1. Mensagem de José Brás (ex-Fur Mil na CCAÇ 1622, Aldeia Formosa e Mejo, 1966/68), com data de 8 de Março de 2010:
Carlos amigo
Na sequência das notícias sobre o acidente com uma aeronave na pista do Ciborro, durante algum tempo chegou a pensar-se no interior da Tabanca Grande (e não só) que eu estaria envolvido nele*.
Isso bastou para que chovessem telefonemas e e-mails de camaradas que queriam saber de mim, e mesmo depois de esclarecido que não era eu mas um amigo e um conhecido, continuo a receber mensagens, agora reflectindo a tristeza por ter eu perdido um amigo, mas felizes (a vida é isto) por não ter sido eu.
Naturalmente que quero agradecer a todos esses camaradas e aos que não me contactaram porque souberam dos factos, e nada melhor do que o fazer através do blogue, se os camaradas editores assim o entenderem.
Voar não é uma exercício mais perigoso do que tantos outros que quotidianamente a maioria de nós pratica. Exige, sim, grande rigor no cumprimento de regras conhecidas dos pilotos no que se refere à máquina, ao espaço de operação e ao próprio piloto.
Entretanto, a rotina e a auto-confiança, por vezes, levam-nos a descurar partes das regras instituídas.
Outras vezes, sobretudo na fase pioneira da aviação ultraleve, abusou-se muito do conhecimento (ou da falta dele), indo para o ar apenas por gozo.
Do meu próximo livro, faz parte uma pequena abordagem a esta questão, e, também se os editores o acharem oportuno, ofereceria aos camaradas em antecipação, tal texto que, da guerra colonial tem apenas o facto de, escrevente e protagonista trágico, terem, em épocas e locais diferentes, protagonizaram essa parte da história pátria.
Obrigado a todos e um abraço fraterno.
José Brás
eu sou devedor à Terra
a Terra me está devendo
a Terra paga-me em vida
eu pago à Terra em morrendo
E nascemos todos com o destino trágico e inexorável, disse eu, incapaz de chorar a morte do Xico.
Nascemos, e ao primeiro vagido a conta-corrente agarra-nos, cola-se, determina a dádiva e a dívida.
É certo que não quantifica em meses ou anos a duração do aluguer ou o valor e o intervalo de cada prestação. A bem dizer nem cobra prestações.
Cada dia é uma hipótese de pagamento pelo total!
Nascemos (eu sou devedor à Terra), podemos morrer no dia seguinte, três meses depois, dez anos, trinta, oitenta... e a dívida mantém-se sem juros nem amortizações.
Morremos (eu pago à Terra em morrendo) de escarlatina, de sarampo, de coice de mula, debaixo do tractor, de enfarte, na estrada, no trabalho, nas férias, na mesma cama que nos viu sair do útero da madre.
Dizem alguns, mesmo sem provas, que temos o destino marcado na hora do nascimento. Dizem outros que cada ser humano é quem faz o seu destino no modo de andar por cá.
Mas a coisa é mais funda! Em verso se canta no Alentejo (e seguramente noutros lugares do mundo), que a Terra já me devia a mim (a Terra me está devendo), mesmo antes do dia das dores de parto da minha mãe.
Mesmo antes do acto de amor que me gerou, provavelmente, e se assim for, desde o começo dos dias do mundo, encadeando nascimento e morte de todos os que me antecederam no nevoeiro dos tempos.
Então, é a Terra que nos paga a prestações em cada dia de vida, em cada minuto, em cada vitória, em cada trambolhão.
Do valor da prestação se sabe apenas que é bom ou que é pobre se a mãe "teve um menino" ou "pariu um moço".
Da duração da dívida da Terra a cada um, só mesmo bruxos muito diplomados podem saber. Sabe-se apenas que a Terra paga (a Terra paga-me em vida) enquanto aqui andarmos e que se liberta da dívida quando saímos.
Afinal, simultânea e reciprocamente pagando cada qual, Terra e pessoa morrente, a sua dívida particular.
Acertamos as contas, diz-se.
Foi assim com o Xico. Como qualquer outro, poderia ter morrido nos dias todos que antecederam o momento em que ouviu pela primeira vez a palavra voar. Podia ter morrido no primeiro voo, no segundo acidente, no oitavo, no décimo segundo...
Pagou a dívida agora, não sei se ao décimo terceiro, se ao décimo quarto.
Pagou! Acertou as contas.
O Xico sabia muito pouco das leis da física que justificam o voo. O Xico sabia muito pouco de aerodinâmica, de performances, de estabilidade, das qualidades dos materiais de que se fazem as aeronaves.
O Xico nunca fez um curso de pilotagem. Teoria, voo; teoria e voo; voo e teoria...
Perguntava, suponho que perguntava. Ouvia aqui e ali, opiniões avulsas.
Podíamos dizer que o Xico foi um pioneiro da aviação.
Um pioneiro fora de tempo, é certo, sem cronómetro nem calendário, mas um pioneiro.
O Xico formou-se em cada queda, em cada hospital, em cada caranguejola que inventava para sair do chão, garantindo aos amigos que não gostaria de morrer de pneumonia na cama.
Alargou os dias esvoaçando. Esvoaçando e caindo; caindo e esvoaçando à volta das pistas, à volta de si próprio.
Não foi herói porque aqui chegou descoordenado da história dos aviões. Foi mais um anti-herói, anonimamente percorrendo os caminhos dos heróis mas sem glória nem proveito senão nos passos que ele próprio ensaiava, nos moinhos que derrubava.
Os irmãos Wright eram mecânicos de bicicletas e voaram numa máquina não muito diferente em qualidade de voo, daquelas que o Xico inventava.
Sobre as experiências dos irmãos Wright, sobre a sua coragem, a sua ingenuidade, os seus acidentes; sobre a doação de muitas vidas depois deles, se acumularam conhecimentos e tecnologia que nos permitem hoje, de modo seguro e cómodo, cruzar oceanos, ir à Lua e voar em Ultraleve.
O Xico foi um desses pioneiros.
Fora de tempo, é certo; em pleno triunfo da tecnologia; convivendo, paredes-meias, com essa tecnologia e sem poder gozá-la; ignorando-a e arriscando a vida em palpites e em suposições.
No empirismo alegre e puro de quem acabou de chegar e já está pronto para partir.
O Xico pagou à Terra!
A Terra pagou ao Xico.
À terra pagaremos todos, tu, Filipe, que quiseste coisa escrita e me encarregaste desta maluqueira, eu, teu funcionário pelo tempo da escrita e teu amigo até ao fim dos tempos, se é que tal coisa existe.
Amém.
__________
Nota de CV:
(*) Vd. poste de 8 de Março de 2010 > Guiné 63/74 - P5948: Blogoterapia (147): A notícia da minha morte foi um exagero: vão ter que continuar a aturar-me... (José Brás)
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
sexta-feira, 12 de março de 2010
Guiné 63/74 - P5981: Tabanca Grande (208): Daniel Matos, ex-Fur Mil da CCAÇ 3518 (Gadamael, 1971/74)
1. Mensagem de Daniel Matos* (ex-Fur Mil da CCaç 3518, Gadamael, 1971/74), com data de 3 de Março de 2010:
Caro Camarada
Conforme prometi, aqui estou a "pagar o ingresso" e a enviar as fotografias para formalizar a adesão à Tabanca Grande.
Junto também o prometido texto, em "word", reconhecendo que tem uma dimensão desapropriada para o blogue, mas vocês utilizá-lo-ão (ou não) como melhor entenderem.
Envio também mais duas fotografias (não tenho outras digitalizadas) que podem ajudar a ilustrar o texto: uma é a da messe de Gadamael, depois de receber obras de beneficiação já em 1973 (pouco antes de ser destruída... no mesmo edifício funcionava a secretaria e, por trás, as transmissões); a outra é de uma equipa de voleibol de "Os Marados" que é referida a 27 de Maio de 1973 durante o funeral do Cabo Telo, (corpo recentemente trasladado de Guidaje para o Paúl do Mar, Madeira).
A legenda (identificação da equipa) é a seguinte.
Equipa de voleibol de Os Marados de Gadamael (da esquerda para a direita): primeiro caboGabriel Telo, furriel miliciano António Quaresma (ambos falecidos), soldado condutor Albino Caldas, capitão miliciano Manuel de Sousa, furriel miliciano Daniel de Matos, furriel miliciano Ângelo Silva e alferes miliciano António Monteiro.
Qualquer coisa que falte, por favor contactem-me.
Cumprimentos
Daniel de Matos
2. Comentário de CV:
Caro Daniel Matos.
Não te dou propriamente as boas-vindas, embora te esteja a receber formalmente na Tabanca, porque tens já o estatuto de tertuliano desde Novembro do ano passado, quando foste falado num poste da série O Nosso Livro de Visitas*.
Podemos até lembrar:
Mensagem de 18 do corrente, do Daniel Matos, ex-Fur Mil da Companhia Independente, madeirense, CCAÇ 3518 (Gadamael, 1971/74)
Caro Luís Graça,
Há pouco enviei um comentário para o blog, mas como não tenho a certeza de que a respectiva expedição se tenha realizado a contento, transcrevo-a por esta via.
Li, entretanto, a sua observação sobre um antigo convite que me fez para colaborar com o blog, escrevendo alguns testemunhos do tempo da guerra, nomeadamente sobre os Marados de Gadamael, e ao qual nunca cheguei a responder. Não foi por preguiça, terá sido por falta de disposição e de tempo, pois além da actividade profissional dedico-me a outras, não me sobrando muitas horas para a família, sequer.
Curiosamente, em tempos idos, uma dessas actividades foi precisamente a escrita, procurando passar para o papel uma espécie de "História da Companhia".
Porém, nos convívios anuais que efectuamos no continente (a 3518 era uma Companhia madeirense) fui verificando que um mesmo acontecimento era relatado por cada um de nós de maneiras por vezes bem diferentes e, não querendo fazer prevalecer o que os meus olhos viram e a minha leitura dos factos, resolvi alterar tudo para o campo da ficção, seguindo cada personagem outros caminhos, ao sabor da pena.
Isso veio a dar origem a um livro que estou agora a rever. Alguns contos foram publicados de forma avulsa, e premiados por alguns municípios. Mas como ficção pura, não creio que seja matéria que interesse ao blogue.
Também o meu amigo de longa data A. Marques Lopes, membro do blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné, já insistiu comigo para escrever e eu nunca correspondi a esse pedido. O mesmo agora o fez o ex-alferes Juvenal Candeias (da 3520, de Cacine).
Penso em breve libertar-me de algumas ocupações e, mal isso aconteça, prometo compartilhar algumas memórias convosco.
Cordiais saudações.
Daniel de Matos
Assim, este poste ficará, por assim dizer, para te conhecermos um pouco melhor antes de começarmos a publicar o teu texto com a História da tua Unidade.
Julgo que não preciso de muitas particularidades já que nos acompanhas há algum tempo e conheces alguns camaradas da tertúlia, como aliás afirmas.
Entre a data de envio desta tua mensagem, 3 de Março, e hoje, alguns dias passaram em absoluto silêncio, mas a demora deveu-se a um pico de trabalho e a alguma falta de tempo disponível. Vais desculpar, tenho a certeza.
Em nome da tertúlia, vai, direitinho para ti, um abraço.
Carlos Vinhal
__________
Notas de CV:
(*) Vd. poste de 20 de Novembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5308: O Nosso Livro de Visitas (70): Daniel de Matos, ex-Fur Mil, CCAÇ 3518 (Gadamael, 1972/74)
Vd. último poste de Daniel Matos de 24 de Fevereiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5879: Convívios (106): Encontro anual do pessoal da CCAÇ 3518 (Gadamael e Guidaje, 1972/74), dia 15 de Maio de 2010, em Coimbra (Daniel Matos)
Vd. último poste da série Tabanca Grande de 12 de Março de 2010 > Guiné 63/74 - P5977: Tabanca Grande (207): Jorge Simão, de S. João da Madeira, ex-1º Cabo Escriturário, CART 2477, Cufar, 1969/71
Caro Camarada
Conforme prometi, aqui estou a "pagar o ingresso" e a enviar as fotografias para formalizar a adesão à Tabanca Grande.
Junto também o prometido texto, em "word", reconhecendo que tem uma dimensão desapropriada para o blogue, mas vocês utilizá-lo-ão (ou não) como melhor entenderem.
Envio também mais duas fotografias (não tenho outras digitalizadas) que podem ajudar a ilustrar o texto: uma é a da messe de Gadamael, depois de receber obras de beneficiação já em 1973 (pouco antes de ser destruída... no mesmo edifício funcionava a secretaria e, por trás, as transmissões); a outra é de uma equipa de voleibol de "Os Marados" que é referida a 27 de Maio de 1973 durante o funeral do Cabo Telo, (corpo recentemente trasladado de Guidaje para o Paúl do Mar, Madeira).
A legenda (identificação da equipa) é a seguinte.
Equipa de voleibol de Os Marados de Gadamael (da esquerda para a direita): primeiro caboGabriel Telo, furriel miliciano António Quaresma (ambos falecidos), soldado condutor Albino Caldas, capitão miliciano Manuel de Sousa, furriel miliciano Daniel de Matos, furriel miliciano Ângelo Silva e alferes miliciano António Monteiro.
Qualquer coisa que falte, por favor contactem-me.
Cumprimentos
Daniel de Matos
2. Comentário de CV:
Caro Daniel Matos.
Não te dou propriamente as boas-vindas, embora te esteja a receber formalmente na Tabanca, porque tens já o estatuto de tertuliano desde Novembro do ano passado, quando foste falado num poste da série O Nosso Livro de Visitas*.
Podemos até lembrar:
Mensagem de 18 do corrente, do Daniel Matos, ex-Fur Mil da Companhia Independente, madeirense, CCAÇ 3518 (Gadamael, 1971/74)
Caro Luís Graça,
Há pouco enviei um comentário para o blog, mas como não tenho a certeza de que a respectiva expedição se tenha realizado a contento, transcrevo-a por esta via.
Li, entretanto, a sua observação sobre um antigo convite que me fez para colaborar com o blog, escrevendo alguns testemunhos do tempo da guerra, nomeadamente sobre os Marados de Gadamael, e ao qual nunca cheguei a responder. Não foi por preguiça, terá sido por falta de disposição e de tempo, pois além da actividade profissional dedico-me a outras, não me sobrando muitas horas para a família, sequer.
Curiosamente, em tempos idos, uma dessas actividades foi precisamente a escrita, procurando passar para o papel uma espécie de "História da Companhia".
Porém, nos convívios anuais que efectuamos no continente (a 3518 era uma Companhia madeirense) fui verificando que um mesmo acontecimento era relatado por cada um de nós de maneiras por vezes bem diferentes e, não querendo fazer prevalecer o que os meus olhos viram e a minha leitura dos factos, resolvi alterar tudo para o campo da ficção, seguindo cada personagem outros caminhos, ao sabor da pena.
Isso veio a dar origem a um livro que estou agora a rever. Alguns contos foram publicados de forma avulsa, e premiados por alguns municípios. Mas como ficção pura, não creio que seja matéria que interesse ao blogue.
Também o meu amigo de longa data A. Marques Lopes, membro do blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné, já insistiu comigo para escrever e eu nunca correspondi a esse pedido. O mesmo agora o fez o ex-alferes Juvenal Candeias (da 3520, de Cacine).
Penso em breve libertar-me de algumas ocupações e, mal isso aconteça, prometo compartilhar algumas memórias convosco.
Cordiais saudações.
Daniel de Matos
Assim, este poste ficará, por assim dizer, para te conhecermos um pouco melhor antes de começarmos a publicar o teu texto com a História da tua Unidade.
Julgo que não preciso de muitas particularidades já que nos acompanhas há algum tempo e conheces alguns camaradas da tertúlia, como aliás afirmas.
Entre a data de envio desta tua mensagem, 3 de Março, e hoje, alguns dias passaram em absoluto silêncio, mas a demora deveu-se a um pico de trabalho e a alguma falta de tempo disponível. Vais desculpar, tenho a certeza.
Em nome da tertúlia, vai, direitinho para ti, um abraço.
Carlos Vinhal
__________
Notas de CV:
(*) Vd. poste de 20 de Novembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5308: O Nosso Livro de Visitas (70): Daniel de Matos, ex-Fur Mil, CCAÇ 3518 (Gadamael, 1972/74)
Vd. último poste de Daniel Matos de 24 de Fevereiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5879: Convívios (106): Encontro anual do pessoal da CCAÇ 3518 (Gadamael e Guidaje, 1972/74), dia 15 de Maio de 2010, em Coimbra (Daniel Matos)
Vd. último poste da série Tabanca Grande de 12 de Março de 2010 > Guiné 63/74 - P5977: Tabanca Grande (207): Jorge Simão, de S. João da Madeira, ex-1º Cabo Escriturário, CART 2477, Cufar, 1969/71
Guiné 63/74 - P5980: Notas de leitura (77): Morrer Devagar, de José Martins Garcia, um contista fabuloso (Beja Santos)
1. Mensagem de Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 5 de Março de 2010:
Queridos amigos,
Para a semana “despeço-me” do José Martins Garcia*, tenho duas outras recensões em mãos. Venho novamente lançar um apelo a quem tem as obras do Álvaro Guerra e mas possa disponibilizar.
Faço o mesmo pedido para quem tem livros do Cristóvão de Aguiar, o grande nome da literatura da Guiné a partir dos anos 80. Agradeço antecipadamente a ajuda dos nossos tertulianos.
Um abraço do
Mário
José Martins Garcia, um contista fabuloso
Beja Santos
O crítico Álvaro Manuel Machado ao apreciar o grande livro que é “Lugar de Massacre” apõe-lhe os contos de “Morrer Devagar” como um prolongamento do romance. E são-no, de facto. O romance surgiu em 1975 (convém não esquecer “Katafaraum é uma nação”, publicado em 1974, é seguramente a primeira obra não visada pela censura onde se fala da guerra colonial), os contos “Morrer Devagar”surgem em 1979, tendo como chancela a Arcádia Editora. José Martins Garcia previne que o título tem a ver com o primeiro conto, a obra em si é miscelânea de diferentes intervenções onde uma parte significativa passa por histórias burlescas da Guiné.
Na nota biográfica, consta o seguinte: “José Martins Garcia nasceu na ilha do Pico e veio para Lisboa aos 15 anos de idade. Nesta cidade se licenciou em Filologia Românica. Andou na guerra, foi leitor de Português em Paris, ensinou na Faculdade de Letras de Lisboa, foi director-adjunto do Jornal Novo e até militante do Partido Socialista, do qual se demitiu por fastio invencível. Tem colaborado em vários jornais e revistas: República, A Capital, Jornal do Fundão, A Luta, Diário de Notícias, Colóquio Letras, Vida Mundial. Presentemente não pratica nenhuma religião, não adere a nenhum credo político, não perfilha qualquer sistema filosófico nem apoia qualquer imobilismo estético”. Foi depois professor nos Estados Unidos e ensinava na Universidade dos Açores em 2002, quando faleceu.
Atrevo-me a dizer, até prova em contrário, que o melhor conto escrito sobre a Guiné, por um combatente, se intitula “As suspeitas de um bravo capitão”. Antes de passarmos ao seu conteúdo e a outros contos deste ilustre escritor açoriano desaparecido em 2002, convém recordar que José Martins Garcia se movimenta agilmente entre o paranóico e o demencial, entre o burlesco e o corrosivo, entre a paródia e a pantomima. O chamado antigo combatente tem por vezes dificuldades em aceitar a derrisão, o pandemónio e as construções alucinantes em torno da descrição da guerra. Goste-se ou não, são os muitos os escritores que abrem mão da pilhéria e do grotesco para sulcar ainda mais fundo os enredos de non sense. Martins Garcia é um artífice da escrita carregada de vitríolo e doidice metafórica. Como sobejamente comprovam estes contos.
“As suspeitas dum bravo capitão” abre e engana-nos pela atmosfera de normalidade: “Com a chegada do mês de Dezembro, a situação melhorara a olhos vistos. Os tornados rodopiantes e lamacentos haviam cedido o lugar a uma viração seca, quase apetitosa, que parecia limpar da planura guineense aquele fedor alagado onde se misturava à erosão um subtil, talvez moral, cheiro a cadáver.
Na vila de Catió, lá para o Sul, onde a mosquitagem crescia delirante na estação das chuvas, o batalhão de caçadores tinha agora um novo comandante, o tenente-coronel Galvão, um ser tratável, quase bondoso, um tanto sentimental, um tudo-nada neurasténico antes de se lançar nos uísques. O antigo comandante, o insuportável tenente-coronel Barradas, cuja paranóia crescera na proporção directa do entupimento dos tímpanos, havia sido afastado do activo, finalmente”.
Depois o escritor descreve a população de Catió, os comerciantes, o administrador, o enfermeiro e o agente da PIDE, bem como o técnico da central eléctrica. Os fulas vivendo em Priame, sob autoridade feudal de João Baker Jaló, alferes de segunda linha. Os nalus tinham desertado, ficaram os balantas. No início da guerra, a estratégia passara pela dispersão e fragmentação das tropas; tendo-se revelado desastrosa, o novo comando mandou recolher a Catió as tropas. O autor descreve a situação: “Para aboletar todo este pessoal belicoso, o quartel expandiu-se pelo povoado. Os militares ocuparam tudo o que possuísse tecto, desde casas meio arruinadas até às moradias de comerciantes que, alertados pelos primeiros rumores do invencível terrorismo, rapidamente se haviam transferido para regiões de mais densa população branca, nomeadamente Bissau e Bafatá”. Os ataques eram escassos em Catió, mais frequentes em Bedanda, Cachil e Ganjola. Sendo possível concentrar em Catió todo o batalhão, este voltou a dispersar. Foi de Catió que partiu a expedição sobre o Como, que o escritor açoriano assim averba:
“O ataque à ilha de Como, onde posteriormente se instalaria a chamada companhia do Cachil, nunca foi registado pelos cronistas, talvez porque estes, sempre tão eloquentes em casos de vitória, se desgostam das estrondosas derrocadas... a Força Aérea cumpriu o seu dever, descarregando sobre os objectivos o arsenal estipulado. Para nada! Os abrigos subterrâneos da ilha do Como, construídos, dizia-se pelos soldados do Hitler, em certa fase da Segunda Guerra Mundial, resistiam bem a qualquer bombardeamento, não só devido à cortina natural da vegetação como pela consistência do material, coisa alemã, coisa inexpugnável, ali mandada cavar pelo Hitler... Depois da Força Aérea, coube a vez à Artilharia, ali classicamente postada para cobrir o avanço da Cavalaria. A Artilharia cumpriu a sua missão, despejando sobre a ilha sinistra a quantidade estipulada de material ardente, sem grande precisão, aliás, pois o alvo flutuava nessa latitude onde as marés esticam e encurtam a terra em vários milhares de quilómetros quadrados. A Cavalaria entrou nas lanchas da Marinha e, sob a protecção da Artilharia, escorregou para o lamaçal desconhecido. A Infantaria, finalmente chamada a reconquistar com seu pé clássico o terreno rebelde, saltou no vazio, atolou-se, afundou-se, emaranhou-se e alguns dos nossos mais bravos soldados crucificaram-se a si mesmo no matagal.
E então o inimigo invisível foi abatendo misericordiosamente os feridos, enquanto a Marinha dava por cumprida a delicada missão, a Artilharia cessava a actuação segunda bem conhecidas regras e a Cavalaria jazia em veículos inoperantes. Havia muito que a Força Aérea despejara seus inócuos carregamentos, pois a noite caíra, repentina, e só os moribundos, sem cronista de serviço, se esvaiam sobre a lama que o tempo não guardou”. Dois anos depois, o exército instalou-se no Como, em Cachil, sem se perceber lá muito bem a função. O quartel passou a ser uma permanente ameaça de desterro. Martins Garcia prepara assim a sua trovoada pirotécnica:
“Foi quando chegou a Catió, em escala para Bissau o doente capitão Lourenço, ex-comandante efectivo do Cachil. As suas faces chupadas não excluíam de forma alguma a hipótese de doença ruim... o comandante Galvão apressou-se a enviar para Bissau o hóspede impertinente, “para ele se curar”. Do Cachil não vinham nem bons ventos nem bons hóspedes, nem sequer boas notícias. A última irregularidade cometida por essas bandas rezava da alquimia operada no interior de um barril, cujo conteúdo vínico se revelara água. O comandante Galvão abominava as pequenas trapaças tão frequentes na carreira que escolhera. E, por pensar em reabastecimentos, fez-lhe espécie, pela primeira vez, o facto de o capitão Clemente, oficial de Cavalaria, se ter enconchado na manutenção, superintendendo na batata, no vinho, no arroz, no bacalhau, como se fosse um desses da Administração, um “padeiro”. O capitão Clemente empalideceu quando soube da decisão do tenente-coronel Galvão: mandá-lo para o Cachil, na qualidade de comandante interino, encarregando-o, mui honrosamente, de apurar a verdade acerca da transformação do vinho em água, alquimia tanto mais escandalosa quanto invertia a regra dos Evangelhos.
– Mas, meu comandante – gaguejou o capitão Clemente – logo agora, que a minha mulher veio para cá...
– Mas você fica lá só uns dias, homem! Há meses que não se ouve um tiro para aquelas bandas... a situação melhorou é o que toda a gente diz.
O capitão Clemente partiu desmoralizado e começou a portar-se mal diante da escolta que o acompanhou ao cais, chegando ao ponto de gemer de voz embargada:
– Agora é que não torno a ver a minha mulher nem os meus filhos...
Ao cair brusco da noite, encontrava-se no seu novo e miserável posto de comando, enclausurado pelo arame farpado, remoendo angústias, ao centro do improvisado quartel: um abrigo subterrâneo com duas toscas divisões, uma saleta quase desmobilada, separada do quarto por uma vedação de bambu mal entrançado... Mais tarde quando deu as boas noites aos alferes e se fechou no quarto, voltaram-lhe à memória as fábulas incertas, tão incertas quanto divulgadas em terras da Guiné: dezenas de mortos e feridos: a Cavalaria a atolar-se, a Artilharia a esquivar-se, a Infantaria a imolar-se. Às duas da manhã, porque era preciso poupar combustível, as lâmpadas extinguiram-se e a geradora deixou de arquejar. O capitão Clemente chamou a sentinela e recomendou-lhe vigilância; que não abandonasse a porta da tabanca. A sentinela limitou-se a acenar afirmativamente. Que imbecis! E as latrinas haviam mergulhado no escuro, lá para o outro extremo. Que criminosos! Nem havia uma privada para uso privado do comandante.
O capitão Clemente começou a sentir dores de barriga. Tinha medo, é certo; mas a causa daquelas cólicas devia ser o mau estão do jantar: uns feijões embrulhados em farrapos de carne duvidosa... o capitão Clemente dormiu pessimamente, revolvendo-se na cama dura, sentir atolar na água negra do canal. Muito cedo, a passarada desatou a chilrear. O Sol, finalmente, viria trazer-lhe um pouco de alento, depois do horrível negrume daquela noite memorável.
O capitão espreitou por uma nesga da porta e avistou a sentinela. Com um berro indignado, onde perpassavam a aspereza e o peso do comando, mandou que o militar se aproximasse:
– Entra, que temos de conversar!
O soldado mal abria os olhos atordoados, pois acabara de render um camarada:
– Estás a ver aquilo, pá?
Hirto, solene, o capitão Clemente apontava um canto do quarto, onde alguns cagalhões se cavalgavam.
– Põe-te em sentido! – uivou a indignação do bravo capitão Clemente.
O soldado obedeceu, boquiaberto.
– E agora – rematou o bravo capitão, mais que fera – responde! Quem foi o filho da puta que fez uma coisa destas?
Não fica por aqui o chocarreiro virulento, de Martins Garcia, há mais contos para contar, em “Morrer Devagar”.
(Continua)
__________
Notas de CV:
(*) Vd. poste de 3 de Março de 2010 > Guiné 63/74 - P5924: Notas de leitura (72): Lugar de Massacre, de José Martins Garcia (Beja Santos)
Vd. último poste da série de 8 de Março de 2010 > Guiné 63/74 - P5952: Notas de leitura (76): Kikia Matcho, de Filinto de Barros (Beja Santos)
Queridos amigos,
Para a semana “despeço-me” do José Martins Garcia*, tenho duas outras recensões em mãos. Venho novamente lançar um apelo a quem tem as obras do Álvaro Guerra e mas possa disponibilizar.
Faço o mesmo pedido para quem tem livros do Cristóvão de Aguiar, o grande nome da literatura da Guiné a partir dos anos 80. Agradeço antecipadamente a ajuda dos nossos tertulianos.
Um abraço do
Mário
José Martins Garcia, um contista fabuloso
Beja Santos
O crítico Álvaro Manuel Machado ao apreciar o grande livro que é “Lugar de Massacre” apõe-lhe os contos de “Morrer Devagar” como um prolongamento do romance. E são-no, de facto. O romance surgiu em 1975 (convém não esquecer “Katafaraum é uma nação”, publicado em 1974, é seguramente a primeira obra não visada pela censura onde se fala da guerra colonial), os contos “Morrer Devagar”surgem em 1979, tendo como chancela a Arcádia Editora. José Martins Garcia previne que o título tem a ver com o primeiro conto, a obra em si é miscelânea de diferentes intervenções onde uma parte significativa passa por histórias burlescas da Guiné.
Na nota biográfica, consta o seguinte: “José Martins Garcia nasceu na ilha do Pico e veio para Lisboa aos 15 anos de idade. Nesta cidade se licenciou em Filologia Românica. Andou na guerra, foi leitor de Português em Paris, ensinou na Faculdade de Letras de Lisboa, foi director-adjunto do Jornal Novo e até militante do Partido Socialista, do qual se demitiu por fastio invencível. Tem colaborado em vários jornais e revistas: República, A Capital, Jornal do Fundão, A Luta, Diário de Notícias, Colóquio Letras, Vida Mundial. Presentemente não pratica nenhuma religião, não adere a nenhum credo político, não perfilha qualquer sistema filosófico nem apoia qualquer imobilismo estético”. Foi depois professor nos Estados Unidos e ensinava na Universidade dos Açores em 2002, quando faleceu.
Atrevo-me a dizer, até prova em contrário, que o melhor conto escrito sobre a Guiné, por um combatente, se intitula “As suspeitas de um bravo capitão”. Antes de passarmos ao seu conteúdo e a outros contos deste ilustre escritor açoriano desaparecido em 2002, convém recordar que José Martins Garcia se movimenta agilmente entre o paranóico e o demencial, entre o burlesco e o corrosivo, entre a paródia e a pantomima. O chamado antigo combatente tem por vezes dificuldades em aceitar a derrisão, o pandemónio e as construções alucinantes em torno da descrição da guerra. Goste-se ou não, são os muitos os escritores que abrem mão da pilhéria e do grotesco para sulcar ainda mais fundo os enredos de non sense. Martins Garcia é um artífice da escrita carregada de vitríolo e doidice metafórica. Como sobejamente comprovam estes contos.
“As suspeitas dum bravo capitão” abre e engana-nos pela atmosfera de normalidade: “Com a chegada do mês de Dezembro, a situação melhorara a olhos vistos. Os tornados rodopiantes e lamacentos haviam cedido o lugar a uma viração seca, quase apetitosa, que parecia limpar da planura guineense aquele fedor alagado onde se misturava à erosão um subtil, talvez moral, cheiro a cadáver.
Na vila de Catió, lá para o Sul, onde a mosquitagem crescia delirante na estação das chuvas, o batalhão de caçadores tinha agora um novo comandante, o tenente-coronel Galvão, um ser tratável, quase bondoso, um tanto sentimental, um tudo-nada neurasténico antes de se lançar nos uísques. O antigo comandante, o insuportável tenente-coronel Barradas, cuja paranóia crescera na proporção directa do entupimento dos tímpanos, havia sido afastado do activo, finalmente”.
Depois o escritor descreve a população de Catió, os comerciantes, o administrador, o enfermeiro e o agente da PIDE, bem como o técnico da central eléctrica. Os fulas vivendo em Priame, sob autoridade feudal de João Baker Jaló, alferes de segunda linha. Os nalus tinham desertado, ficaram os balantas. No início da guerra, a estratégia passara pela dispersão e fragmentação das tropas; tendo-se revelado desastrosa, o novo comando mandou recolher a Catió as tropas. O autor descreve a situação: “Para aboletar todo este pessoal belicoso, o quartel expandiu-se pelo povoado. Os militares ocuparam tudo o que possuísse tecto, desde casas meio arruinadas até às moradias de comerciantes que, alertados pelos primeiros rumores do invencível terrorismo, rapidamente se haviam transferido para regiões de mais densa população branca, nomeadamente Bissau e Bafatá”. Os ataques eram escassos em Catió, mais frequentes em Bedanda, Cachil e Ganjola. Sendo possível concentrar em Catió todo o batalhão, este voltou a dispersar. Foi de Catió que partiu a expedição sobre o Como, que o escritor açoriano assim averba:
“O ataque à ilha de Como, onde posteriormente se instalaria a chamada companhia do Cachil, nunca foi registado pelos cronistas, talvez porque estes, sempre tão eloquentes em casos de vitória, se desgostam das estrondosas derrocadas... a Força Aérea cumpriu o seu dever, descarregando sobre os objectivos o arsenal estipulado. Para nada! Os abrigos subterrâneos da ilha do Como, construídos, dizia-se pelos soldados do Hitler, em certa fase da Segunda Guerra Mundial, resistiam bem a qualquer bombardeamento, não só devido à cortina natural da vegetação como pela consistência do material, coisa alemã, coisa inexpugnável, ali mandada cavar pelo Hitler... Depois da Força Aérea, coube a vez à Artilharia, ali classicamente postada para cobrir o avanço da Cavalaria. A Artilharia cumpriu a sua missão, despejando sobre a ilha sinistra a quantidade estipulada de material ardente, sem grande precisão, aliás, pois o alvo flutuava nessa latitude onde as marés esticam e encurtam a terra em vários milhares de quilómetros quadrados. A Cavalaria entrou nas lanchas da Marinha e, sob a protecção da Artilharia, escorregou para o lamaçal desconhecido. A Infantaria, finalmente chamada a reconquistar com seu pé clássico o terreno rebelde, saltou no vazio, atolou-se, afundou-se, emaranhou-se e alguns dos nossos mais bravos soldados crucificaram-se a si mesmo no matagal.
E então o inimigo invisível foi abatendo misericordiosamente os feridos, enquanto a Marinha dava por cumprida a delicada missão, a Artilharia cessava a actuação segunda bem conhecidas regras e a Cavalaria jazia em veículos inoperantes. Havia muito que a Força Aérea despejara seus inócuos carregamentos, pois a noite caíra, repentina, e só os moribundos, sem cronista de serviço, se esvaiam sobre a lama que o tempo não guardou”. Dois anos depois, o exército instalou-se no Como, em Cachil, sem se perceber lá muito bem a função. O quartel passou a ser uma permanente ameaça de desterro. Martins Garcia prepara assim a sua trovoada pirotécnica:
“Foi quando chegou a Catió, em escala para Bissau o doente capitão Lourenço, ex-comandante efectivo do Cachil. As suas faces chupadas não excluíam de forma alguma a hipótese de doença ruim... o comandante Galvão apressou-se a enviar para Bissau o hóspede impertinente, “para ele se curar”. Do Cachil não vinham nem bons ventos nem bons hóspedes, nem sequer boas notícias. A última irregularidade cometida por essas bandas rezava da alquimia operada no interior de um barril, cujo conteúdo vínico se revelara água. O comandante Galvão abominava as pequenas trapaças tão frequentes na carreira que escolhera. E, por pensar em reabastecimentos, fez-lhe espécie, pela primeira vez, o facto de o capitão Clemente, oficial de Cavalaria, se ter enconchado na manutenção, superintendendo na batata, no vinho, no arroz, no bacalhau, como se fosse um desses da Administração, um “padeiro”. O capitão Clemente empalideceu quando soube da decisão do tenente-coronel Galvão: mandá-lo para o Cachil, na qualidade de comandante interino, encarregando-o, mui honrosamente, de apurar a verdade acerca da transformação do vinho em água, alquimia tanto mais escandalosa quanto invertia a regra dos Evangelhos.
– Mas, meu comandante – gaguejou o capitão Clemente – logo agora, que a minha mulher veio para cá...
– Mas você fica lá só uns dias, homem! Há meses que não se ouve um tiro para aquelas bandas... a situação melhorou é o que toda a gente diz.
O capitão Clemente partiu desmoralizado e começou a portar-se mal diante da escolta que o acompanhou ao cais, chegando ao ponto de gemer de voz embargada:
– Agora é que não torno a ver a minha mulher nem os meus filhos...
Ao cair brusco da noite, encontrava-se no seu novo e miserável posto de comando, enclausurado pelo arame farpado, remoendo angústias, ao centro do improvisado quartel: um abrigo subterrâneo com duas toscas divisões, uma saleta quase desmobilada, separada do quarto por uma vedação de bambu mal entrançado... Mais tarde quando deu as boas noites aos alferes e se fechou no quarto, voltaram-lhe à memória as fábulas incertas, tão incertas quanto divulgadas em terras da Guiné: dezenas de mortos e feridos: a Cavalaria a atolar-se, a Artilharia a esquivar-se, a Infantaria a imolar-se. Às duas da manhã, porque era preciso poupar combustível, as lâmpadas extinguiram-se e a geradora deixou de arquejar. O capitão Clemente chamou a sentinela e recomendou-lhe vigilância; que não abandonasse a porta da tabanca. A sentinela limitou-se a acenar afirmativamente. Que imbecis! E as latrinas haviam mergulhado no escuro, lá para o outro extremo. Que criminosos! Nem havia uma privada para uso privado do comandante.
O capitão Clemente começou a sentir dores de barriga. Tinha medo, é certo; mas a causa daquelas cólicas devia ser o mau estão do jantar: uns feijões embrulhados em farrapos de carne duvidosa... o capitão Clemente dormiu pessimamente, revolvendo-se na cama dura, sentir atolar na água negra do canal. Muito cedo, a passarada desatou a chilrear. O Sol, finalmente, viria trazer-lhe um pouco de alento, depois do horrível negrume daquela noite memorável.
O capitão espreitou por uma nesga da porta e avistou a sentinela. Com um berro indignado, onde perpassavam a aspereza e o peso do comando, mandou que o militar se aproximasse:
– Entra, que temos de conversar!
O soldado mal abria os olhos atordoados, pois acabara de render um camarada:
– Estás a ver aquilo, pá?
Hirto, solene, o capitão Clemente apontava um canto do quarto, onde alguns cagalhões se cavalgavam.
– Põe-te em sentido! – uivou a indignação do bravo capitão Clemente.
O soldado obedeceu, boquiaberto.
– E agora – rematou o bravo capitão, mais que fera – responde! Quem foi o filho da puta que fez uma coisa destas?
Não fica por aqui o chocarreiro virulento, de Martins Garcia, há mais contos para contar, em “Morrer Devagar”.
(Continua)
__________
Notas de CV:
(*) Vd. poste de 3 de Março de 2010 > Guiné 63/74 - P5924: Notas de leitura (72): Lugar de Massacre, de José Martins Garcia (Beja Santos)
Vd. último poste da série de 8 de Março de 2010 > Guiné 63/74 - P5952: Notas de leitura (76): Kikia Matcho, de Filinto de Barros (Beja Santos)
Guiné 63/74 - P5979: Memórias e histórias minhas (José da Câmara) (14): O acampamento na Mata dos Madeiros: um buraco no meio do nada
1. Mensagem de José Câmara (ex-Fur Mil da CCAÇ 3327 e Pel Caç Nat 56, Guiné, 1971/73), com data de 5 de Março de 2010:
Caro e amigo Carlos Vinhal,
Junto encontrarás a continuação do meu roteiro por terras da Guiné.
Neste caso pela Mata dos Madeiros, onde os corpos se confundiam com a terra vermelha. Foi um tempo difícil para nós.
Aqui, nesta mata, aprendi o verdadeiro sentido das palavras camaradagem e amizade, comando e comandados.
Hoje, trinta e sete anos depois, continuo a recordar a cartilha de então.
Para ti e para todos os camaradas, com muita amizade, um abraço.
José Câmara
Memórias e histórias minhas (14)
O acampamento na Mata dos Madeiros: um buraco no meio do nada
A Mata dos Madeiros não era mais que uma faixa de terreno que dividia as matas da Caboiana e do Balenguerez. Foi nesta mata, na estrada velha, tipo picada, que o General Spínola ter-se-ía encontrado com os gurrilheiros do Chão Manjaco, no processo que levaria a uma possível entrega daqueles, o que não veio a verificar-se. Esse processo, como sabemos, acabou com a morte de três majores e um alferes.
Entre aquelas duas míticas matas, avançava a nova estrada Teixeira Pinto/Cacheu. A CCaç 3327 era uma das forças de intervenção do CAOP 1, então em Teixeira Pinto. Durante a nossa intervenção na estrada, contámos com a protecção afastada de uma força da Companhia de Caçadores 2791, da Companhia de Comandos 26, do Destacamento de Fuzileiros 13, e de uma força da Companhia de Caçadores Pára-quedistas (se a memória me serve bem era a 122, ficando sujeito a correcção).
Localização da estrada Teixeira Pinto/Cacheu
Passada que foi a primeira noite, em plena Mata dos Madeiros, à guerra com os mosquitos, o amanhecer veio-nos mostrar aquilo que seria a nossa vida a partir daquele momento.
O acampamento, um buraco no meio do nada, não era mais que uma terraplanagem em rectângulo sensivelmente do tamanho de um campo de futebol. A protecção física do acampamento era formada por duas grandes barreiras de terra feitas com as máquinas da companhia empreiteira da obra. Era o que tínhamos!
Foto 1 > Um aspecto de um dos acampamentos da CCaç 3327 na Mata dos Madeiros. Ao fundo, na barreira de trás e da frente já é possível verem-se alguns postos de sentinela prontos, e um em construção (em primeiro plano). Ao fundo, a tenda grande era a cozinha de campanha. Na frente, na tenda da esquerda estava montado o Posto de Transmissões com a antena montada na frente. A tenda mais pequena resguardava a água potável (?) do sol. A tenda a seguir era o Posto de Comando (Cap. Rogério Alves).
O arvoredo ao fundo seria mais tarde cortado com a passagem da estrada junto à entrada para o acampamento.
Logisticamente, as nossas malas continuavam aos montes por todos os lados, as barracas continuavam por montar, e tínhamos que dar início às primeiras necessidades de sobrevivência. Havia que definir o plano e implementar a defesa próxima do acampamento, montar as antenas de transmissões, montar a cozinha de campanha, preparar os piquetes para o corte de lenha e escoltas ao Bachile para reabastecimento de água, pão e correspondência, e possíveis evacuações de doentes e feridos. Depois houve que definir os grupos a seguir para o mato na defesa afastada do acampamento, picagem da abertura da estrada e defesa próxima das máquinas. Os arranjos dos postos de sentinela, a preparação de um local que servisse para montar barris com água para higiene, o espaldar para o morteiro 120 e a localização da Capela ao Sagrado Coração de Maria também foram enquadrados.
Foto 2 > Pormenor desta fotografia: a boa disposição dos soldados António Cardoso, Silvestre Júnior e Avelar Ventura, todos da minha Secção. Não consigo identificar o indivíduo de camisa branca. Cada uma destas instalações(?) albergavam uma equipa.
Como missão principal, tínhamos a protecção da estrada que estava a ser construída entre Teixeira Pinto e o Cacheu, e dos cerca de 800 africanos que procediam ao corte do arvoredo no itinerário por onde passava a estrada.
Essa missão seria assegurada da seguinte forma: dois (2) grupos de combate permaneceriam fora do acampamento durante 24 horas a fazer a segurança afastada à estrada e ao acampamento. Dos outros dois grupos, um faria a picagem à estrada e montava segurança próxima às máquinas que trabalhavam na mesma até cerca das 18:00 horas, e o outro mantinha a segurança do acampamento, providenciava a lenha para a cozinha, e fazia as deslocações ao Bachile e, se necessário, a Teixeira Pinto. Cinco secções destes dois grupos faziam a segurança nocturna ao destacamento. Cada posto de sentinela era assegurado por três soldados. Perante este cenário, cada secção tinha, na generalidade, um descanso nocturno ao fim de 12 dias de serviço constante.
Foto 3 > Pormenor da vala onde, muitas vezes, se perdia a paciência à espera de um ataque. Ainda não são visíveis os abrigos
O sucesso da nossa missão dependia muito da disciplina e do respeito, mas sobretudo da compreensão e da entreajuda entre todos. Ali, os salamaleques não eram o mais importante, mas cada um sabia exactamente qual era o seu lugar na hierarquia militar e o papel que desempenhava. A alegria e a camaradagem voltaram ao seio do pessoal pelo simples facto de estarmos fora daquele pesadelo chamado AGBIS. Aqui, na Mata, naquilo que nos competia, nós éramos donos do nosso destino.
Sabíamos que tínhamos uma boa companhia. Agora competía-nos comprovar isso mesmo.
Foto 4 > José Câmara (e a sua Secção preparando um abrigo) A. Ventura (com arma), Cabo Silva (com a pá), Serpa (pequenino), Cabo Leonardes, Serpa (grande) e Massa.
E pusemos mãos à obra!
Com a chegada e a ajuda dos capinadores, começámos a montar o aldeamento da Mata dos Madeiros. As canas de bambu e folhas de palmeira foram o material preferido dos engenheiros da obra. Os aposentos primavam pelas linhas rectilíneas, portas largas e o ar condicionado era providenciado pelas gretas entre folhas de palmeira. As camas de estilo contemporâneo, insufláveis, aos poucos se foram abatendo, acabando por ficarem espalmejadas no barro vermelho da área. Com o andar das semanas, aquele barro acabou por ficar moldado com o nosso corpo.
Foto 5 > José Câmara > Um pormenor do meu sumptuoso aposento. Como nota a limpeza das nossas miseráveis instalações!
Deixem-me ler-vos ao que então escrevi à minha madrihna de guerra.
Carta de 10 de Abril, 1971 (a última vez que escrevera tinha sido a 1 de Abril, ainda de Bissau):
Já me encontro no mato, num acampamento em que as barracas são em folha de palmeira. Dorme-se em colchões, tipo praia, deitados no chão. Connosco também temos cerca de 800 africanos. Entre eles, possivelmente, haverá alguns turras. A alimentação é muito à base de ração de combate.
De vez em quando, vamos para as valas esperar um ataque. Para a lenha vamos com um machado numa mão e a espingarda na outra. Temos que fazer escoltas, rondas nocturnas, e evacuações de doentes. Para as necessidades fisiológicas, só mesmo de espingarda. Dia sim, dia não, vou para o mato.
Enfim, esta é a história de um dos muitos militares que se encontram na Guiné. Não é melhor nem pior... tudo o mesmo. Defender algo que nem sei se valerá a pena.
Ainda não sei o que são tiros...
Foto 6 > Na minha Secção todos os trabalhos eram feitos em conjunto. Aqui estou cavando e ajudando a montar os pilares onde seriam colocados os bidões (em sistema de vazos comunicantes) de água para chuveiro.
No Sábado de Aleluía, 10 de Abril de 1971, pelas 11 horas da manhã, fazia a minha primeira saída de 24 horas. Essa saída ficar-me-ía na memória. Porque era a minha primeira grande saída, e porque foi cometido um erro que nos poderia ter ficado caro.
Coisas de periquitos!
José Câmara
__________
Nota de CV:
Vd. último poste da série de 21 de Fevereiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5862: Memórias e histórias minhas (José da Câmara) (13): Um buraco no inferno da Mata dos Madeiros
Caro e amigo Carlos Vinhal,
Junto encontrarás a continuação do meu roteiro por terras da Guiné.
Neste caso pela Mata dos Madeiros, onde os corpos se confundiam com a terra vermelha. Foi um tempo difícil para nós.
Aqui, nesta mata, aprendi o verdadeiro sentido das palavras camaradagem e amizade, comando e comandados.
Hoje, trinta e sete anos depois, continuo a recordar a cartilha de então.
Para ti e para todos os camaradas, com muita amizade, um abraço.
José Câmara
Memórias e histórias minhas (14)
O acampamento na Mata dos Madeiros: um buraco no meio do nada
A Mata dos Madeiros não era mais que uma faixa de terreno que dividia as matas da Caboiana e do Balenguerez. Foi nesta mata, na estrada velha, tipo picada, que o General Spínola ter-se-ía encontrado com os gurrilheiros do Chão Manjaco, no processo que levaria a uma possível entrega daqueles, o que não veio a verificar-se. Esse processo, como sabemos, acabou com a morte de três majores e um alferes.
Entre aquelas duas míticas matas, avançava a nova estrada Teixeira Pinto/Cacheu. A CCaç 3327 era uma das forças de intervenção do CAOP 1, então em Teixeira Pinto. Durante a nossa intervenção na estrada, contámos com a protecção afastada de uma força da Companhia de Caçadores 2791, da Companhia de Comandos 26, do Destacamento de Fuzileiros 13, e de uma força da Companhia de Caçadores Pára-quedistas (se a memória me serve bem era a 122, ficando sujeito a correcção).
Localização da estrada Teixeira Pinto/Cacheu
Passada que foi a primeira noite, em plena Mata dos Madeiros, à guerra com os mosquitos, o amanhecer veio-nos mostrar aquilo que seria a nossa vida a partir daquele momento.
O acampamento, um buraco no meio do nada, não era mais que uma terraplanagem em rectângulo sensivelmente do tamanho de um campo de futebol. A protecção física do acampamento era formada por duas grandes barreiras de terra feitas com as máquinas da companhia empreiteira da obra. Era o que tínhamos!
Foto 1 > Um aspecto de um dos acampamentos da CCaç 3327 na Mata dos Madeiros. Ao fundo, na barreira de trás e da frente já é possível verem-se alguns postos de sentinela prontos, e um em construção (em primeiro plano). Ao fundo, a tenda grande era a cozinha de campanha. Na frente, na tenda da esquerda estava montado o Posto de Transmissões com a antena montada na frente. A tenda mais pequena resguardava a água potável (?) do sol. A tenda a seguir era o Posto de Comando (Cap. Rogério Alves).
O arvoredo ao fundo seria mais tarde cortado com a passagem da estrada junto à entrada para o acampamento.
Logisticamente, as nossas malas continuavam aos montes por todos os lados, as barracas continuavam por montar, e tínhamos que dar início às primeiras necessidades de sobrevivência. Havia que definir o plano e implementar a defesa próxima do acampamento, montar as antenas de transmissões, montar a cozinha de campanha, preparar os piquetes para o corte de lenha e escoltas ao Bachile para reabastecimento de água, pão e correspondência, e possíveis evacuações de doentes e feridos. Depois houve que definir os grupos a seguir para o mato na defesa afastada do acampamento, picagem da abertura da estrada e defesa próxima das máquinas. Os arranjos dos postos de sentinela, a preparação de um local que servisse para montar barris com água para higiene, o espaldar para o morteiro 120 e a localização da Capela ao Sagrado Coração de Maria também foram enquadrados.
Foto 2 > Pormenor desta fotografia: a boa disposição dos soldados António Cardoso, Silvestre Júnior e Avelar Ventura, todos da minha Secção. Não consigo identificar o indivíduo de camisa branca. Cada uma destas instalações(?) albergavam uma equipa.
Como missão principal, tínhamos a protecção da estrada que estava a ser construída entre Teixeira Pinto e o Cacheu, e dos cerca de 800 africanos que procediam ao corte do arvoredo no itinerário por onde passava a estrada.
Essa missão seria assegurada da seguinte forma: dois (2) grupos de combate permaneceriam fora do acampamento durante 24 horas a fazer a segurança afastada à estrada e ao acampamento. Dos outros dois grupos, um faria a picagem à estrada e montava segurança próxima às máquinas que trabalhavam na mesma até cerca das 18:00 horas, e o outro mantinha a segurança do acampamento, providenciava a lenha para a cozinha, e fazia as deslocações ao Bachile e, se necessário, a Teixeira Pinto. Cinco secções destes dois grupos faziam a segurança nocturna ao destacamento. Cada posto de sentinela era assegurado por três soldados. Perante este cenário, cada secção tinha, na generalidade, um descanso nocturno ao fim de 12 dias de serviço constante.
Foto 3 > Pormenor da vala onde, muitas vezes, se perdia a paciência à espera de um ataque. Ainda não são visíveis os abrigos
O sucesso da nossa missão dependia muito da disciplina e do respeito, mas sobretudo da compreensão e da entreajuda entre todos. Ali, os salamaleques não eram o mais importante, mas cada um sabia exactamente qual era o seu lugar na hierarquia militar e o papel que desempenhava. A alegria e a camaradagem voltaram ao seio do pessoal pelo simples facto de estarmos fora daquele pesadelo chamado AGBIS. Aqui, na Mata, naquilo que nos competia, nós éramos donos do nosso destino.
Sabíamos que tínhamos uma boa companhia. Agora competía-nos comprovar isso mesmo.
Foto 4 > José Câmara (e a sua Secção preparando um abrigo) A. Ventura (com arma), Cabo Silva (com a pá), Serpa (pequenino), Cabo Leonardes, Serpa (grande) e Massa.
E pusemos mãos à obra!
Com a chegada e a ajuda dos capinadores, começámos a montar o aldeamento da Mata dos Madeiros. As canas de bambu e folhas de palmeira foram o material preferido dos engenheiros da obra. Os aposentos primavam pelas linhas rectilíneas, portas largas e o ar condicionado era providenciado pelas gretas entre folhas de palmeira. As camas de estilo contemporâneo, insufláveis, aos poucos se foram abatendo, acabando por ficarem espalmejadas no barro vermelho da área. Com o andar das semanas, aquele barro acabou por ficar moldado com o nosso corpo.
Foto 5 > José Câmara > Um pormenor do meu sumptuoso aposento. Como nota a limpeza das nossas miseráveis instalações!
Deixem-me ler-vos ao que então escrevi à minha madrihna de guerra.
Carta de 10 de Abril, 1971 (a última vez que escrevera tinha sido a 1 de Abril, ainda de Bissau):
Já me encontro no mato, num acampamento em que as barracas são em folha de palmeira. Dorme-se em colchões, tipo praia, deitados no chão. Connosco também temos cerca de 800 africanos. Entre eles, possivelmente, haverá alguns turras. A alimentação é muito à base de ração de combate.
De vez em quando, vamos para as valas esperar um ataque. Para a lenha vamos com um machado numa mão e a espingarda na outra. Temos que fazer escoltas, rondas nocturnas, e evacuações de doentes. Para as necessidades fisiológicas, só mesmo de espingarda. Dia sim, dia não, vou para o mato.
Enfim, esta é a história de um dos muitos militares que se encontram na Guiné. Não é melhor nem pior... tudo o mesmo. Defender algo que nem sei se valerá a pena.
Ainda não sei o que são tiros...
Foto 6 > Na minha Secção todos os trabalhos eram feitos em conjunto. Aqui estou cavando e ajudando a montar os pilares onde seriam colocados os bidões (em sistema de vazos comunicantes) de água para chuveiro.
No Sábado de Aleluía, 10 de Abril de 1971, pelas 11 horas da manhã, fazia a minha primeira saída de 24 horas. Essa saída ficar-me-ía na memória. Porque era a minha primeira grande saída, e porque foi cometido um erro que nos poderia ter ficado caro.
Coisas de periquitos!
José Câmara
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Nota de CV:
Vd. último poste da série de 21 de Fevereiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5862: Memórias e histórias minhas (José da Câmara) (13): Um buraco no inferno da Mata dos Madeiros
Guiné 63/74 - P5978: Mais casos de insubordinação no teatro de guerra: CCAÇ 5, Canjadude, 25 de Novembro de 1969 (José Corceiro)
1. Comentário de José Corceiro, ex-1.º Cabo TRMS, CCaç 5, Gatos Pretos (Canjadude, 1969/71), ao poste de 11 de Março de 2010 > Guiné 63/74 - P5972: Fajonquito do meu tempo (José Cortes, CCAÇ 3549, 1972/74) (3): O Cap Patrício, a CCAÇ 15, dois casos de insubordinação e ainda o Cherno Baldé
Caro José Cortes
Na CCAÇ 5, dia 8 de Novembro de 1969, houve uma rebelião de todos os militares nativos, [os quais] abandonaram o Aquartelamento de Canjadude em direcção a Nova Lamego. A cadeia hierárquica foi posta em causa pelos militares Africanos… e que trabalhão!
No dia 25 de Novembro de 1969, por volta das 23.30h, um cabo metropolitano quebrou a ordem estabelecida e, de G3 em punho, foi ao abrigo do Capitão (comandante da companhia), desafiando-o com todo o tipo de provocações, a gritar que o queria matar ali fora, à vista de todos.
Um abraço
José Corceiro
2. Comentário de L.G.:
O José Martins, ex-Fur Mil Trms, dos Gatos Pretos, CCAÇ 5 (Canjadude, 1968/70) (*), confirmou-me esta noite, ao telefone, esta história. Ele também esteve implicado nos acontecimentos (ou foi apanhado por eles, por tabela). Confirma que houve uma insubordinação, e que o pessoal africano só terá regressado ao quartel sob a ameaça dos T 6... Não sei se estamos a falar do mesmo caso... Vamos ter cautela com o uso (e o abuso) dos detalhes... Espero que ele, por escrito, nos diga mais pormenores...
Já aqui falámos também do caso de Paúnca (**), contado pelo J. Casimiro Carvalho, com a grave insubordinação dos soldados africanos da CCAÇ 11 (Os Lacraus de Paúnca) que expulsaram, do aquartelamento, os graduados e especialistas, de origem metropolitana... Estamos a falar no pós-25 de Abril. Mas terá havido seguramente mais casos, no Teatro de Operações da Guiné, com tropas quer metropolitanas quer do recrutamento local... O nosso blogue fica aberta a outros comentários, depoimentos, histórias, etc., sobre este tema até aqui pouco explorado (e delicado).
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Notas de L.G.:
(*) Sobre a CCAÇ 5, temos mais de 30 referências (sem contar com a I Série do blogue, que não está indexada: Vd. postes do José Martins e do João Carvalho. Procurar por exemplo por Canjadude, na I Série do Blogue)
(**) 25 de Março de 2007 > Guiné 63/74 - P1625: José Casimiro Carvalho, dos Piratas de Guileje (CCAV 8350) aos Lacraus de Paunca (CCAÇ 11)
Caro José Cortes
Na CCAÇ 5, dia 8 de Novembro de 1969, houve uma rebelião de todos os militares nativos, [os quais] abandonaram o Aquartelamento de Canjadude em direcção a Nova Lamego. A cadeia hierárquica foi posta em causa pelos militares Africanos… e que trabalhão!
No dia 25 de Novembro de 1969, por volta das 23.30h, um cabo metropolitano quebrou a ordem estabelecida e, de G3 em punho, foi ao abrigo do Capitão (comandante da companhia), desafiando-o com todo o tipo de provocações, a gritar que o queria matar ali fora, à vista de todos.
Um abraço
José Corceiro
2. Comentário de L.G.:
O José Martins, ex-Fur Mil Trms, dos Gatos Pretos, CCAÇ 5 (Canjadude, 1968/70) (*), confirmou-me esta noite, ao telefone, esta história. Ele também esteve implicado nos acontecimentos (ou foi apanhado por eles, por tabela). Confirma que houve uma insubordinação, e que o pessoal africano só terá regressado ao quartel sob a ameaça dos T 6... Não sei se estamos a falar do mesmo caso... Vamos ter cautela com o uso (e o abuso) dos detalhes... Espero que ele, por escrito, nos diga mais pormenores...
Já aqui falámos também do caso de Paúnca (**), contado pelo J. Casimiro Carvalho, com a grave insubordinação dos soldados africanos da CCAÇ 11 (Os Lacraus de Paúnca) que expulsaram, do aquartelamento, os graduados e especialistas, de origem metropolitana... Estamos a falar no pós-25 de Abril. Mas terá havido seguramente mais casos, no Teatro de Operações da Guiné, com tropas quer metropolitanas quer do recrutamento local... O nosso blogue fica aberta a outros comentários, depoimentos, histórias, etc., sobre este tema até aqui pouco explorado (e delicado).
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Notas de L.G.:
(*) Sobre a CCAÇ 5, temos mais de 30 referências (sem contar com a I Série do blogue, que não está indexada: Vd. postes do José Martins e do João Carvalho. Procurar por exemplo por Canjadude, na I Série do Blogue)
(**) 25 de Março de 2007 > Guiné 63/74 - P1625: José Casimiro Carvalho, dos Piratas de Guileje (CCAV 8350) aos Lacraus de Paunca (CCAÇ 11)
Guiné 63/74 - P5977: Tabanca Grande (207): Jorge Simão, de S. João da Madeira, ex-1º Cabo Escriturário, CART 2477, Cufar, 1969/71
Fotos: © Jorge Simão (2010). Direitos reservados
1. Mensagem do novo membro da nossa Tabanca Grande (*), Jorge Simão, residente em São João da Madeira, ex-1º Cabo Escriturário, CART 2477, Cufar, 1969/71:
Assunto: pela primeira vez o meu contacto
S.João da Madeira, 5 de Março de 2010
Amigos e companheiros de Guerra, depois de algum tempo que ando aqui a "espreitar" o vosso blogue, sempre resolvi escrever para vocês, mas antes de mais vou-me apresentar:
Sou Jorge Augusto Simão, da Rua dos Viajantes, 214, 1º-Esq., 3700 - 303 S. João da Madeira, fiz parte da CART 2477 do BART 2865 e foi colocado em Cufar e o Batalhão em Catió (foi para a Guiné em Fev / 69 até Dez /70, mas eu ainda aguentei em Bissau até Fev 71, era 1º Cabo Escriturário).
Vou enviar umas fotos em Cufar, mas como é a primeira vez que escrevo, fico-me por aqui, espero umas dicas do Luis Graça, porque espero que este contacto seja o mais correcto. Numa próxima vez escreverei mais em pormenor alguns acontecimentos passados na Guerra.
Um abraço grande deste camarada e combatente da guerra da guiné.
Jorge Simão
2. Comentário de L.G.:
Meu caro Jorge: Em primeiro lugar, põe-te à vontade. Uma vez que já nos "espreitas" há uns tempos, sabes bem que aqui, na nossa Tabanca Grande, ninguém bate a pala a ninguém, respeitamo-nos uns aos outros, é certo, mas tratamo-nos por tu como camaradas que fomos e continuamos a ser...
Não tenho nenhumas dicas especiais para te dar, as nossas regras de convívio são públicas (e respeitadas...), e o que me resta para te dizer é apenas isto: Sê bem vindo, Jorge. Abanca aí, debaixo do nosso poilão, respira fundo, gere as tuas emoções, conta-nos as tuas histórias de Cufar, manda-nos as fotos que achares terem algum valor documental...
Obrigado por teres "ousado" contactar-nos. És, slavo erro, o primeiro camarada da tua companhia a ingressar na nossa Tabanca Grande, o que muito nos honra e te honra a ti, também... O próximo qu entrar já é periquito à tua beira...
Espero poder vir a conhecer-te pessoalmente em breve (por que não, no dia 19 ou 26 de Junho próximo, em Monte Real, no nosso V Encontro Nacional ?). Até lá, vai escrevendo.
Um Alfa Bravo. Luís Graça
PS - Sobre Cufar tens cerca de 110 referências no nosso blogue (II Série)... Clica aqui.
___________
Nota de L.G.:
(*) Último poste da série > 27 de Fevereiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5898: Tabanca Grande (206): Agostinho Gaspar, de Alqueidão, Boavista, Leiria, ex-1-º Cabo Mec Auto, 3ª C/BCAÇ 4612/72 (Mansoa, 1972/74)
Guiné 63/74 - P5976: Notas soltas da CART 643 (Rogério Cardoso) (11): Pilão, a visita obrigatória
1. Décima primeira história do nosso camarada Rogério Cardoso (ex-Fur Mil, CART 643/BART 645, Bissorã, 1964/66), enviada em mensagem do dia 8 de Março de 2010.
Notas soltas da CART 643 (11)
Pilão, uma visita obrigatória
Quem não se lembra do célebre Bairro do Pilão, junto às bombas de gasolina da SACOR.
Bairro situado à saida da cidade de Bissau, junto à estrada para Bissalanca, problemático pois diziam esconder elementos inimigos, que não era difícil porque eles não estavam rotulados, eram iguais em tudo aos restantes residentes.
Estas afirmações têm fundamento, na medida em que em certa altura houve um incêndio de grandes proporções, que se assistiu ao rebentamento de munições e granadas.
Mas não estou escrevendo estas NOTAS SOLTAS para contar o que foi o Pilão, todos nós o sabemos de sobra, mas sim para narrar uma cena que poderia ser fatal para mim.
Certa noite, sendo eu ainda muito "maçarico", tendo talvez pouco mais de um mês de Guiné, e sendo o Café Bento na avenida principal o meu local preferido para depois de jantar, fui abordado por dois ex-combatentes, solicitando a minha permissão para se sentarem nas duas cadeiras junto à minha mesa, já que estava a esplanada cheia.
Claro eu respondi-lhes afirmativamente e de imediato os três bebemos umas cervejas frescas. Eles eram sobejamente conhecidos, um o Fuzileiro de alcunha "Mouraria" e o outro o Pára "Braga", dois elementos que desde logo me pareçeram uns camaradões, mas que mais tarde vim a saber serem individuos complicados no aspecto disciplinar, estavam sempre prontos para a pancada por tudo e por nada.
Entretanto e depois das cervejas, fui convidado por eles para uma visita ao Pilão, havia lá um bailarico com mornas e coladeras e claro, material feminino.
Lá fomos entusiasmados pela juventude dos 23 anos, de facto era verdade e a nossa integração no bailarico foi imediata.
Entretanto o Mouraria arranja logo um desaguizado com um elemento cabo-verdiano que dançava com uma guineense de alcunha "a muda". O nosso amigo queria a toda a força dançar com ela, e palavra puxa palavra, empurrões à mistura e rapidamente passaram à agressão fisica.
Os amigos do cabo-verdiano, cerca de 20, igualmente entraram na luta, assim como o Braga e claro logicamente eu também. A desvantagem como facilmente se percebe era abismável e os dois com conhecimento de sobra, tanto da nossa desvantagem como do terreno para uma fuga com êxito, não esperaram e evaporaram-se em segundos. Eu não tive alternativa, fugi também e rapidamente, sem saber para onde ir, e depois de andar deambulando pelos becos com uma noite com escuridão total, decidi esconder-me debaixo de uma "casa", pois elas estavam implantadas sobre pilotis de madeira.
Depois de uns minutos que me pareciam horas, porque ouvia e sentia que era perseguido por um grupo numeroso, pelas vozes e barulho, aproveitei um silêncio repentino e saí, e eis que senti um pouco mais à frente uma mão no meu braço e uma voz dizendo:
- Oh meu Furriel, venha já comigo.
Senti que era um amigo e segui-o rapidamente, finalmente estava a umas escassas dezenas de metros da estrada principal. Quem me ajudou, estava presenciando a cena de longe, conheceu-me porque eu tinha sido seu instrutor em Santa Margarida uns meses atrás.
Serviu-me de lição, primeiro não me meter em terrenos desconhecidos, segundo saber escolher os companheiros de farra.
RC
__________
Nota de CV:
Vd. último poste da série de 2 de Março de 2010 > Guiné 63/74 - P5921: Notas soltas da CART 643 (Rogério Cardoso) (10): Os patos pagos pelo pato
Notas soltas da CART 643 (11)
Pilão, uma visita obrigatória
Quem não se lembra do célebre Bairro do Pilão, junto às bombas de gasolina da SACOR.
Bairro situado à saida da cidade de Bissau, junto à estrada para Bissalanca, problemático pois diziam esconder elementos inimigos, que não era difícil porque eles não estavam rotulados, eram iguais em tudo aos restantes residentes.
Estas afirmações têm fundamento, na medida em que em certa altura houve um incêndio de grandes proporções, que se assistiu ao rebentamento de munições e granadas.
Mas não estou escrevendo estas NOTAS SOLTAS para contar o que foi o Pilão, todos nós o sabemos de sobra, mas sim para narrar uma cena que poderia ser fatal para mim.
Certa noite, sendo eu ainda muito "maçarico", tendo talvez pouco mais de um mês de Guiné, e sendo o Café Bento na avenida principal o meu local preferido para depois de jantar, fui abordado por dois ex-combatentes, solicitando a minha permissão para se sentarem nas duas cadeiras junto à minha mesa, já que estava a esplanada cheia.
Claro eu respondi-lhes afirmativamente e de imediato os três bebemos umas cervejas frescas. Eles eram sobejamente conhecidos, um o Fuzileiro de alcunha "Mouraria" e o outro o Pára "Braga", dois elementos que desde logo me pareçeram uns camaradões, mas que mais tarde vim a saber serem individuos complicados no aspecto disciplinar, estavam sempre prontos para a pancada por tudo e por nada.
Entretanto e depois das cervejas, fui convidado por eles para uma visita ao Pilão, havia lá um bailarico com mornas e coladeras e claro, material feminino.
Lá fomos entusiasmados pela juventude dos 23 anos, de facto era verdade e a nossa integração no bailarico foi imediata.
Entretanto o Mouraria arranja logo um desaguizado com um elemento cabo-verdiano que dançava com uma guineense de alcunha "a muda". O nosso amigo queria a toda a força dançar com ela, e palavra puxa palavra, empurrões à mistura e rapidamente passaram à agressão fisica.
Os amigos do cabo-verdiano, cerca de 20, igualmente entraram na luta, assim como o Braga e claro logicamente eu também. A desvantagem como facilmente se percebe era abismável e os dois com conhecimento de sobra, tanto da nossa desvantagem como do terreno para uma fuga com êxito, não esperaram e evaporaram-se em segundos. Eu não tive alternativa, fugi também e rapidamente, sem saber para onde ir, e depois de andar deambulando pelos becos com uma noite com escuridão total, decidi esconder-me debaixo de uma "casa", pois elas estavam implantadas sobre pilotis de madeira.
Depois de uns minutos que me pareciam horas, porque ouvia e sentia que era perseguido por um grupo numeroso, pelas vozes e barulho, aproveitei um silêncio repentino e saí, e eis que senti um pouco mais à frente uma mão no meu braço e uma voz dizendo:
- Oh meu Furriel, venha já comigo.
Senti que era um amigo e segui-o rapidamente, finalmente estava a umas escassas dezenas de metros da estrada principal. Quem me ajudou, estava presenciando a cena de longe, conheceu-me porque eu tinha sido seu instrutor em Santa Margarida uns meses atrás.
Serviu-me de lição, primeiro não me meter em terrenos desconhecidos, segundo saber escolher os companheiros de farra.
RC
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Nota de CV:
Vd. último poste da série de 2 de Março de 2010 > Guiné 63/74 - P5921: Notas soltas da CART 643 (Rogério Cardoso) (10): Os patos pagos pelo pato
Guiné 63/74 - P5975: Convívios (202): 32.º Convívio Anual da CART 2519 “Os Morcegos de Mampatá”, vai decorrer em 08 Maio 2010 - Odemira (Mário Pinto)
1. O nosso Camarada Mário Gualter Rodrigues Pinto, ex-Fur Mil At Art da CART 2519 - "Os Morcegos de Mampatá" (Buba, Aldeia Formosa e Mampatá - 1969/71), enviou-nos uma mensagem, anunciando a festa anual da sua Companhia:
CART 2519 “OS MORCEGOS DE MAMPATÁ”
32.º CONVÍVIO ANUAL
08 de Maio de 2010
Camaradas,
O Convívio Anual dos "COIRÕES DE MAMPATÁ", realiza-se em São Teotónio (Odemira).
Às 10h30 - Concentração das tropas, que está prevista para o Campo de Futebol de São Teotónio.
Às 13h00 - Almoço que terá lugar no Grupo Desportivo "O Renascente ".
A Ementa é a tradicional: As habituais Entradas, seguindo-se os pratos de Peixe e Carne, e, após uma Sobremesa, remataremos com um café e o digestivozinho da ordem.
O Bar estará sempre aberto.
O Convívio Anual dos "COIRÕES DE MAMPATÁ", realiza-se em São Teotónio (Odemira).
Às 10h30 - Concentração das tropas, que está prevista para o Campo de Futebol de São Teotónio.
Às 13h00 - Almoço que terá lugar no Grupo Desportivo "O Renascente ".
A Ementa é a tradicional: As habituais Entradas, seguindo-se os pratos de Peixe e Carne, e, após uma Sobremesa, remataremos com um café e o digestivozinho da ordem.
O Bar estará sempre aberto.
A organização está a cargo do nosso Camarada Rosca Moída, cujo telemóvel é: 961 141 187.
Um abraço,
Mário Pinto
Fur Mil At Art
Emblema de colecção: © Carlos Coutinho (2009). Direitos reservados.____________
Nota de M.R.:
Vd. último poste desta série em:
8 de Março de 2010 > Guiné 63/74 - P5954: Convívios (113): Pessoal do BCAÇ 3872, dia 1 de Maio de 2010, em Cabeçudo - Sertã (Juvenal Amado)
quinta-feira, 11 de março de 2010
Guiné 63/74 - P5974: Ao correr da bolha (Torcato Mendonça) (3): O velho picador, Seco Camará
1. O Velho Picador, mais um texto para a nova série Ao correr da bolha, enviado por Torcato Mendonça (ex-Alf Mil da CART 2339, Mansambo, 1968/69), em mensagem do dia 2 de Março de 2010:
Ao Correr da Bolha - III
O Velho Picador
Vi num “Poste” uma foto do velho Seco Camará. Senti saudades dele. Senti saudades de ter menos quarenta anos e, com ele e um grupo, voltarmos a ir ao Poidom, a fazer as “operações” de outrora, parando em “grande alto” para descansar e comer a ração. Diria então o velho Seco, caso a ração dele fosse contemplada com polvo ou lulas:
- Alfero, rabo de rato, troca pelas tuas sardinhas.
Eu ria e trocava. Comíamos e conversávamos e eu com ele ia aprendendo, não a arte da guerra, mas só a guerra naquele bocado da Guiné que ele, velho mandinga, conhecia como a palma de suas mãos.
Há quantos anos? Desde o inicio, há cinco ou seis anos atrás. Que pensaria ele de nós que íamos e vínhamos à cadência de um ou dois anos? Não sei. Era um velho guerreiro, colaborador das NT ou Nossas Tropas. Morreu, talvez menos de dois anos depois, nem tanto. Voou para o Paraíso dos Mandingas, o velho Seco Camará.
Antes a morte em combate que teve, do que o abjecto e cobarde pelotão de fuzilamento dos libertadores. Quantos amigos meus, como o Seco, passaram por isso?! Quantos? Homens que foram auxiliares das NT e ingloriamente assim desapareceram.
Que fariam eles, durante a guerra, se não andassem connosco? Iam para a guerrilha. Mesmo estando connosco, quantos em nós acreditariam? Quantas reservas poriam à nossa actuação, à nossa presença e, se colaboravam, quantos não o faziam contrariados com certos militares nossos.
Lembro aqui o caçador Lhavo. Homem grande, olhar e porte altivo, vestimenta muçulmana. Era o meu guia preferido. Não facilitava os pedidos para colaborar. Lembro que foi ele a encontrar o acampamento do Mamadu Indjai. Não queria ir. Naquele fim de tarde falei com ele pausadamente, o Capitão afastado a observar e o Lhavo a entender o que eu lhe dizia. Depois olhou-me e calmamente disse:
- Amanhã ao nascer do Sol vem a Afiá, agora vai para Candamã.
Assim foi feito e com bons resultados.
O Lhavo uma vez ficou aborrecido comigo. Regressávamos da [Op] Lança Afiada, manhã a nascer, e avistamos uma vaca de mato. Ele queria atirar. Fiz-lhe sinal que não. Baixou a arma e já em Mansambo disse-lhe o porquê. Compreendeu e apertamos as mãos. Talvez se tenha aí cimentado mais a nossa amizade.
Esta gente das Tabancas é que para mim foi, e ainda hoje é, o Povo da Guiné.
Um outro homem diferente mas por quem tinha amizade, o António Bonco Balde, régulo em Candamã, Alferes de 2º Linha (nunca o vi vestido de militar), homem criado numa Missão, empregado em Bissau e regressado a Candamã após a morte do pai. Homem de múltiplos saberes e com ele aprendi muito. Miúdo alferes de 23 anos e Fula, talvez, de quarenta e…homem bom.
Só um breve episódio.
Estava com o meu grupo em Candamã e Afiá, tabancas em auto defesa. Um dia de Afia informaram que faltavam muitos homens. Já sentíramos isso em Candamã. Falamos com o Régulo António Bonco. Ele disse já saber e que eu tinha que compreender. Os “tchãos” não davam o suficiente para alimentar as famílias. Conversamos bastante e agora resumo em breves palavras. Dizia ele:
- Os homens vão para a apanha da mancarra no Senegal. O pior é que quem os leva, ganha dinheiro, quando regressam quem lhes faz o câmbio ganha dinheiro e eles nem metade do que ganharam trazem.
Fiz um relatório sobre essa exploração, os lucros de comerciantes sem escrúpulos, o silencio da Administração e, se as Informações militares de nada sabiam…ou sabendo…até porque assim cada vez se desguarnecia mais a defesa das tabancas. O Régulo fez questão de assinar também. Foi o relatório enviado à Companhia, o Capitão levou ao Batalhão e este ao Agrupamento.
Sempre se passou algo mas depois fez-se silêncio. Antes do silêncio foram-nos entregues sacos de arroz para distribuir, equitativamente, pela população. Assim não se resolve nada, dizia o Régulo e eu… história encurtada, inacabada e a merecer tratamento duro nesse tempo.
Quem aos inimigos, perdoa às mãos… pois!
Curiosamente, dizem, se bem me lembro, que o Comandante do BCaç 2852 e um Capitão foram molestados, digamos assim, após o ataque a Bambadinca. Os civis ou a administração civil teria algo a ver com isso? Certamente que não! E que interessa isso agora? Nada!
Será que os homens das tabancas continuam a serem explorados? Certamente que não!
__________
Nota de CV:
Vd. primeiro poste da série de 9 de Março de 2010 > Guiné 63/74 - P5958: Ao correr da bolha (Torcato Mendonça) (2): SPM 4758
Ao Correr da Bolha - III
O Velho Picador
Vi num “Poste” uma foto do velho Seco Camará. Senti saudades dele. Senti saudades de ter menos quarenta anos e, com ele e um grupo, voltarmos a ir ao Poidom, a fazer as “operações” de outrora, parando em “grande alto” para descansar e comer a ração. Diria então o velho Seco, caso a ração dele fosse contemplada com polvo ou lulas:
- Alfero, rabo de rato, troca pelas tuas sardinhas.
Eu ria e trocava. Comíamos e conversávamos e eu com ele ia aprendendo, não a arte da guerra, mas só a guerra naquele bocado da Guiné que ele, velho mandinga, conhecia como a palma de suas mãos.
Há quantos anos? Desde o inicio, há cinco ou seis anos atrás. Que pensaria ele de nós que íamos e vínhamos à cadência de um ou dois anos? Não sei. Era um velho guerreiro, colaborador das NT ou Nossas Tropas. Morreu, talvez menos de dois anos depois, nem tanto. Voou para o Paraíso dos Mandingas, o velho Seco Camará.
Antes a morte em combate que teve, do que o abjecto e cobarde pelotão de fuzilamento dos libertadores. Quantos amigos meus, como o Seco, passaram por isso?! Quantos? Homens que foram auxiliares das NT e ingloriamente assim desapareceram.
Que fariam eles, durante a guerra, se não andassem connosco? Iam para a guerrilha. Mesmo estando connosco, quantos em nós acreditariam? Quantas reservas poriam à nossa actuação, à nossa presença e, se colaboravam, quantos não o faziam contrariados com certos militares nossos.
Lembro aqui o caçador Lhavo. Homem grande, olhar e porte altivo, vestimenta muçulmana. Era o meu guia preferido. Não facilitava os pedidos para colaborar. Lembro que foi ele a encontrar o acampamento do Mamadu Indjai. Não queria ir. Naquele fim de tarde falei com ele pausadamente, o Capitão afastado a observar e o Lhavo a entender o que eu lhe dizia. Depois olhou-me e calmamente disse:
- Amanhã ao nascer do Sol vem a Afiá, agora vai para Candamã.
Assim foi feito e com bons resultados.
O Lhavo uma vez ficou aborrecido comigo. Regressávamos da [Op] Lança Afiada, manhã a nascer, e avistamos uma vaca de mato. Ele queria atirar. Fiz-lhe sinal que não. Baixou a arma e já em Mansambo disse-lhe o porquê. Compreendeu e apertamos as mãos. Talvez se tenha aí cimentado mais a nossa amizade.
Esta gente das Tabancas é que para mim foi, e ainda hoje é, o Povo da Guiné.
Um outro homem diferente mas por quem tinha amizade, o António Bonco Balde, régulo em Candamã, Alferes de 2º Linha (nunca o vi vestido de militar), homem criado numa Missão, empregado em Bissau e regressado a Candamã após a morte do pai. Homem de múltiplos saberes e com ele aprendi muito. Miúdo alferes de 23 anos e Fula, talvez, de quarenta e…homem bom.
Só um breve episódio.
Estava com o meu grupo em Candamã e Afiá, tabancas em auto defesa. Um dia de Afia informaram que faltavam muitos homens. Já sentíramos isso em Candamã. Falamos com o Régulo António Bonco. Ele disse já saber e que eu tinha que compreender. Os “tchãos” não davam o suficiente para alimentar as famílias. Conversamos bastante e agora resumo em breves palavras. Dizia ele:
- Os homens vão para a apanha da mancarra no Senegal. O pior é que quem os leva, ganha dinheiro, quando regressam quem lhes faz o câmbio ganha dinheiro e eles nem metade do que ganharam trazem.
Fiz um relatório sobre essa exploração, os lucros de comerciantes sem escrúpulos, o silencio da Administração e, se as Informações militares de nada sabiam…ou sabendo…até porque assim cada vez se desguarnecia mais a defesa das tabancas. O Régulo fez questão de assinar também. Foi o relatório enviado à Companhia, o Capitão levou ao Batalhão e este ao Agrupamento.
Sempre se passou algo mas depois fez-se silêncio. Antes do silêncio foram-nos entregues sacos de arroz para distribuir, equitativamente, pela população. Assim não se resolve nada, dizia o Régulo e eu… história encurtada, inacabada e a merecer tratamento duro nesse tempo.
Quem aos inimigos, perdoa às mãos… pois!
Curiosamente, dizem, se bem me lembro, que o Comandante do BCaç 2852 e um Capitão foram molestados, digamos assim, após o ataque a Bambadinca. Os civis ou a administração civil teria algo a ver com isso? Certamente que não! E que interessa isso agora? Nada!
Será que os homens das tabancas continuam a serem explorados? Certamente que não!
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Nota de CV:
Vd. primeiro poste da série de 9 de Março de 2010 > Guiné 63/74 - P5958: Ao correr da bolha (Torcato Mendonça) (2): SPM 4758
Guiné 63/74 - P5973: Memória dos lugares (74): Fotos de Bedanda (Vasco Santos, 1º Cabo Op Cripto da CCAÇ 6, Bedanda - 1972/73)
1. O nosso Camarada Vasco Santos, ex-1º Cabo Op Cripto da CCAÇ 6, Bedanda - 1972/73 -, com data de 10 de Março de 2010, algumas das fotos do seu álbum de memórias:
Bedanda
Memórias
Eu, com o meu amigo Filipe (de Transmissões). Esta foto era uma daquelas que enviávamos para o jornal “A Voz da Guiné”, a fim de ali serem publicadas, pois havia um apartado reservado para os "castiços" das companhias. A foto destinava-se a ser impressa com a legenda: “Os castiços de Bedanda”.
Aqui estou eu e o nosso querido amigo, Dr. Mário Bravo. Pode ser que agora ele se lembre de quem é o cripto que está na primeira foto publicada no poste P5801 (da sua autoria), em 11 de Fevereiro de 2010.
A equipa de futebol de praças (Bedanda 15FEV1972)
Eu, na Tabanca, com a tia Djaló, avivando memórias para que alguns ex-Camaradas possam relembrá-la.
As bajudas de Bedanda (1972).
Um abraço,
Vasco Santos
1º Cabo Op Cripto da CCAÇ 6
Emblema da colecção pessoal: © Carlos Coutinho (2010). Direitos reservados.___________
Notas de M.R.:
Vd. último poste desta série em:
11 de Fevereiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5801: Memória dos lugares (69): O isolamento de Bedanda (Mário Silva Bravo, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 6, Bedanda, 1971/72)
Vasco Santos
1º Cabo Op Cripto da CCAÇ 6
Emblema da colecção pessoal: © Carlos Coutinho (2010). Direitos reservados.___________
Notas de M.R.:
Vd. último poste desta série em:
11 de Fevereiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5801: Memória dos lugares (69): O isolamento de Bedanda (Mário Silva Bravo, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 6, Bedanda, 1971/72)
Guiné 63/74 - P5972: Fajonquito do meu tempo (José Cortes, CCAÇ 3549, 1972/74) (3): O Cap Patrocínio, a CCAÇ 15, dois casos de insubordinação e ainda o Cherno Baldé
Guiné > Zona Leste > Região de Bafatá > Fajonquito [, mapa de Colina do Norte]> CCAÇ 3549 (192/74) > Casa Gouveia (onde trabalhava o pai do Cherno Baldé), com a casa dos oficiais de que ele fala na sua narrativa.
Guiné > Zona Leste > Região de Bafatá > Fajonquito > CCAÇ 3549 (192/74) > Povoação de Fajonquito.
Guiné > Zona Leste > Região de Bafatá > Fajonquito > CCAÇ 3549 (192/74) > Rua principal de Fajonquito.
Guiné > Zona Leste > Região de Bafatá > Fajonquito > CCAÇ 3549 (192/74) > Eu com o filho mais novo da Cristina, lavadeira, a mais popular dentro do aquartelamento.
Guiné > Zona Leste > Região de Bafatá > Fajonquito > CCAÇ 3549 (192/74) > Eu e o Alaje, espero que o Cherno Baldé consiga dizer do paradeiro dele.
Guiné > Zona Leste > Região de Bafatá > Fajonquito > CCAÇ 3549 (192/74) > Bajuda junto ao depósito de géneros do aquartelamento.
Foto: © José Cortes (2010). Direitos reservados
1. Mensagem de José Cortes, ex-Fur Mil At Inf, CCAÇ 3549, Fajonquito, 1972/74 (*):
(i) Vou tentar responder ao companheiro Mexia Alves (**), sobre o Cap José Eduardo Marques Patrocínio.
O companheiro deve estar confundido com o ano em que foi para Mansoa, não deve ter sido em 1972 mas sim em 1973. Os meses de Julho e Agosto devem estar certos.
Porque os Cap São Pedro foram graduados pelo General Spínola mais ou menos em Maio de 1973, e o Cap Patrocínio já não se encontrava na companhia pelo menos há dois meses.
Portanto o Cap Patrocínio devia ter estado em Mansoa mais ou menos 5 ou 6 meses.
Segundo o que diz o coronel Vargas Cardoso, que era o 2º Comandante do Batalhão, o Cap Patrocínio foi para a CCAÇ 15, [composta por ] tropas africanas.
O Cap Patrocínio tinha a formação de comandos, com uma comissão em Moçambique, como alferes, onde foi ferido em combate.
Formou a nossa companhia em Chaves no BC 10 de 22 de Dezembro de 1971 a 25 de Março de 1972, dia em que saímos de Chaves para a Guiné. Ele era do Quadro Especial de Oficiais (QEO).
(ii) Agora gostava de fazer um pequeno comentário as Amêndoas Vermelhas de Fajonquito (**).
O que aconteceu naquele dia, não foi concerteza caso isolado durante 13 anos de guerra.
Temos que ver que grande parte dos soldados das NT tinham pouca formação escolar, eu na minha companhia, e já foi em 1972, tinha muitos soldados que não sabiam ler nem escrever.
Portanto, qualquer situação menos vulgar que acontecesse, o respeito pelos superiores desvanecia-se e a disciplina era esquecida . Eu próprio passei por uma situação, em que esteve envolvido o soldado Silva, do primeiro pelotão da minha companhia.
Certo fim da tarde, já noite, envolveu-se numa discussão com um camarada, e agarra na G3 e toca a descarregar o carregador no tecto da caserna onde dormiam.
Quando o abordei para saber o que se passava, quando cheguei junto dele ainda se encontrava com a arma na mão, virou-me a arma e disse:
- Ó furriel, não me diga nada porque a seguir vai para si.
Tive que participar ao comandante de companhia, Cap Patrocínio, que lhe deu 10 dias de prisão, que passou em Bafatá.
Quando os camaradas o visitaram na prisão, dizia-lhes que eu não chegava ao fim da comissão.
No fim dos dez dias, eu é que o fui buscar, e perguntei-lhe se era verdade o que os camaradas tinham dito, e ele disse para esquecer porque foram dez dias que passou sem fazer nada e comia e bebia.
Passados vinte e tal anos, apareceu num dos nossos convívios e voltámos a falar no assunto. E ainda nos rimos da situação. Mas podia ter acontecido uma tragédia se por acaso na altura eu tivesse respondido à agressão verbal dele.
Outra situação foi passada com o companheiro furriel Campos, e um soldado também do 1º pelotão, no destacamento de Sare-Uale.
Durante um jogo de futebol, disputado ao fim de tarde no destacamento, numa disputa de bola mais acesa entre o furriel e o soldado Maleiro, o soldado amuou e ficou zangado com o Campos, ao ponto de se recusar a cumprir o serviço de sentinela para que estava escalado naquela noite.
Quando foi abordado pelo furriel, para cumprir com a sua obrigação, respondeu-lhe que não fazia o serviço e que saísse da sua frente se não queria levar um tiro, com a arma em riste apontada ao furriel.
É claro que o furriel só tinha que comunicar ao Comandante de companhia o que se passava, pois para sua segurança e dos outros soldados ele não queria mais aquele elemento consigo.
O Maleiro foi mandado embora para outra unidade, não ouvimos falar mais dele, na Guiné. Sei que está bem porque é daqui da zona de Coimbra.
Isto são dois casos, que não tiveram consequências mais graves, mas concerteza que aconteceram mais naquela guerra, com desfechos bem mais complicados, como o de Fajonquito no dia 2 de Abril de 1972, Domingo de Páscoa.
Temos que andar para trás nos anos, e ver que éramos uns puto de vinte e poucos anos, a quem foram dadas responsabilidades muito importantes, como a vida de ser humanos.
Não foi o meu caso pois tive sempre em sede de companhia, mas camaradas meus, furriéis, a quem foi dado o comando dos grupos de combate, por falta de oficiais, ou por outras razões, que agora não interessa falar .Com responsabilidade além do comando do grupo, tinham as populações dos destacamento que dependiam da tropa para quase tudo. Tiveram que ser enfermeiros sem conhecimento da especialidade, tiveram que administrar a alimentação sem serem vagomestres, e outras situações, sem preparação, só foram preparados para defender as populações da guerra, e nos destacamentos tinham que fazer de tudo.
O Cap São Pedro foi graduado salvo erro com vinte e seis anos de idade, era um puto, foi-lhe entregue uma companhia com 160 homens mais ou menos da mesma idade, a população de Fajonquito, Canhámina, Cambajú, Sare Uale, Sare Jambarã e outras que existiam no nosso sector. Teve que assumir uma postura com certa autoridade, que o próprio posto hierárquico lhe exigia.
Ainda hoje, passados 36 anos, há companheiros que lhe guardam ressentimentos daquele tempo. (...)
3. Mensagem de 6 do corrente:
Caro Luis Graça.
Ao ler as narrativas do Cherno Baldé [, foto à direita, quando estudante universitário em Kiev, na Ucrânia, nos finais de 1980], dei com um comentário do companheiro José Bebiano, do qual me lembro bem pois era o Furriel de Operações e Imformãções da companhia e, como era de rendição indivudual, só esteve connosco meia dúzia de meses, mas lembrava-me bem dele. Já comuniquei com ele como te dei conhecimento., fiquei muito contente com a resposta dele.
Com respeito ao Cherno, como é natural não tenho ideia dele naquela altura, embora a cara dele não esteja apagada da minha memória.
Como ele conta o convívio com os militares, era capaz de ser assim, sei que alguns se excediam no tratamento com os miúdos. Ele fala em dois condutores, o Dias e o Magalhães, na verdade tivemos dois condutores com esse nome, mas não tivemos nenhum alferes chamado Maia, por isso não sei se ele se refere à minha companhia. (***)
Vou enviar algumas fotos, espero que as faças chegar ao Cherno para que ele as identifique;
1 - Eu com a filha mais nova da Cristina, lavadeira, a mais popular dentro do aquartelamento.
2ª - Eu e o Alaje, espero que ele consiga dizer do paradeiro dele.
3ª - Povoação de Fajonquito.
4ª - Casa Gouveia, com a casa dos oficiais que ele fala na sua narrativa.
5ª - Rua principal de Fajonquto.
6ª - Bajuda junto ao depósito de géneros do aquartelamento.
Um Abraço
José Cortes
________________
Tive que participar ao comandante de companhia, Cap Patrocínio, que lhe deu 10 dias de prisão, que passou em Bafatá.
Quando os camaradas o visitaram na prisão, dizia-lhes que eu não chegava ao fim da comissão.
No fim dos dez dias, eu é que o fui buscar, e perguntei-lhe se era verdade o que os camaradas tinham dito, e ele disse para esquecer porque foram dez dias que passou sem fazer nada e comia e bebia.
Passados vinte e tal anos, apareceu num dos nossos convívios e voltámos a falar no assunto. E ainda nos rimos da situação. Mas podia ter acontecido uma tragédia se por acaso na altura eu tivesse respondido à agressão verbal dele.
Outra situação foi passada com o companheiro furriel Campos, e um soldado também do 1º pelotão, no destacamento de Sare-Uale.
Durante um jogo de futebol, disputado ao fim de tarde no destacamento, numa disputa de bola mais acesa entre o furriel e o soldado Maleiro, o soldado amuou e ficou zangado com o Campos, ao ponto de se recusar a cumprir o serviço de sentinela para que estava escalado naquela noite.
Quando foi abordado pelo furriel, para cumprir com a sua obrigação, respondeu-lhe que não fazia o serviço e que saísse da sua frente se não queria levar um tiro, com a arma em riste apontada ao furriel.
É claro que o furriel só tinha que comunicar ao Comandante de companhia o que se passava, pois para sua segurança e dos outros soldados ele não queria mais aquele elemento consigo.
O Maleiro foi mandado embora para outra unidade, não ouvimos falar mais dele, na Guiné. Sei que está bem porque é daqui da zona de Coimbra.
Isto são dois casos, que não tiveram consequências mais graves, mas concerteza que aconteceram mais naquela guerra, com desfechos bem mais complicados, como o de Fajonquito no dia 2 de Abril de 1972, Domingo de Páscoa.
Temos que andar para trás nos anos, e ver que éramos uns puto de vinte e poucos anos, a quem foram dadas responsabilidades muito importantes, como a vida de ser humanos.
Não foi o meu caso pois tive sempre em sede de companhia, mas camaradas meus, furriéis, a quem foi dado o comando dos grupos de combate, por falta de oficiais, ou por outras razões, que agora não interessa falar .Com responsabilidade além do comando do grupo, tinham as populações dos destacamento que dependiam da tropa para quase tudo. Tiveram que ser enfermeiros sem conhecimento da especialidade, tiveram que administrar a alimentação sem serem vagomestres, e outras situações, sem preparação, só foram preparados para defender as populações da guerra, e nos destacamentos tinham que fazer de tudo.
O Cap São Pedro foi graduado salvo erro com vinte e seis anos de idade, era um puto, foi-lhe entregue uma companhia com 160 homens mais ou menos da mesma idade, a população de Fajonquito, Canhámina, Cambajú, Sare Uale, Sare Jambarã e outras que existiam no nosso sector. Teve que assumir uma postura com certa autoridade, que o próprio posto hierárquico lhe exigia.
Ainda hoje, passados 36 anos, há companheiros que lhe guardam ressentimentos daquele tempo. (...)
3. Mensagem de 6 do corrente:
Caro Luis Graça.
Ao ler as narrativas do Cherno Baldé [, foto à direita, quando estudante universitário em Kiev, na Ucrânia, nos finais de 1980], dei com um comentário do companheiro José Bebiano, do qual me lembro bem pois era o Furriel de Operações e Imformãções da companhia e, como era de rendição indivudual, só esteve connosco meia dúzia de meses, mas lembrava-me bem dele. Já comuniquei com ele como te dei conhecimento., fiquei muito contente com a resposta dele.
Com respeito ao Cherno, como é natural não tenho ideia dele naquela altura, embora a cara dele não esteja apagada da minha memória.
Como ele conta o convívio com os militares, era capaz de ser assim, sei que alguns se excediam no tratamento com os miúdos. Ele fala em dois condutores, o Dias e o Magalhães, na verdade tivemos dois condutores com esse nome, mas não tivemos nenhum alferes chamado Maia, por isso não sei se ele se refere à minha companhia. (***)
Vou enviar algumas fotos, espero que as faças chegar ao Cherno para que ele as identifique;
1 - Eu com a filha mais nova da Cristina, lavadeira, a mais popular dentro do aquartelamento.
2ª - Eu e o Alaje, espero que ele consiga dizer do paradeiro dele.
3ª - Povoação de Fajonquito.
4ª - Casa Gouveia, com a casa dos oficiais que ele fala na sua narrativa.
5ª - Rua principal de Fajonquto.
6ª - Bajuda junto ao depósito de géneros do aquartelamento.
Um Abraço
José Cortes
________________
Notas de L.G.:
(*) Vd.poste de 7 de Março de 2010 > Guiné 63/74 - P5946: Fajonquito do meu tempo (José Cortes, CCAÇ 3549, 1972/74) (2): Evocando o Sold Almeida e o Fur Alcino, da CART 2742, que morreram, mais o Cap Figueiredo e o Alf Félix, na tragédia do domingo de Páscoa de 1972
(**) Vd. poste de 6 de Março de 2010 > Guiné 63/74 - P5938: A tragédia de Fajonquito ou as amêndoas, vermelhas de sangue, do domingo de Páscoa de 2 de Abril de 1972 (José Cortes / Luís Graça)
Comentário de Joaquim Mexia Alves:
(...) Não tendo a ver directamente com esta tragédia gostava de perguntar o seguinte:
- Quando é que o Cap Patrocínio saiu da Companhia? O Cap Patrocínio não tinha especialidade de Comando?
Pergunto isto porque a minha memória por vezes me atraiçoa, (não só a mim, com certeza), e eu tenho quase a certeza de que fui "substituir" o Cap Patrocínio na CCaç 15, (porque quando cheguei à 15 não havia Capitão e eu era o Alferes mais antigo).
Tenho a ideia que quando fiz a viagem do Xime para Bissau, para depois ir para Mansoa, o Cap Patrocínio, apenas por coincidência, ir nessa viagem e termos conversado, pelo que soube desde logo que ele já não era comandante da 15 e eu teria de o ser até à chegada de um novo Capitão.
Mas o tempo é "curto", pois eu julgo que cheguei à CCaç 15 lá para Julho ou Agosto de 72, o que faria com que a passagem do Cap Patrocínio por Fajonquito e pela 15 fosse muito rápida.
Alguém me pode relembrar para eu poder organizar a minha memória?
Abraço camarigo para todos (...).
(***) Dados sobre as companhias de Fajonquito, aqui citadas e que são do tempo do Cherno Baldé, "menino e moço":
CCAÇ 3549:
Mobilizada pelo BCaç 10. Partida para a Guiné em 26/3/1972; regresso em 29/6/1974. Esteve em Fajonquito. Comandantes: Cap QEO José Eduardo Marques Patrocínio; Cap Mil Grad Inf Manuel Mendes São Pedro. Pertencia ao BCAÇ 3884 (Bafatá), que teve 6 (seis!) comandantes, 4 tenentes coronéis e 2 majortes, o último dos quais o supracitado Maj Inf Mário José Vargas Cardoso. A este batalhão pertenciam a inda a CCAÇ 3547 (Contuboel), comandada pelo Cap Mil Inf Carlos Rabaçal Martins; e a CCAÇ 3548 (Geba) (teve três comandantes, todos eles capitães milicianos de infantaria).
CART 2742:
Mobilizada pelo RAL 5. Partida para a Guiné: 18/7/1970; regresso: 21/9/1972. Esteve sempre em Fajonquito. Comandantes: Cap Art Carlos Borges de Figueiredo (confirma-se que não era miliciano, mas sim do quadro) e Alf Mil Art Baltasar Gomes da Silva (que o substitutui o capitão, por morte deste, em 2/4/1972). Esta unidade pertencia ao BART 2910 (Bafatá), comandado pelo Ten Cor Art Fernando de melo Macedo Cabral. A este batalhão pertencia ainda CART 2741 (Contuboel; Cap Art João Maria Clímaco de Sousa Brito) e CART 2743 (Geba; Cap Mil Art Iídio do Rosário dos Santos Moreira).
(*) Vd.poste de 7 de Março de 2010 > Guiné 63/74 - P5946: Fajonquito do meu tempo (José Cortes, CCAÇ 3549, 1972/74) (2): Evocando o Sold Almeida e o Fur Alcino, da CART 2742, que morreram, mais o Cap Figueiredo e o Alf Félix, na tragédia do domingo de Páscoa de 1972
(**) Vd. poste de 6 de Março de 2010 > Guiné 63/74 - P5938: A tragédia de Fajonquito ou as amêndoas, vermelhas de sangue, do domingo de Páscoa de 2 de Abril de 1972 (José Cortes / Luís Graça)
Comentário de Joaquim Mexia Alves:
(...) Não tendo a ver directamente com esta tragédia gostava de perguntar o seguinte:
- Quando é que o Cap Patrocínio saiu da Companhia? O Cap Patrocínio não tinha especialidade de Comando?
Pergunto isto porque a minha memória por vezes me atraiçoa, (não só a mim, com certeza), e eu tenho quase a certeza de que fui "substituir" o Cap Patrocínio na CCaç 15, (porque quando cheguei à 15 não havia Capitão e eu era o Alferes mais antigo).
Tenho a ideia que quando fiz a viagem do Xime para Bissau, para depois ir para Mansoa, o Cap Patrocínio, apenas por coincidência, ir nessa viagem e termos conversado, pelo que soube desde logo que ele já não era comandante da 15 e eu teria de o ser até à chegada de um novo Capitão.
Mas o tempo é "curto", pois eu julgo que cheguei à CCaç 15 lá para Julho ou Agosto de 72, o que faria com que a passagem do Cap Patrocínio por Fajonquito e pela 15 fosse muito rápida.
Alguém me pode relembrar para eu poder organizar a minha memória?
Abraço camarigo para todos (...).
(***) Dados sobre as companhias de Fajonquito, aqui citadas e que são do tempo do Cherno Baldé, "menino e moço":
CCAÇ 3549:
Mobilizada pelo BCaç 10. Partida para a Guiné em 26/3/1972; regresso em 29/6/1974. Esteve em Fajonquito. Comandantes: Cap QEO José Eduardo Marques Patrocínio; Cap Mil Grad Inf Manuel Mendes São Pedro. Pertencia ao BCAÇ 3884 (Bafatá), que teve 6 (seis!) comandantes, 4 tenentes coronéis e 2 majortes, o último dos quais o supracitado Maj Inf Mário José Vargas Cardoso. A este batalhão pertenciam a inda a CCAÇ 3547 (Contuboel), comandada pelo Cap Mil Inf Carlos Rabaçal Martins; e a CCAÇ 3548 (Geba) (teve três comandantes, todos eles capitães milicianos de infantaria).
CART 2742:
Mobilizada pelo RAL 5. Partida para a Guiné: 18/7/1970; regresso: 21/9/1972. Esteve sempre em Fajonquito. Comandantes: Cap Art Carlos Borges de Figueiredo (confirma-se que não era miliciano, mas sim do quadro) e Alf Mil Art Baltasar Gomes da Silva (que o substitutui o capitão, por morte deste, em 2/4/1972). Esta unidade pertencia ao BART 2910 (Bafatá), comandado pelo Ten Cor Art Fernando de melo Macedo Cabral. A este batalhão pertencia ainda CART 2741 (Contuboel; Cap Art João Maria Clímaco de Sousa Brito) e CART 2743 (Geba; Cap Mil Art Iídio do Rosário dos Santos Moreira).
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Guiné 63/74 - P5971: As Nossas Queridas Enfermeiras Pára-quedistas (12): Ivone Reis, a primeira Enfermeira Pára-quedista que conheci (Rosa Serra)
1. Mensagem de Rosa Serra, ex-Enfermeira Pára-quedista, BCP 12, Guiné, 1969, nossa nova camarada e tertuliana, com data de 5 de Março de 2010:
Olá Sr. Luis Graça.
Sou Rosa Serra, ex-Enfermeira Pára-quedista.
Conforme me foi solicitado aqui vai um pequeno resumo do meu percurso como Enfermeira Pára-quedista.
- Iniciei o meu curso de pára-quedismo em Setembro 1967 tendo este sido interrompido por acidente em instrução. Após estar completamente recuperada, concluí o curso sozinha e fui brevetada em 13 Março de 1968.
- No mesmo mês fui colocada no Hospital da Força Aérea, BA 4 - Ilha Terceira, nos Açores.
- Em Março de 1969 rumei para a Guiné para o BCP 12.
- Em Abril de 1970 fui colocada no BCP 21 em Luanda.
- Em Setembro de 1971 fui nomeada para o RCP, em Tancos, para ministrar um curso de primeiros socorros avançados a soldados pára-quedistas. Após terminada essa formação aos militares pára-quedistas, em Janeiro de 1972 iniciei o curso de instrutores e monitores em pára-quedismo na mesma unidade, o qual terminei em Março do mesmo ano.
- Em Junho de 1972 volto aos Açores, onde fico até Dezembro de 1972.
- Em Janeiro de 1973 fui colocada na 3.ª Região Aérea, tendo estado destacada cerca de um ano no AM-51 em Mueda.
- Em 1 de Março de 1974 rescindi o contrato, deixando de prestar serviço na Força Aérea.
Em relação à Enfermeira Ivone, apenas descrevo em traços gerais o que sempre apreciei nela, contudo não quis alongar-me muito; mas é sem dúvida uma grande Senhora e uma grande referência para as enfermeiras pára-quedistas.
Curiosidades:
Cerca de 20 anos depois de ter saído da Força Aérea, tomei conhecimento de que tive 2 louvores; um dado pelo Comandante da Zona Aérea de Cabo Verde e Guiné e outro pelo Comandante da 3.ª Região Aérea; e nos cursos de pára-quedismo que fiz, exceptuando as 2 semanas do primeiro curso antes do acidente, fiz o curso normal sozinha e no segundo era a única mulher do curso.
Logo que possível tentarei fazer-vos chegar as duas fotos da praxe - uma dos velhos tempos e outra actual. De qualquer modo, suponho que as fotos que o Miguel Pessoa vos enviou poderão ilustrar o texto sobre a Enfª Ivone.
Com os meus cumprimentos
Rosa Serra
ENFERMEIRA IVONE REIS
Tancos, 2005 > Enfermeira Pára-quedista Ivone Reis
Têm-me perguntado várias vezes pela Enfermeira Ivone. Sei também que já há um certo número de pessoas que sabem que ela não tem estado bem de saúde, por isso aqui estou eu para falar um pouco da primeira enfermeira pára-quedista que eu conheci.
Nós, aqueles que a conheceram e que com ela conviveram períodos da sua vida por diversas razões, não a esquecem e no meu caso pessoal tenho bem presente quem foi a Ivone, como sempre a vi e o que eu aprendi com ela.
A Enfermeira Ivone pertence ao grupo das 6 Marias, nome pelo qual ficou conhecido o 1.º curso de Enfermeiras Pára-quedistas portuguesas feito em 1961.
Foi ela que contactou as futuras candidatas, residentes na Cidade do Porto, que em 1967 tinham pedido por escrito à Força Aérea informações sobre cursos para Enfermeiras Pára-quedistas. Foi a Enfermeira Ivone a primeira a deslocar-se ao Porto para conhecer as 4 interessadas na candidatura ao curso, onde eu estava incluída.
Mais tarde, eu, já Enfermeira com boina verde na cabeça, estive em várias comissões com ela. Fazíamos uma grande diferença de idade; eu muito novinha, a Ivone uma senhora cheia de sabedoria e experiência. Logo percebi tratar-se de uma pessoa de princípios e moral muito vincados, nem sempre de fácil contacto, porque o seu grau de exigência era muito elevado, não só para quem estava à sua volta, mas para com ela mesmo.
Não se lamentava do seu cansaço nem de quem a magoasse com qualquer atitude menos simpática; mas também não se inibia de chamar a atenção sobre tudo o que eu ou outra enfermeira qualquer pudéssemos fazer e que ela considerasse pouco correcto, ou até mesmo deselegante.
Fazia gosto e não se poupava a esforços para que todas nós fossemos um exemplo de profissionalismo impecável, cumpridoras de normas militares sem deslizes, posturas e atitudes que se destacassem, de forma a sermos admiradas como grupo.
No meu caso pessoal percepcionei logo na primeira comissão que fiz com ela a sua forma de estar e o seu rigor no desempenho da sua actividade como enfermeira em ambiente masculino e de guerra.
Várias vezes ela me chamou atenção por pequenas rebeldias insignificantes e atitudes que eu tomava, como entrar no helicóptero para ir fazer uma evacuação com o casaco de camuflado pendurado num ombro, de bolsa de enfermagem no outro e de t-shirt branca; era sabido que quando regressasse logo me dizia do perigo em usar a t-shirt em pleno mato pois tornava-me um alvo bem visível, além do aspecto pouco alinhado no uso do uniforme militar a bordo de uma aeronave.
Eu dizia-lhe para ela não se preocupar, porque eu era um alvo que não interessava a ninguém; e quanto ao desalinho do casaco pendurado no ombro, um dia respondi-lhe que só o fazia porque tinha calor, não pelo clima da Guiné, que até era “fresquinho”, mas se calhar por estar a entrar em “menopausa” e ela esboçou um sorriso e respondeu-me:
- A menina gosta muito de brincar.
Eu nunca levava a mal o que ela me dizia, apesar de eu ser mesmo uma periquita ao lado dela; sempre soube apreciar as suas qualidades profissionais sobretudo em termos de organização e de uma verticalidade e sentido de dever pouco comuns, mesmo nessa altura.
Mais tarde, em Angola, as enfermeiras colocadas em Luanda viviam num apartamento de um edifício da Força Aérea destinado a alojar militares e suas famílias. O ambiente era bem mais calmo que o da Guiné, o que nos permitia termos fins-de-semana, irmos à praia, convivermos mais tranquilamente com a comunidade civil ou com famílias de militares.
A Enfermeira Ivone sempre alinhou comigo nas horas de lazer, tal como respeitava se eu não a convidasse para ir comigo quando eu saía com um grupo de amigos ou familiares meus que lá se encontravam na época.
Em Angola eu estava colocada no BCP 21 e ela na Direcção do Serviço de Saúde da Força Aérea. Normalmente eu ia para o Batalhão com farda n.º 2 (saia, camisa e eventualmente blusão) e, claro, boina verde na cabeça. Um dia resolvi colocar num dedo um anel com uma pedra grande verde, que dava um bocado nas vistas; quando ela me viu sair com semelhante adereço, fardada, olhou para o dedo e com ar de espanto diz-me:
- A Rosa esqueceu-se que está fardada? - Eu respondi, não - e acrescentei:
- Não me diga que não é giro… condiz mesmo bem com o verde da boina - e ia mostrando o dedo e dizendo: - É lindo, até devia estar orgulhosa de uma Enfermeira Pára-quedista estar assim tão gira.
Ela respondeu-me:
- Nem por isso - e virou-me as costas. Acredito que se foi rir às escondidas.
Mais tarde comentámos uma série de peripécias deste género que se passaram connosco e fartámo-nos de rir, e com aquele jeito típico dela, depois destas lembranças e passados tantos anos, acabava por dizer:
- A menina era muito brincalhona, nunca consegui zangar-me consigo.
Estou a contar estes episódios porque sempre percebi que por trás daquele ar rigoroso dela estava uma mulher mais tolerante do que parecia, com uma capacidade de organização espantosa, uma noção de ética muito apurada, muito trabalhadora; e nunca a vi fazer uma crítica desagradável ou fofoqueira de ninguém e nem gostava que as pessoas que a rodeavam o fizessem.
Ao longo de todos estes anos mantive sempre contacto com ela, o que me permitiu tomar conhecimento de um espólio fantástico que ela foi recolhendo dos sítios por onde passou e organizando ao longo dos anos, tendo em vista a divulgação da história das Enfermeiras Pára-quedistas de quem ela tanto se orgulhava e que sempre se preocupou em não deixar cair no esquecimento. Foi sempre um bom exemplo para mim.
(Rosa Serra)
Tancos 2005 > I Encontro de Mulheres Boinas Verdes > A Enfermeira Ivone corta o bolo comemorativo
Base Aérea de S. Jacinto, 2007 > III Encontro de Mulheres Boinas Verdes > Da esquerda para a direita: Giselda, Rosa Serra (de branco), Maria Bernardo Vasconcelos (de vermelho e preto), atrás (?), depois Júlia Lemos (camisola florida), Amália Reimão (de branco), Céu Matos Chaves (de amarelo) e Zulmira André. Em baixo, Aida Rodrigues.
Base Aérea de S. Jacinto, 2007 > III Encontro de Mulheres Boinas Verdes > A partir da esquerda: (?), a Rosa Serra (de branco), a Zulmira André (meio tapada), a Maria Bernardo Vasconcelos (de vermelho e preto), Teresa Lamas, a Maria do Céu Matos Chaves (de amarelo), a Júlia Lemos (camisola florida) e a Amália Reimão (de branco). Em baixo estão a Giselda e uma camarada mais nova.
Base Aérea de S. Jacinto, 2007 >III Encontro de Mulheres Boinas Verdes> Giselda, Rosa Serra e Zulmira André
Fotos e legendas enviadas por Miguel Pessoa
Comentário de CV:
Cara Enfermeira Rosa, temos muito prazer em recebê-la na nossa Caserna Virtual, onde imperam os homens, mas onde as senhoras são bem-vindas. Que o diga a Giselda que tem sido acarinhada por todos nós, na medida em que era, até à sua chegada, a única representante da classe das Enfermeiras Pára-quedistas a quem tanto devemos pela nobre missão que desempenhavam nos teatros de guerra.
Apresentamos as nossas saudações de boas-vindas e esperamos que colabore no nosso Blogue, contando as suas histórias, complementando afinal o trabalho já desenvolvido pela nossa camarada Giselda Pessoa.
__________
Nota de CV:
Vd. último poste da série de > 20 de Setembro de 2009 > Guiné 63/74 - P4979: As Nossas Queridas Enfermeiras Pára-quedistas (11): Fartote de hortaliças (Giselda Pessoa)
Olá Sr. Luis Graça.
Sou Rosa Serra, ex-Enfermeira Pára-quedista.
Conforme me foi solicitado aqui vai um pequeno resumo do meu percurso como Enfermeira Pára-quedista.
- Iniciei o meu curso de pára-quedismo em Setembro 1967 tendo este sido interrompido por acidente em instrução. Após estar completamente recuperada, concluí o curso sozinha e fui brevetada em 13 Março de 1968.
- No mesmo mês fui colocada no Hospital da Força Aérea, BA 4 - Ilha Terceira, nos Açores.
- Em Março de 1969 rumei para a Guiné para o BCP 12.
- Em Abril de 1970 fui colocada no BCP 21 em Luanda.
- Em Setembro de 1971 fui nomeada para o RCP, em Tancos, para ministrar um curso de primeiros socorros avançados a soldados pára-quedistas. Após terminada essa formação aos militares pára-quedistas, em Janeiro de 1972 iniciei o curso de instrutores e monitores em pára-quedismo na mesma unidade, o qual terminei em Março do mesmo ano.
- Em Junho de 1972 volto aos Açores, onde fico até Dezembro de 1972.
- Em Janeiro de 1973 fui colocada na 3.ª Região Aérea, tendo estado destacada cerca de um ano no AM-51 em Mueda.
- Em 1 de Março de 1974 rescindi o contrato, deixando de prestar serviço na Força Aérea.
Em relação à Enfermeira Ivone, apenas descrevo em traços gerais o que sempre apreciei nela, contudo não quis alongar-me muito; mas é sem dúvida uma grande Senhora e uma grande referência para as enfermeiras pára-quedistas.
Curiosidades:
Cerca de 20 anos depois de ter saído da Força Aérea, tomei conhecimento de que tive 2 louvores; um dado pelo Comandante da Zona Aérea de Cabo Verde e Guiné e outro pelo Comandante da 3.ª Região Aérea; e nos cursos de pára-quedismo que fiz, exceptuando as 2 semanas do primeiro curso antes do acidente, fiz o curso normal sozinha e no segundo era a única mulher do curso.
Logo que possível tentarei fazer-vos chegar as duas fotos da praxe - uma dos velhos tempos e outra actual. De qualquer modo, suponho que as fotos que o Miguel Pessoa vos enviou poderão ilustrar o texto sobre a Enfª Ivone.
Com os meus cumprimentos
Rosa Serra
ENFERMEIRA IVONE REIS
Tancos, 2005 > Enfermeira Pára-quedista Ivone Reis
Têm-me perguntado várias vezes pela Enfermeira Ivone. Sei também que já há um certo número de pessoas que sabem que ela não tem estado bem de saúde, por isso aqui estou eu para falar um pouco da primeira enfermeira pára-quedista que eu conheci.
Nós, aqueles que a conheceram e que com ela conviveram períodos da sua vida por diversas razões, não a esquecem e no meu caso pessoal tenho bem presente quem foi a Ivone, como sempre a vi e o que eu aprendi com ela.
A Enfermeira Ivone pertence ao grupo das 6 Marias, nome pelo qual ficou conhecido o 1.º curso de Enfermeiras Pára-quedistas portuguesas feito em 1961.
Foi ela que contactou as futuras candidatas, residentes na Cidade do Porto, que em 1967 tinham pedido por escrito à Força Aérea informações sobre cursos para Enfermeiras Pára-quedistas. Foi a Enfermeira Ivone a primeira a deslocar-se ao Porto para conhecer as 4 interessadas na candidatura ao curso, onde eu estava incluída.
Mais tarde, eu, já Enfermeira com boina verde na cabeça, estive em várias comissões com ela. Fazíamos uma grande diferença de idade; eu muito novinha, a Ivone uma senhora cheia de sabedoria e experiência. Logo percebi tratar-se de uma pessoa de princípios e moral muito vincados, nem sempre de fácil contacto, porque o seu grau de exigência era muito elevado, não só para quem estava à sua volta, mas para com ela mesmo.
Não se lamentava do seu cansaço nem de quem a magoasse com qualquer atitude menos simpática; mas também não se inibia de chamar a atenção sobre tudo o que eu ou outra enfermeira qualquer pudéssemos fazer e que ela considerasse pouco correcto, ou até mesmo deselegante.
Fazia gosto e não se poupava a esforços para que todas nós fossemos um exemplo de profissionalismo impecável, cumpridoras de normas militares sem deslizes, posturas e atitudes que se destacassem, de forma a sermos admiradas como grupo.
No meu caso pessoal percepcionei logo na primeira comissão que fiz com ela a sua forma de estar e o seu rigor no desempenho da sua actividade como enfermeira em ambiente masculino e de guerra.
Várias vezes ela me chamou atenção por pequenas rebeldias insignificantes e atitudes que eu tomava, como entrar no helicóptero para ir fazer uma evacuação com o casaco de camuflado pendurado num ombro, de bolsa de enfermagem no outro e de t-shirt branca; era sabido que quando regressasse logo me dizia do perigo em usar a t-shirt em pleno mato pois tornava-me um alvo bem visível, além do aspecto pouco alinhado no uso do uniforme militar a bordo de uma aeronave.
Eu dizia-lhe para ela não se preocupar, porque eu era um alvo que não interessava a ninguém; e quanto ao desalinho do casaco pendurado no ombro, um dia respondi-lhe que só o fazia porque tinha calor, não pelo clima da Guiné, que até era “fresquinho”, mas se calhar por estar a entrar em “menopausa” e ela esboçou um sorriso e respondeu-me:
- A menina gosta muito de brincar.
Eu nunca levava a mal o que ela me dizia, apesar de eu ser mesmo uma periquita ao lado dela; sempre soube apreciar as suas qualidades profissionais sobretudo em termos de organização e de uma verticalidade e sentido de dever pouco comuns, mesmo nessa altura.
Mais tarde, em Angola, as enfermeiras colocadas em Luanda viviam num apartamento de um edifício da Força Aérea destinado a alojar militares e suas famílias. O ambiente era bem mais calmo que o da Guiné, o que nos permitia termos fins-de-semana, irmos à praia, convivermos mais tranquilamente com a comunidade civil ou com famílias de militares.
A Enfermeira Ivone sempre alinhou comigo nas horas de lazer, tal como respeitava se eu não a convidasse para ir comigo quando eu saía com um grupo de amigos ou familiares meus que lá se encontravam na época.
Em Angola eu estava colocada no BCP 21 e ela na Direcção do Serviço de Saúde da Força Aérea. Normalmente eu ia para o Batalhão com farda n.º 2 (saia, camisa e eventualmente blusão) e, claro, boina verde na cabeça. Um dia resolvi colocar num dedo um anel com uma pedra grande verde, que dava um bocado nas vistas; quando ela me viu sair com semelhante adereço, fardada, olhou para o dedo e com ar de espanto diz-me:
- A Rosa esqueceu-se que está fardada? - Eu respondi, não - e acrescentei:
- Não me diga que não é giro… condiz mesmo bem com o verde da boina - e ia mostrando o dedo e dizendo: - É lindo, até devia estar orgulhosa de uma Enfermeira Pára-quedista estar assim tão gira.
Ela respondeu-me:
- Nem por isso - e virou-me as costas. Acredito que se foi rir às escondidas.
Mais tarde comentámos uma série de peripécias deste género que se passaram connosco e fartámo-nos de rir, e com aquele jeito típico dela, depois destas lembranças e passados tantos anos, acabava por dizer:
- A menina era muito brincalhona, nunca consegui zangar-me consigo.
Estou a contar estes episódios porque sempre percebi que por trás daquele ar rigoroso dela estava uma mulher mais tolerante do que parecia, com uma capacidade de organização espantosa, uma noção de ética muito apurada, muito trabalhadora; e nunca a vi fazer uma crítica desagradável ou fofoqueira de ninguém e nem gostava que as pessoas que a rodeavam o fizessem.
Ao longo de todos estes anos mantive sempre contacto com ela, o que me permitiu tomar conhecimento de um espólio fantástico que ela foi recolhendo dos sítios por onde passou e organizando ao longo dos anos, tendo em vista a divulgação da história das Enfermeiras Pára-quedistas de quem ela tanto se orgulhava e que sempre se preocupou em não deixar cair no esquecimento. Foi sempre um bom exemplo para mim.
(Rosa Serra)
Tancos 2005 > I Encontro de Mulheres Boinas Verdes > A Enfermeira Ivone corta o bolo comemorativo
Base Aérea de S. Jacinto, 2007 > III Encontro de Mulheres Boinas Verdes > Da esquerda para a direita: Giselda, Rosa Serra (de branco), Maria Bernardo Vasconcelos (de vermelho e preto), atrás (?), depois Júlia Lemos (camisola florida), Amália Reimão (de branco), Céu Matos Chaves (de amarelo) e Zulmira André. Em baixo, Aida Rodrigues.
Base Aérea de S. Jacinto, 2007 > III Encontro de Mulheres Boinas Verdes > A partir da esquerda: (?), a Rosa Serra (de branco), a Zulmira André (meio tapada), a Maria Bernardo Vasconcelos (de vermelho e preto), Teresa Lamas, a Maria do Céu Matos Chaves (de amarelo), a Júlia Lemos (camisola florida) e a Amália Reimão (de branco). Em baixo estão a Giselda e uma camarada mais nova.
Base Aérea de S. Jacinto, 2007 >III Encontro de Mulheres Boinas Verdes> Giselda, Rosa Serra e Zulmira André
Fotos e legendas enviadas por Miguel Pessoa
Comentário de CV:
Cara Enfermeira Rosa, temos muito prazer em recebê-la na nossa Caserna Virtual, onde imperam os homens, mas onde as senhoras são bem-vindas. Que o diga a Giselda que tem sido acarinhada por todos nós, na medida em que era, até à sua chegada, a única representante da classe das Enfermeiras Pára-quedistas a quem tanto devemos pela nobre missão que desempenhavam nos teatros de guerra.
Apresentamos as nossas saudações de boas-vindas e esperamos que colabore no nosso Blogue, contando as suas histórias, complementando afinal o trabalho já desenvolvido pela nossa camarada Giselda Pessoa.
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Nota de CV:
Vd. último poste da série de > 20 de Setembro de 2009 > Guiné 63/74 - P4979: As Nossas Queridas Enfermeiras Pára-quedistas (11): Fartote de hortaliças (Giselda Pessoa)
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