomar, tendo tido a sorte de ir parar onde havia tantos guineenses amigos e de quem guardo imensas saudades (certamente que Manuel Duarte Freire se refere ao Colégio Nun’Álvares, instituição de ensino onde estudaram muitos guineenses)".

Nesta curta memória é inviável elencar a farta pesquisa de Estácio, põe o enfoque no período republicano, fala-nos da Liga Africana, Liga Guineense e Centro Escolar Republicano; não esquece a bravura de Sebastião Casqueiro e as operações militares no Churo, a ocupação do Oio, as operações de Teixeira Pinto, transcreve mesmo as narrativas do próprio Capitão João Teixeira Pinto. E há o contraditório, o advogado Loff de Vasconcelos a apresentar queixa-crime contra Teixeira Pinto e Abdul Indjai, indicando um rol de testemunhas de grande peso socioeconómico, era a contestação ao que se chamou o regime abusivo de Teixeira Pinto. E se isto se trata de uma listagem impressionante de nomes, informações em catadupa sobre acontecimentos de vária ordem, nomeações, inaugurações, muitos recortes de notícias publicadas na imprensa local.

Não esquece Honório Pereira Barreto, a presença de Gago Coutinho, a governação de Velez Caroço, o acidente com a Esquadra Balbo, as visitar alemãs, a autorização dada a Pan American de faz escala em Bolama; em 1947 dá-se a inauguração da carreira aérea Dacar-Bissau, por avião e Junker 52 da Air France; e a participação de dezenas de guineenses das etnias Bijagó, Balanta e Fula na I Exposição Colonial Portuguesa, capitaneava a participação um bravo militar, o régulo Mamadu Sissé, acompanhado de quatro mulheres e dois filhos; não são esquecidos os periódicos (todos eles de vida breve); a revolta republicana de 1931 e a sua precária Junta Governativa; a figura do escritor e publicista Fausto Duarte; e em 1953 chega a Guiné o professor Paulo Quintela à frente de um grupo de antigos estudantes de Coimbra; e até o Manuel Joaquim do cinema não é esquecido.

Convém abreviar, aqui se endereça um derradeiro abraço de saudade a este confrade que irá lembrar emotivamente a vida familiar, os seus amigos, irá ouvi-los e não se coibirá de dizer que estava a viver as mais belas recordações da sua vida. Não esquece o nome de escritores e evoca Fernanda de Castro que viveu em Bolama, autora de um impressionante bestseller infantojuvenil que marcou gerações, Mariazinha em África, fui buscar a minha edição da Ática, de 1947, com desenhos de Ofélia Marques, e transcrevo algumas passagens:

“Dum lado e doutro da estrada, só se viam arrozais, arrozais verdes, arrozais a perder de vista… Estava calor, um calor de rachar, mas o ar deslocado pelo carro em movimento dava uma sensação de frescura a Mariazinha e a Ana Maria. Pássaros de todas as cores, de todos os feitios, voavam sobre o arrozal. Insetos enormes vinham esborrachar-se de encontro aos vidros do automóvel. Uma cobra amarela, pintalgada de preto, rastejava ao longo da estrada. E nem uma árvore, nem um arbusto, nem uma sombra no horizonte.

Pouco a pouco, porém, a paisagem foi mudando. Às superfícies cultivadas dos arrozais sucedia-se agora o capim, capim alto, serrado, onde uma fauna perigosa e hostil proliferava, palpitava, rastejava… Árvores enormes, a princípio isoladas, pareciam sentinelas à beira da floresta”
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E, mais adiante:

“Meia hora depois, surgia Buba, terra de maravilha! Nem casas, nem barcos, nem carros, nenhum sinal de civilização. Os raros comerciantes brancos que ali viviam, tinham as suas casas no interior, muito longe do cais, e este cais rudimentar era o único vestígio da passagem dos brancos por aquelas terras.

No rebocador, os marinheiros manobravam para atracar e todos se preparavam já para o desembarque.

A região não podia ser mais bonita! Bananeiras carregadas de bananas vinham quase até ao rio. Borboletas que pareciam flores e flores que pareciam pássaros confundiam-se, nas árvores, com os frutos coloridos – as mangas, as goiabas, os cajus.
- Olha, Ana Maria! – exclamou Mariazinha. – O cais está cheio de gente!

Com efeito, no cais apinhavam-se dezenas, centenas de pretos, alguns dos quais tocavam uma música estranha nuns instrumentos ainda mais estranhos. O barulho era ensurdecedor… Raparigas e mulheres, embrulhadas em panos berrantes, com lenços vistosos na cabeça e fios de contas de vidro em volta do pescoço, dos pulsos e dos tornozelos, batiam palmas a compasso e sorriam para os brancos; pretinhos nus, com enfiadas de sementes vermelhas em volta da barriga, guinchavam e saltavam como macaquinhos; separados dos outros, estavam os tocadores, que tocavam tantã e uns instrumentos esquisitos que pareciam violinos mal feitos. E, ao longo do cais, uma multidão colorida acenava, gritava, barafustava, uma multidão amiga que abriu alas à passagem dos brancos e depois os seguiu, em cortejo, até a casa do Administrador.”

Ainda encontrei uma outra obra da responsabilidade do António Estácio mas dedicada à escola de regentes agrícolas que ele frequentou, seguramente outro belo testemunho de saudade.
Porto de Bolama, 1912
Bolama, fachada do Banco Nacional Ultramarino, mais tarde Hotel Turismo
Monumento aos aviadores italianos caídos em desastre aéreo, no início da década de 1930
Lembranças da velha Bolama
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Nota do editor

Último poste da série de 25 DE AGOSTO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23555: In Memoriam (450): Gratas recordações do confrade António Júlio Emerenciano Estácio (1947-2022) (3): Uma viagem a Bissau para saber mais sobre a mítica Nha Bijagó (Mário Beja Santos)