sexta-feira, 9 de julho de 2010

Guiné 63/74 - P6701: Notas de leitura (127): Caminhos Perdidos na Madrugada, de Fernando Vouga (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso Camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil At Inf, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 1 de Julho de 2010:

Queridos amigos,
Encontrei-me, cheio de alegria, com o Embaixador Henriques da Silva, ele está a reflectir na sua adesão à tertúlia. Escreve que se farta e qualquer dia temos aí um livro com bastantes surpresas. Trocámos empréstimos, tenho aqui quilos de livros para ler, vou começar pelo “Polón Di Brá”, do João Carlos Gomes, que diz ser um documento de reflexão sobre uma guerra devastadora, desnecessária e justamente imposta ao povo da Guiné Bissau e datado de Novembro de 1998.

Um abraço do
Mário


Caminhos perdidos da madrugada:

Em Bafatá, 27 de Junho de 1971


por Beja Santos

Fernando Vouga é escritor e militar (coronel reformado). Como capitão, fez três comissões em África nos três teatros de operações: em Moçambique, 1966 a 1968; na Guiné, de 1969 a 1971; e em Angola, de 1972 a 1974. O seu romance “Caminhos Perdidos na Madrugada” tem o fundamental da sua acção a decorrer em Moçambique, já no termo da guerra colonial. Na plantação “Chá Molungo” os acontecimentos atropelam-se à medida que em Portugal o processo da descolonização começa a ganhar contornos. Os colonos movimentam-se, mas também crescem a influência dos movimentos de libertação. Nenhum autor esquece a sua identidade ou prescinde de falar de si. É o que faz Fernando Vouga recorrendo a um alter-ego que se movimenta em diferentes cenários: a Academia Militar na Amadora, um cemitério em Castelo Branco, as matas perigosas da região dos Dembos, em Angola, um ataque à cidade de Bafatá, Junho de 1971, a guerrilha maconde no planalto de Mueda. Está aqui uma parte relevante da experiência do autor na guerra colonial.

Para efeitos de recensão, vamos acompanhar os acontecimentos de Bafatá, vistos pelo capitão Álvaro Santos (quem sabe, Fernando Vouga).

A 27 de Junho de 1971, o general António de Spínola desce de um helicóptero em Bafatá, com um ar grave e carrancudo. Não se perde em informalidades, dirige-se de imediato para o Comando do Sector Leste da Guiné.

Na véspera, cerca das onze e meia da noite, Bafatá fora atacada cerca de dez minutos. Em termos militares, tratou-se de um acontecimento pouco relevante mas revestiu-se de uma grande importância psicológica e política. Era a primeira vez que o coração do “chão fula” era atacado, punha-se a nu a fragilidade da sua segurança.

O tenente-coronel que comandava o batalhão local foi sujeito a um ataque cerrado pelo homem do pingalim e do monóculo. O autor refere que grande parte do contingente de guerrilheiros que participara no ataque era constituída por antigos soldados do Exército português, mais propriamente elementos de uma companhia de Comandos que participara na Operação Mar Verde e que ficara em Conacri, feitos prisioneiros. É de pensar que se trata de pura ficção, todos os relatos apontam para o fuzilamento dos elementos do pelotão do tenente Januário que se entregaram às autoridades da Guiné Conacri. O capitão Álvaro Santos era comandante de uma companhia de caçadores aquartelada em Bafatá, assistiu estarrecido à discussão entre Spínola e o seu comandante de batalhão, achou aquela humilhação gratuita, mais a mais em frente de oficiais de patente inferior. De qualquer forma, o capitão Álvaro Santos nutria por Spínola consideração e respeito. Achava-o dotado de uma imaginação prodigiosa, de uma vontade de ferro, de uma energia inesgotável e, sobretudo, com uma fé cega no seu próprio sucesso. Este Spínola era um homem tão crédulo e estava tão confiante no brilhantismo dos resultados da sua acção que numa manhã de Abril de 1970 reunira no Palácio do Governo todos os oficiais com responsabilidades de comando de companhia ou de escalão superior, bem como todos os oficiais de operações, para lhes anunciar o fim da guerra. Durante a reunião, informou que estava a ser levados a efeito contactos com os chefes guerrilheiros com o objectivo de se pôr termo às hostilidades, tendo mesmo dado instruções precisas a todos para se prepararem para receber os guerrilheiros que, dentro de pouco tempo, começariam a entregar-se. Álvaro Santos assistira à reunião. E o autor escreve:

“Álvaro, que regressara de Angola com as suas convicções seriamente abaladas, com esta notícia do fim da guerra na Guiné ganhou novas esperanças, tanto para si como para a pátria que jurara defender. Mas tudo se desvaneceu poucos dias depois, quando soube que, algures nas matas de Teixeira Pinto, quatro oficiais portugueses tinham sido barbaramente chacinados. Precisamente aqueles que, ao longo de vários encontros com um grupo de guerrilheiros do PAIGC, negociavam a sua rendição às tropas portuguesas. E assim terminaram tragicamente as inabaláveis certezas de Spínola que, pelos vistos, tomou a árvore pela floresta. Contudo, o general tinha razão num ponto: a sua política desequilibrara muitas populações em seu favor, e o PAIGC tivera alguns amargos de boca. Assim, é de toda a justiça reconhecer que, no que respeita à melhoria das condições de vida do povo da Guiné e à satisfação de muitas das suas reivindicações, a sua actuação foi notável”.

“Caminhos Perdidos na Madrugada”, de Fernando Vouga, DG edições, 2ª edição, Abril de 2010.
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 8 de Julho de 2010 > Guiné 63/74 - P6694: Notas de leitura (126): Guineense Comando Português, de Amadú Bailo Djaló (Mário Beja Santos)

Guiné 63/74 - P6700: Viagem à volta das minhas memórias (Luís Faria) (30): Bissau, Paraíso na guerra

1. Mensagem de Luís Faria (ex-Fur Mil Inf MA da CCAÇ 2791, Bula e Teixeira Pinto, 1970/72), com data de 10 de Maio de 2010:

Amigo Vinhal
Saúde boa?

O mar da vida tem andado meio encapelado e cavalgar-lhe as ondas obriga a concentração de excepção, por vezes a gestão à hora de tempo e disposição.

Como compromissos são compromissos e até ver sempre gostei e os soube cumprir, cá te mando mais um troço de “Viagem …” - que me continua a levar àquela terra que, com as suas contradições, faz parte única na minha vida - que espero possa merecer atenção dos Tertulianos.

Um grande abraço
Luís Faria


Viagem à volta das minhas memórias (30)

Bissau – Paraíso na guerra


As “férias” que felizmente nos tinham sido impostas nesta espécie de “capital mundana” iam decorrendo sem sobressaltos inesperados permitindo-me(nos) usufruir da possibilidade de viver uns dias, regendo-nos por parâmetros diferentes mas bem melhores, dos a que até ali estávamos habituados por força de circunstâncias várias.

Na verdade e talvez devido às situações intensas por que tínhamos passado durante a quase dúzia de meses antecedentes, a nossa maior preocupação por aquelas latitudes não era de facto a possibilidade de confrontos belicistas na cidade e antes o “asneirar” em termos de RDMs e afins ou em conflitos escusados e eventualmente puníveis, o que era de certo modo fácil de poder acontecer, bastando para isso uma boca menos própria na altura errada, quem sabe uma falta de “palada” a um qualquer guerreiro combatente de gabinete com patente superior - por norma os mais achacados a gostar de demonstrar a sua força, valor e valentia - que estivesse maldisposto.

Nas digressões “folgosas” e especialmente para o Pessoal fardado, o comportamento e o atavio também eram levados em conta, não fossem os amigos PMs implicar e vir a criar problemas escusados e “sacrifícios” inúteis e indesejados.

Em suma, o lema era tentar passar aquelas “férias” sem dar azo a eventuais punições coartadoras, cumprir com o rigor necessário as missões atribuídas e… gozar o mais possível a estadia que sabíamos ser “sol de pouca dura”!

Os dias iam-se esgotando, as folgas foram sendo aproveitadas e vividas mais ou menos intensamente em conformidade com as ofertas que a cidade nos proporcionava, as disponibilidades e a disposição de cada um.

Desses tempos recordo o cirandar pela cidade, de ”cu alçado” ou apeado, retendo imagens e situações que, na sua grande maioria talvez por não me terem marcado (?) suficientemente, se foram esbatendo e esfumando com o passar dos anos.

Recordo o ir jantar ao “Pelicano” com uns compinchas e já com uns copitos, propositadamente pedir ao empregado guineense uma lagosta fresquinha e “implicar“ com ele quando nos trouxe o dito crustáceo indevidamente… já que o que se tinha pedido era uma garrafa de vinho “Lagosta” fresquinha. Passados uns tempos pedia-se de novo uma lagosta fresca e vindo uma garrafa… implicava-se energicamente dizendo que tínhamos pedido era uma lagosta e não vinho… enfim, infeliz do empregado que já deitava lume pelos olhos mas… o cliente tinha sempre razão e passou a perguntar se era garrafa ou a outra !!!!

Que saudades da lagosta e do camarão àqueles preços e qualidade!!!

Recordo de uma das vezes ter ido beber umas cervejas a um café ou pensão (?) que não recordo o nome, situada numa paralela à esquerda (sentido marginal Palácio) da Av. da República. Por lá estava, sentado na mesa ao lado, o Sargento Teixeira dos Comandos, cabeça rapada e impressionou-me o seu olhar frio de gelar! Cá fora e à entrada da porta, dois pretos travam-se de razões e lutam perante a passividade geral. A dada altura um deles cai por cima de uma bicicleta lá parada e faz um golpe fundo e sangrento na almofada do “dedão do pé”. Sem mais nem para quê senta-se na “espécie de passeio”, saca de uma navalha e… corta o resto da “almofada” deitando-a para a rua!!! Levanta-se e vai embora como se nada fosse.

Lembro ter ido ao UDIB assistir à actuação do animado “Bana”, pelos vistos “coqueluche” à época. Gostei, mas gostei mais das bajudas a arrastar o pé na dança, coisa que me esforcei por acompanhar mas… nem tudo se consegue sempre!!

Conheci o colorido e extaseante mercado de Bandim(?) onde tudo se vendia e onde comprei uma estatueta (busto) facetada de bajuda e outra de um macaco em que o artesão estava a trabalhar e que não deixei acabar, por gostar dela como estava. Claro que não resisti a umas belas peles de cobra (surucucu?) e a uns panos coloridos.

Estatuetas inacabadas-Bajuda e macaco sentado – Guiné-Bissau-M.Bandim 1971
Foto: Luís faria

Lembro alguns bons momentos passados em tons de chocolate, nessa cidade também de “perdição”!

O tempo ia-se volatilizando sem sobressaltos especiais.

Como a excepção confirma a regra, momentos vividos por elementos do 4.º GCOMB num patrulhamento ao final do dia, vieram quebrar um pouco a rotina pardacenta das missões atribuídas, situação essa que ainda hoje é narrada pelos intervenientes e que poderia ter resultado em desfecho complicado e grave, não fora a experiência e presença de espírito das partes e talvez também o modo como encarávamos aquela estadia.

Erros involuntários potencialmente fatais, que aconteciam na guerra e não deveriam acontecer e que muitas das vezes se não assumiam!

Elementos do 4.º GCOMB têm por missão patrulhar em zona pré-estabelecida e assim o fazem sem sobressaltos. Nada se vai passando, como era previsível.

Num descanso do patrulhamento preventivo na esquerda da estrada Bissau – João Landim, lá para as bandas dos aquartelamentos, o pessoal acomoda-se em segurança julgada conforme à situação. A tarde vai alta, a chuva cai em bátegas intermitentes. A dada altura o impensável (?) acontece e um grupo de “turras” (não estávamos lá por essa eventualidade??) aparece de supetão.

Conta o Azevedo:

- Estava descontraído e de repente começo a ver uma serie de “pretos maltrapilhos” armados, descalços e de farda meia rota… apanhei a arma e… um susto do cara…” !!

Recorda o Lobo:

- Apareceu uma chusma de “pretos” com armas deles(IN), mal amanhados e alguns descalços e quando nos vêem dizem: “somos Portugueses, somos Comandos, boa-tarde ” … sois portugueses mas é a pqvp, penso!!! Aperro a arma …”

Alguém os reconhece e avisa:

- São os Comandos Africanos disfarçados.

Seguem caminho sob o olhar curioso e vigilante do pessoal menos convencido e tudo acaba felizmente em bem, ficando um susto valente para recordar na vida!

Duas forças amigas que se cruzam na mesma zona sem prévio conhecimento?!! Fosse noite e talvez a estória tivesse sido outra.

A todos um abraço e até Teixeira Pinto, de novo
Luís Faria
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 16 de Maio de 2010 > Guiné 63/74 - P6403: Viagem à volta das minhas memórias (Luís Faria) (29): Do Inferno ao Paraíso

Guiné 63/74 - P6699: Parabéns a você (129): Viva o senhor professor Peixoto, membro do selectíssimo Clube dos SEXAS! (Luís Graça)



Monte Real, Palace Hotel, 26 de Junho de 2010. V Encontro Nacional do Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné > Uma foto, muito feliz, do Manuel Carmelita, grande fotógrafo: o Joaquim e a Margarida, o nosso casalinho de professores de Penafiel, apanhados num belíssimo momento de descontracção e de ternura... O Joaquim é também habitué da Tabanca de Matosinhos, frequentada igualmente (e fotografada) pelo Manuel Carmelita. Hoje faz 61 anos. Está connosco há uma ano. A melhor prenda que lhe podíamos era encontrar gente da sua açoriana CART 3414, que andou por Bafatá e Saré Bacar (1971/73).


Fotos: © Manuel Carmelita / Carlos Vinhal  (2010). Direitos reservados


1.  Em 11 de Julho do ano passado, apresentava-se formalmente à Tabanca Grande o senhor professor Joaquim Carlos Rocha Peixoto, casado com outra senhora professora, Margarida Peixoto, um casal encantador que entretanto veio a tornar-se amigo e visita da nossa família no Norte (Candoz, Paredes de Viadores, Marco de Canaveses).

A explicação é fácil: primeiro, o Joaquim foi Fur Mil Ap Inf, com o curso de Minas e Armadilhas, na CCAÇ 3414 (Bafatá e  Sare Bacar, 1971/73) (*), e andou lá minhas bandas da zona leste...  Depois, mora em Penafiel e é professor do ensino básico, 1º ciclo, tendo leccionado durante anos na Casa do Gaiato, em  Paços de Sousa. Aí o professor também foi aluno, recebeu lições grandes de vida, por que naquela instituição acolhem-se e educam-se meninos da rua, alguns dos quais com dramáticas histórias de abandono, violência, exclusão social...

O Joaquim ainda está no activo, enquanto a Margarida já se reformou. O Joaquim é um homem discreto, sensível, reservado. A Margarida é uma típica nortenha, de verbo fácil e a sensibilidade à flor da pele. Já tive o privilégio de estar com eles, na sua belíssima casa nessa belíssma terra, que é Penafiel da qual sabia pouco, no tempo da guerra colonial: era apenas, para mim, a capital do vinho verde (ah!, como bem sabia, o verdinho de Penafiel em Bambadinca!).

Hoje Penafiel, a dois passos do Porto,  é o coração da Rota do Românico do Vale do Sousa, uma região que merece uma prolongada visita não só pelas suas gentes, gastronomia e paisagens naturais como sobretudo pelo seu património edificado, e nomeadamente o Românico de Resistência, vasto, rico e único  (Sugestão de roteiro para visitar os 21 monumentos que compõem a Rota do Românico do Vale do Sousa: 4 mosteiros beneditinos, 10 igrejas, 1 ermida, 2 pontes, 2 torres e 2 monumentos funerários dos quais só existem 6 exemplares conhecidos em Portugal).

Por outro lado, a Margarida está ligada por laços afectivos à freguesia de Paredes de Viadores, no vizinho concelho de Marco de Canaveses, em cuja escola (a Escola de Passinhos / Foz) trabalhou um ano, o primeiro ano da sua vida como professora primária (como então se chamavam as nossas queridas professoras).

Margarida Peixoto, também natural de Penafiel (com 6 anos vividos em Angola, dos 10 aos 16, em plena guerra colonial), voltou a Paredes de Viadores, em 2009,  para reencontrar e homenagear os seus "meninos e meninas" da Escolinha de Passinhos / Foz, no já longínquo ano de 1972... Tinha acabado de sair do Magistério. Foi o seu primeiro ano de trabalho. Tinha cerca de três dezenas de alunos, de ambos os sexos, da 1ª à 4ª classe... Nunca mais se esquecerá deles, das suas caras, dos seus nomes, das suas histórias...

Conhecera a Alice por ocasião do IV Encontro Nacional do Nosso Blogue,  na Quinta do Paul, Ortigosa, Monte Real, Leiria, em 20 de  Junho de 2009. Por um feliz acaso: apresentei-as por que eram da mesma região... Hoje são duas belas amigas. A Alice proporcionou logo a seguir, na sua casa,  nesse verão o reencontro da senhora professora com alguns dos seus antigos meninos e meninas... Eu e o Joaquim estivemos naturalmente presentes... Encantados. Foi um momento único, irrepetível. Como têm sido, para muitos de nós, alguns momentos aqui proporcionados pelo nosso blogue... De tal modo que já paga direitos de autor a frase  O mundo é pequeno e o nosso blogue... é grande. A que se deve acrescentar: Honni soit qui mal y pense  (sem pretensões nem maldade...).

Espero reencontrá-los, de novo, este mês, ou em Penafiel, ou em Candoz, Paredes de Viadores, na nossa casa e na festa da Senhora do Socorro, daqui a quinze dias. Mas antes disso temos que celebrar aqui a festa de anos do Joaquim, membro já do nosso selectivo Clube dos SEXAS.

Em meu nome, dos demais editores e do resto da Tabanca Grande, aqui fica aquele Alfa Bravo que já é marca distinta no tratatamento social entre os amigos e camaradas da Guiné que se reunem sob o frondoso poilão da Tabanca Grande.

Um Alfa Bravo muito especial, comprido, caloroso e largo, tão comprido como o Rio Geba, tão caloroso como o Rio Douro, tão largo como o Rio Tejo que é o rio da minha aldeia... Um beijinho ternurento da Alice para ti e para a Margarida. Esperamos revê-los em breve. Infelizmente, em Monte Real, como sempre, o tempo de convívio é como a areia da ampulheta...Foi bom mas foi curtíssimo... Resta-nos os reencontros em Penafiel, em  Candoz, no Blogue, no Facebook...

Joaquim, hoje não é dia de falar da tropa. Bebo um copo à tua longevidade e saúde. Faz o favor de continuares a ser feliz! Parabéns! Teu amigo e camarada,

Luís Graça

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Nota de L.G.:

(*) Vd. poste de 11 de Julho de 2009 > Guiné 63/74 - P4667: Tabanca Grande (160): Joaquim Peixoto, ex-Fur Mil Inf MA da CCAÇ 3414 (Bafatá e Sare Bacar, 1971/73)

Vd. poste anterior desta série > 1 de Julho de 2010 > Guiné 63/74 - P6665: Parabéns a você (128): Mensagens para a Tertúlia (José Firmino / Manuel Maia)

quinta-feira, 8 de julho de 2010

Guiné 63/74 - P6698: José Corceiro na CCAÇ 5 (14): Emissor receptor AN/PRC-10

1. Mensagem de José Corceiro (ex-1.º Cabo TRMS da CCAÇ 5 - Gatos Pretos, Canjadude, 1969/71), com data de 6 de Julho de 2010:

Camaradas,

Achei piada à foto do Sousa de Castro com o E/R AVP-1, no Convívio da Tabanca Grande.
Esta imagem entusiasmou-me a escrever algo sobre o pai do AVP-1, que é o AN/PRC-10, que têm a mesma gama de frequências e comunicavam muito bem um com o outro.



NOÇÕES DE TRANSMISSÕES DO EMISSOR RECEPTOR AN/PRC-10
De entre os equipamentos de transmissões utilizados no TO de Guerra das ex-Colónias, o mais apropriado para comunicações com os meios aéreos, era sem dúvida o Emissor/Receptor AN/PRC-10.
Vamos então falar um pouco, concretamente, sobre este equipamento de transmissões e as suas virtualidades.
Particularmente já entraram em contacto comigo meia dúzia, de “tertulianos”, da “Tabanca Grande”, para me colocaram questões sobre o E/R (Emissor/Receptor) AN/PRC-10.
Um camarada até me disse que tem dois aparelhos em seu poder, que adquiriu no mercado, mas que não tem o folheto das descrições técnicas nem o de instruções, e perguntou-me se eu o podia ajudar.
Eu respondi-lhe que efectivamente perante o aparelho, não me seria muito difícil lidar com ele e disse-lhe também que tenho a certeza que possuo um livro, sobre transmissões, que contém as descrições técnicas e seu funcionamento, que lho disponibilizaria caso o encontrasse, só que entre os muitos livros que tenho, distribuídos por diversos locais, tem sido difícil localizá-lo e até ao momento não sei onde o livro “atabancou”.

Atendendo ao que ainda me lembro do PRC-10 e apoiando-me em alguns apontamentos que na época registei, quando tirei a especialidade de transmissões, vou tentar em traços gerais dar algumas noções básicas técnicas e teóricas, sobre as potencialidades e funcionamento deste aparelho.

Fotos 1 e 2
O AN/PRC-10 é um equipamento de transmissões portátil, com potencialidades para poder ser instalado num posto de rádio, assim como pode ser montado numa viatura ou num meio aéreo, visto vir equipado com os respectivos acessórios para as diferentes necessidades.
“ O AN/PRC-10 é um emissor receptor móvel, de frequência modelada, praticamente impune às interferências de ruídos parasitas nas suas comunicações, destaca-se a qualidade sonora comparativamente com aparelhos de amplitude modelada.
Foi concebido essencialmente, para comunicações de terra para meios aéreos e vice-versa, tem uma boa qualidade sonora e as ondas de difusão neste meio, terra ar, não têm praticamente obstáculos físicos, aos quais as ondas de frequência modelada são sensíveis.
Para comunicar em terra neste teatro operacional, plano e com arvoredo, o seu alcance é limitado, não só pela potência do equipamento emissor que é fraco em watts (0,9W), mas também devido às características das suas ondas, frequência modelada, cuja propagação é prejudicada por obstáculos físicos; para obstar a esta característica negativa, nos Aquartelamentos, há necessidade de montar um suporte físico, mastro, com altura razoável, com uma antena vertical instalada no topo do mastro, que optimiza a recepção e emissão do AN/PRC-10.
Tem ainda um outro inconveniente nas comunicações, o chamado efeito de captura, isto é, perante dois equipamentos a emitir na mesma frequência para um terceiro equipamento receptor, (central) este selecciona o sinal de maior potência ignorando o mais fraco.” (Descrição que fiz no meu artigo, Poste – 6036).
A gama de frequência do AN/PRC -10, permite-lhe que possa ser sintonizado na faixa de frequência compreendida entre a 38 e 54,9 Mc/s (Megaciclos por segundo) em FM (Frequência Modelada). A emissão é em fonia.
O Emissor e o Receptor são individuais, mas estão dentro do mesmo invólucro que se separa da caixa acondicionadora da Pilha de alimentação, (BA 279U) por dois ganchos-mola laterais.
A Pilha é uma unidade de alimentação complexa, pois tem diversos terminais, (alvéolos) com diferentes valores de tensão, (voltagem) consoante é para alimentar um ou outro componente do equipamento.
A alimentação é normalmente feita pela pilha própria, que tem uma capacidade de armazenamento de energia, que lhe permite debitar corrente por um espaço de tempo muito próximo de 25 horas em funcionamento.
Compreende-se que na função de emissor, as exigências energéticas de intensidade são muito maiores, pelo que o consumo de corrente é bem mais acentuado.

Para tirar o máximo de rendimento na emissão e recepção do equipamento e melhorar a propagação das suas ondas electromagnéticas, a antena neste equipamento tem que ser montada sempre na vertical, cuja difusão, do sinal, é uniforme em todas as direcções. pelo que não precisa de orientação.


Fotos 3, 4 e 5
O alcance de emissão do aparelho depende do tipo de antena utilizada, dos acidentes geográficos e das condições atmosféricas, (humidade relativa, nebulosidade, energia estática de ionização etc.).
É aceitável que em condições, consideradas padrão, com a antena tubular segmentada, (por secções) a maior, as suas emissões se propaguem e sejam captadas com qualidade razoável a uma distância de 8 a 10 km.
Pode acontecer, em condições excepcionais, sem obstáculos, em que até uma nuvem pode servir de espelho reflector e direccionar o sinal na orientação favorável, optimizá-lo, de forma que o alcance da onda electromagnética irradiada pela antena do emissor, possa ser captada por um receptor até cerca de 15 km de distância.
Em Canjadude, em 1971, pode-se testemunhar o seguinte: Durante uma flagelação do inimigo ao Aquartelamento, no dia 21 de Julho de 1971 ao escurecer, o fogo do IN danificou as duas antenas horizontais existentes do AN/GRC-9, que estavam instaladas e suportadas pelos ramos do embondeiro grande, que estava ao lado do campo de futebol e de uma mangueira que estava junto da Parada Alferes Gamboa. (O nome desta Parada, era uma homenagem ao Alferes Augusto Manuel Casimiro Gamboa, que segundo se dizia, já após o término da sua comissão de serviço na Guiné, perdeu a vida numa emboscada do IN, no dia 14 de Dezembro 1967, quando a coluna que o transportava de Canjadude para Nova Lamego sofreu um ataque, em Uelingará, entre Canjadude e Nova Lamego. Contava-se em Canjadude, que foi todo esquartejado no tórax para lhe arrancarem o coração, assim como o despojaram de todos os seus haveres).
Ora, com as antenas danificadas, o Aquartelamento ficou sem transmissões, utilizando o equipamento que era tradicional usar para comunicar com Nova Lamego, pois não tínhamos suporte físico para difundir e captar o sinal hertziano.
Recorreu-se ao PRC-10 que estava no Posto de Rádio, por norma utilizado para comunicar com os meios aéreos, que era servido para a emissão e recepção, por uma antena que estava instalada verticalmente no topo de um mastro com espias, que devia ter para cima de 20m de altura, que por acaso não ficou inutilizado.
Conseguiu-se comunicar com o PRC-10 com Nova Lamego, que dista de Canjadude mais de 20km. As condições de fonia, ainda que com algumas deficiências eram aceitáveis, pelo que a CCAÇ. 5, teve toda a noite comunicações com Nova Lamego.

Foto 6
O equipamento AN/PRC-10 tem três fichas terminais localizadas no painel de comandos para entrada/saída de sinal (de) e para as antenas:
SHORT ANT – Antena Curta que se deve utilizar quando o equipamento está a ser utilizado em caminhada “portátil” pelo operador, tipo mochila, e neste caso deve ser utilizado na base da antena a mola em espiral, para poupar a antena a danos causados no embate contra obstáculos e para a manter na vertical. Com esta antena as emissões dificilmente serão captadas a mais de 4km.
LONG ANT - Antena Comprida segmentada (por secções) feita de cobre, (maior condutibilidade) que devido ao seu comprimento, na ordem dos três metros, quando em movimento deve ser montada numa base elástica, para não se inutilizar ao ir de encontro contra os entraves. Com esta antena as ondas não ultrapassarão os 10km.
AUX ANT - Antena Auxiliar para permitir a localização dos emissores.
NOTA – A antena é o dispositivo físico, que irradia ou capta do espaço a energia transportada sob a forma de ondas electromagnéticas.

NOTA – A antena vertical irradia ondas electromagnéticas em todas as direcções por igual, por isso não há necessidade de orientação, como acontece nas antenas horizontais. Nestas, o plano horizontal definido pela intercepção da antena do emissor, deve formar um rectângulo quando intercepta a antena do receptor. Ou dito de outra maneira, as antenas horizontais de dois postos de rádio, para optimizar a comunicação entre eles, devem ser paralelas e devem ter um determinado comprimento em função da frequência de E/R. Mas isto de orientação, como se pode inferir é teórico, porque obrigaria o posto director a ter tantas antenas quantos os postos satélites, (dirigidos) caso a localização destes não seja em fila (linha).
Os terminais Short e Long Ant, são comuns ao emissor e ao Receptor, por essa razão também quando o equipamento está a emitir não pode receber e vice-versa, por partilharem a mesma antena e outros componentes electrónicos. O interruptor, no microtelefone, serve para fazer a comutação de recepção para emissão, dai a razão porque em transmissões quando se ia terminar a emissão, se dizia, “Escuto” que significava comutar para a recepção o equipamento.

Foto 7
Descrição do painel de comandos:
Na face topo do equipamento temos o painel onde estão localizados os comandos que são:
- Do lado esquerdo temos os três terminais de antena já atrás referenciados;
- POINTER ADJUST – Ajustamento da Referência da Escala; faz deslocar a referência da escala de frequências. Janela para poder ver o ponteiro que indica a escala da frequência.
- TUNNING – Comando de Sintonia; para fixar e fazer procura da frequência do Emissor-Receptor.
- VOL – Comando do Volume; para regular o volume da recepção.
- SQUELCH – Limitador de Ruídos; destinado a eliminar o ruído de fundo.
- AUDIO – Tomada para o Microauscultador;
- POWER – Comutador Geral; - com as posições:
- OFF – Desligado.
- REMOTE – Para o Comando à Distância.

- ON – Ligado.
- CAL & DIAL LITE - Destinado à calibração e iluminação do quadrante.
- DIAL LOCK – Fixador do Comando de Sintonia.
Nota – Tem uma placa destinada à inscrição das frequências de trabalho. (rectângulo definido na superfície do painel de Comandos.)
Nota - O interruptor que comuta da recepção à emissão está localizado no microtelefone.
Para ligar o aparelho depois de já termos colocado a Pilha realizamos as seguintes operações:
- Colocar o comando limitador de ruído – SQUELCH - na posição desligado - OFF.
- Rodar o comando de volume – VOL - para o máximo – todo para a direita.
- Colocar o comutador geral – POWER - em – ON.
- Calibrar a escala de frequência. Este paço serve para verificar se a referência da escala de frequência está correcta.
- Libertar o comando de sintonia – TUNNING – rodando o bloqueador deste – DIAL LOCK – em sentido contrário ao movimento dos ponteiros do relógio.
- Rodar o comando de sintonia –TUNNING - até ao ponto de calibração (indicado a vermelho no mostrador) mais próximo da frequência em que vai trabalhar.
- Colocar o comando de volume – VOL – na posição 10 caso o não tenha feito antes.
- Colocar o comando limitador de ruído – SQUELCH – em desligado – OFF – se o não fez anteriormente.
- Colocar e segurar o comutador – POWER – na posição – CAL & DIAL LITE – e com o microtelefone no ouvido rodar o comando de sintonia até extinguir o silvo que se ouve para um e outro lado do ponto de extinção deste.
- Soltar o comutador geral – POWER – que automaticamente volta à posição – ON.
- Se a referência do mostrador não indicar a frequência de calibração, rodar o ajustamento da referência – POINTER ADJUST – até que este fique rigorosamente sobre o ponto de calibração escolhida.
NOTA – Nunca se deve carregar no comutador de emissão-recepção do microtelefone com o comutador geral na posição – CAL & DIAL LITE.
- Soltar o comando de sintonia – TUNNIG – actuando no fixador do comando de sintonia –DIAL LOCK.
- Rodar o comando de sintonia até a frequência de trabalho ficar debaixo da referência.
- Fixar o comando de sintonia actuando em – DIAL LOCK.
- Afinação do limitador de ruídos:
- Rodar lentamente para a direita o comando limitador de ruídos – SQUELCH – até que deixe de ser ouvido no auscultador do microtelefone o ruído de fundo. Parar logo que o ruído se extinga, pois continuando, a sensibilidade do aparelho é reduzida com prejuízo da recepção. As operações anteriores correspondem à fixação e ajustamento da frequência do emissor e receptor e à ligação de alimentação.
- O aumento do volume de som só é eficaz na recepção rodando o comando do volume para a direita no sentido dos números mais elevados.
- Para emitir premir o interruptor de emissão-recepção do microtelefone e falar no microfone mantendo este afastado dos lábios 5 a 8 cm.
- Para desligar rodar o comutador – POWER – para – OFF.
- Retirar a pilha quando o aparelho estiver inactivo por período prolongado.
A explicação que acabo de fazer é em função do aparelho que conheci, na época em que fui militar do Exército Português, e apoiei-me, como é lógico, nos apontamentos que por acaso ainda possuo, que anotei quando tirei a especialidade de transmissões. Tentei explicar tanto quanto me foi possível com clareza o pouco que ainda sei.

Fotos 1 e 2: AN/PRC -10 com os diversos acessórios.
Foto 3: Operação realizada o dia 26 de Abril 1970 para os lados de Comuda. À frente do operador de transmissões, o Coias, que leva uma antena segmentada na mão, vão três carregadores civis, levando o primeiro o PRC-10 às costas, o segundo leva material diverso e o terceiro leva às costas o rádio Racal que é o aparelho que nos permitia comunicar com o Aquartelamento. Para os civis, estes fretes como carregadores, era uma maneira de poderem ganhar uns míseros centavos para irem vivendo. Já passei por aqui, em operação anterior, com este terreno todo alagado com a água a dar pela cintura.
Foto 4: Eu, a ganhar força, depois de comer a ração de combate e a reflectir para passar a escrito algum acontecimento. À minha frente está uma antena seccionada do PRC-10.
Foto 5: Eu, depois da operação de dois dias à espera das viaturas, que já pediu, para nos transportarem rumo a Canjadude. Logo à minha frente está o Racal e um pouco mais afastado o PRC-10, que tem acoplado a antena de mobilidade no mato (pequena).
Foto 6: Parada Alferes Gamboa, no Aquartelamento de Canjadude. (Na base do mastro onde está içada a Bandeira Nacional, podemos ver um tronco de madeira facetado onde estão inscritas, em sulco, as referências ao Alferes Gamboa). No lado esquerdo podemos ver o abrigo dos graduados. Podemos ver também parte do mastro espiado, que suportava a antena vertical que servia o PRC-10, cuja base estava junto do abrigo de transmissões.
O edifício funcionava como Secretaria e Centro Cripto. Em tempos foi armazém de “Mancarra” (amendoim) da Casa Gouveia.
Foto 7: Face superior do AN/PRC-10 ou Painel de Comandos de Control.

Foto 8: Posto de rádio, novo, de Canjadude. Por cima de secretária estão instalados dois AN/GRC-9 com o respectivo amplificador QR-TA-1-A. Em frente vê-se o comutador telefónico, que deve ser o equipamento BD 72 porque tem 12 linhas para serviço. O PRC-10 consegue-se identificar no lado esquerdo da secretária, (no alçado lateral) dentro duma caixa branca onde está pendurado o microtelefone. 

Foto 9: Novo abrigo de transmissões em Canjadude. Construído atrás da Enfermaria e à frente da Secretaria. O pessoal espera a chegada das entidades locais para a inauguração. Costa, Esteireiro, Vieira, Mateus (africano), e o Baioa em cima do abrigo com cartaz na mão a dar as boas vindas às entidades locais.

Foto 10: A Secção de transmissões no dia da inauguração do segundo posto de rádio de Canjadude. À frente lado esquerdo: Reis, Esteireiro, Albino Conceição, (estes três coexistiram comigo em Canjadude, assim como o meu “periquito” que não consigo identificar), Baioa, Mateus (africano), Vieira; - Atrás lado direito: Furriel Mimoso (com uma cerveja na mão a comemorar a inauguração), Cap. Gil Figueiredo Barros (hoje Coronel na reserva), António Costa, José Marques e Gomes (africano). Como podemos constatar em 1972 já havia 2 africanos na secção de transmissões.

Para todos um abraço e muita saúde.
José Corceiro
1º Cabo TRMS da CCaç 5

Fotos: © José Corceiro (2009). Direitos reservados.
___________
Nota de M.R.:
Vd. último poste desta série em:

29 de Junho de 2010 >
Guiné 63/74 - P6654: José Corceiro na CCAÇ 5 (13): Ritual do Fanado no Aquartelamento de Canjadude

Guiné 63/74 - P6697: Depois da Guiné, à procura de mim (J. Mexia Alves) (7): Eu sei quem sou

1. Mensagem do nosso camarada Joaquim Mexia Alves*, ex-Alf Mil Op Esp/RANGER da CART 3492, (Xitole/Ponte dos Fulas); Pel Caç Nat 52, (Ponte Rio Udunduma, Mato Cão) e CCAÇ 15 (Mansoa), 1971/73, com data de 1 de Julho de 2010:

Meus caros camarigos editores
Prosseguindo os escritos da série “20 Anos depois da Guiné, à procura de mim!” 7 que se aproxima do fim.

Um abraço camarigo do
joaquim


DEPOIS DA GUINÉ, À PROCURA DE MIM

20 ANOS DEPOIS (7)

EU SEI QUEM SOU

Os meus pés já não percorrem
os trilhos já tão batidos
tantas vezes já picados
pela ponta
dos nossos medos.
Já não vejo nos olhares
o medo que se faz coragem
quando a raiva de viver
se sobrepõe,
ao momento de morrer.
Já não me dispara o coração
com um ritmo de rajada,
quando aquele som,
surdo e seco,
me diz tão claramente
que vai haver “trovoada”.
Já não me suam os braços,
o pescoço, as mãos,
tudo enfim,
porque secaram os abraços
de quem não chegou,
ao fim.
Sinto-me assim,
como um nada,
algo desenraízado,
olhando tudo em redor,
procurando conhecer,
tudo o que quero esquecer,
que esta terra não é a minha,
ou se é,
não me parece ser.
Já não me estremece o sentir
com o som cavo do morteiro,
apenas me arrepio
com o foguete da festa,
daquele Santo Padroeiro.
Quem é esta gente?
quem é?,
que me olha sem me ver,
que me desdenha e despreza
apenas,
por querer viver.
Será esta a minha gente,
aquela que um dia deixei?,
ou é assim tão somente,
gente que não quer saber,
de me sentir tão diferente,
de ver vazio o meu olhar,
nem quer tentar perceber
tudo o que eu passei,
para não se incomodar.
Devia eu ter morrido?
Não devia ter voltado?
Seria melhor,
pensam eles,
eu por lá ter ficado,
porque assim era mais fácil,
ser rapidamente esquecido,
como morto,
e enterrado,
nessa tão distante guerra,
que não toca este país,
tão longe do seu soldado.
Eu estou bem,
não se incomodem!
Perdoem-me pela ousadia
de ter querido viver,
e mais que tudo,
regressar!
Eu parto já,
numa viagem,
para dentro de mim próprio,
onde me encontrarei,
só comigo,
e com os meus,
que ainda por lá estão,
e mais os que já voltaram,
partindo sempre partindo,
com vontade de voltar,
para novamente partir.
Julgais-me morto,
acabado,
dos vossos afectos,
desprezado,
mas ainda me estou a rir,
de cabeça levantada,
olhando-vos fundo nos olhos,
sem medo e sem vergonha,
como qualquer um de nós,
e grito-vos aos ouvidos:
eu sei quem sou,
e vós?


11.11.91
__________

Notas de CV:

(*) Vd. poste de 6 de Julho de 2010 > Guiné 63/74 - P6679: Controvérsias (92): A ficção e a guerra (Joaquim Mexia Alves)

Vd. último poste da série de 18 de Junho de 2010 > Guiné 63/74 - P6615: Depois da Guiné, à procura de mim (J. Mexia Alves) (6): Sem Título 3

Guiné 63/74 - P6696: Tabanca Grande (227): José Ferreira da Silva, ex-Fur Mil Op Esp da CART 1689/BART 1913 (Guiné, 1967/69)

Mensagem do nosso camarada e novo amigo José Ferreira da Silva, ex-Fur Mil Op Esp da CART 1689/BART 1913,  , Catió, Cabedu, Gandembel e Canquelifá, 1967/69, com data de 30 de Junho de 2010:

Caros Editores
Venho acompanhando o blogue já há algum tempo e decidi fazer a minha apresentação.

Sou José Ferreira da Silva, fui Furriel Miliciano de Op. Esp. da CART 1689/BART 1913, que esteve na Guiné entre 1967/1969.

Proponho escrever uns textos que possam ser agradáveis, recordando situações vividas na Guiné, sugerindo um nome – “Memórias boas da minha guerra”.

Talvez escreva também outras coisas mais sérias.

Junto as duas fotografias da “ordem” e, desde já, envio o meu primeiro texto – “Bife à Dunane”.

Os meus cumprimentos para todos.
José Ferreira da Silva
(Silva da CART 1689)


************

MEMÓRIAS BOAS DA MINHA GUERRA

1 - BIFE À DUNANE


Para a CART 1689, a ida para as “Termas” de Canquelifá foi, ao contrário do resto da comissão, um período de quatro meses de quase repouso. Constava que “eles” iam mexer com a zona, mas isso só veio a acontecer depois de termos regressado. Já não havia combates por ali há cerca de um ano, o que era uma situação anormal e… agradável.

Entre Canquelifá e Piche havia um destacamento em Dunane. Era um posto segurança avançado, que funcionava a nível de pelotão, reforçado pelos milícias locais, que viviam lá com os familiares. Os patrulhamentos eram pequenos e os serviços eram poucos e bem distribuídos. Além disso, comia-se muito melhor, porque havia fartura de carne. Daí ser chamado “Hotel Dunane”.

Não sei por que razão, eu era presenteado, assiduamente, com um pequeno saco com ovos, que alguém vinha colocar à porta da minha “tabanca privada”. Como eu não os comia, os sacos com os ovos iam-se acumulando.
Resolvi falar com o cozinheiro para saber da possibilidade de fazer um prato especial, que baptizei de “Bife à Dunane” – bife com batatas fritas, ovo a cavalo e picles.

Surgiram, então, algumas dificuldades. Onde fritar tantas batatas? E os ovos?
Começava a duvidar que fosse possível fazer um prato tão sofisticado, mas o cozinheiro, contra o que era habitual, entusiasmou-se. Chamavam-lhe “Madeirense”, mas também era conhecido por “Badalhoco”, que o Serafim Martins Delindro, pasteleiro de profissão, na sua forma especial e acutilante de dizer, corrigia para “Senhor Badalhoco”. Era um pouco barrigudo, meio loiro meio ruivo, sempre com barba de alguns dias, usava um bigode parcialmente queimado pelos cigarros, espetado, excepto no rego do nariz, onde estava colado ao lábio; era difícil saber se seria da cerveja ou do ranho que lhe corria do nariz. Vestia uma camisa encardida, solta por cima dos calções, que se apresentavam abertos à frente, devido à força da barriga e à falta de botões. Calçava umas botas envelhecidas, quase desfeitas pelos pontapés que dava na lenha a arder e nos apetrechos da cozinha.

A frigideira para fritar os ovos foi improvisada com uma chapa com as bordas viradas à força para cima.
Quando lhe entreguei os últimos ovos já estava ele a colocar o óleo na frigideira, que estava assente em cima de uns adobes e a lenha ardia já fortemente por baixo. O “Madeirense”, sob aquele sol escaldante, com a cerveja na mão e o cigarro na outra, transpirava copiosamente.

- Já tá bom, ma Furiel Seilva. – dizia ele - E cuspiu uma “bisga” para dentro da frigideira, a confirmar que o óleo já estava bem quente.

Largou a “bazuca”, chupou a “barona” até aos dedos queimados, deitou-a fora e começou a partir os ovos, um a um, contra a borda da frigideira. Despejava-os imediatamente no óleo, mas, afinal, havia ovos em todas as fases de gestação. Havia alguns ainda bons para comer, outros eram já mais pintainho que ovo e de outros saíam pintainhos que patinhavam no óleo a ferver. O “Madeirense”sacudia-os para fora da frigideira com um graveto que apanhou do chão, gritando:

- Saie dae, filhe da piiiiuta!

E, como a cena se repetia, lamentava-se:

- Ai maezenha, que cuaralhe de sort’a menha!!!

No final ninguém reclamou do cozinheiro ou do cozinhado. Pelo contrário, todos adoraram aquele prato especial confeccionado por um cozinheiro ainda mais especial, que foi muito cumprimentado.

Silva da Cart 1689

************

Comentário de CV:

Caro Silva, é caso para dizer que a coisa promete.

Sê bem aparecido nesta Tabanca que a partir de hoje partilharás com os mais de 400 camaradas e amigos que a compõem.

A tua primeira história, para uma série com um título por ti sugerido, é muito engraçada, tendo ainda por cima como interveniente um natural da Madeira.
A minha Companhia tinha como operacionais naturais daquela bonita ilha, pelo que imagino como era para vós estranho o sotaque do vosso mestre de cozinha. Mais difíceis eram de entender, quanto mais afastados fossem do Funchal. Ao tempo dizia-se, do campo.

Já agora permite-me que te diga que enquanto estivemos no BAG-2 (S. Martinho-Funchal), tivemos um óptimo cozinheiro madeirense, o inesquecível Araújo, cuja especialidade eram os bifes de atum, bem melhores que os bifes à Dunane, desculpa lá a imodéstia.

Ficamos, então na expectativa de mais histórias, destas ou mais sérias. Julgo saberes que tens no nosso blogue um camarada de Companhia, o ex-Alf Mil Alberto Branquinho que tem duas séries, uma terminada e outra ainda recente.

Deves utilizar estes marcadores para acederes, respectivamente: às tuas histórias (José Ferreira da Silva e Memórias boas da minha guerra), às do Alberto Branquinho, Não venho falar de mim, Contraponto e aos textos referentes à CART 1689.

Podes também aceder aos mapas das localidades por onde andaste, clicando nos nomes sublinhados e de cor diferente.

Posto isto, recebe um abraço de boas-vindas em nome da tertúlia.
__________

Nota de CV:

Vd. último poste da série de 22 de Junho de 2010 > Guiné 63/74 - P6626: Tabanca Grande (226): Acácio Correia, ex-Alf Mil, CART 3494 (Xime e Mansambo, 1973/74)

Guiné 63/74 - P6695: Memória dos lugares (89): Bafatá, Tabatô, Tabaski 2009: Não há preto nem branco, somos todos irmãos, disse a Fátima de Portugal numa cadeia de união... (Catarina Meireles)







Guiné-Bissau > Região de Bissau > Tabatô > 28 de Novembro de 2009 > A cerimónia do Tabaski... em que pela 1ª vez participaram três europeus, não-muçulmanos, duas portuguesas e um espanhol... Uma das portuguesas foi a Catarina Meireles, médica, aqui na foto (a 3ª, a contar de cima), com uma criança mandinga ao colo;  e na 2ª, partilhando a refeição)... Na 1ª foto a contar de cima, temos uma vista geral da assembleia, durante a cerimónia do Tabaski, na aldeia mandinga de Tabatô, a escassos 10 km de Bafatá, na estrada  Bafatá-Gabu. Ainda há dias o Fernando Gouveia andava desesperado para encontrar a localização exacta de Tabatô, que não vem na nossas cartas da época colonial (Será uma povoção de recente implantação ? Ou deslocalizada por causa da guerra colonial ? O João Graça, que passou lá uma noite memorável a tocar com os músicos locais, não me soube esclarecer a data da origem da tabanca; o Fernando, por sua vez, não conseguiu lá ir, quando revisitou Bafatá,  em Abril passado ).

Fotos: © Catarina Meireles (2010). Direitos reservados





Guiné-Bissau > Bissau > Dezembro de 2009 > Na conhecida e conceituada Residencial Coimbra, sita na Av Amílcar Cabral, em pleno centro: da esquerda para a direita, o João, o Mamadu (músico da tabanca mandinga de Tabatô de onde é natural o Kimi Djabaté), o Vitor (cooperante espanhol), a Catarina Meireles (médica, portuguesa, minha antiga aluna na Escola Nacional de Saúde Pública)... Os restantes cinco elementos não sei, de momento, identificá-los. O João Graça, músico e médico, interno de psiquiatria, esteve na Guiné duas semanas, em Dezembro de 2009,  tendo estado mais tempo em Iemberém (onde prestou cuidados de saúde à população local, durante cinco dias), além de Bissau, e visitado ainda a zona leste (Bafatá, Tabatô, Gabu, Contuboel...) e a região do Cacheu (S. Domingos). Em Bissau conheceu a colega Catarina Meireles.


Foto: © João Graça (2009). Direitos reservados


1. A minha amiga e antiga aluna do Curso de Especialização em Saúde Pública, Dra. Catarina Meireles, natural de Vila Verde (a terra dos lenços dos namorados ou, melhor, e segundo as  palavras da Catarina, a terra onde são as raparigas a escolherem os namorados com quem querem casar ou não ...), passou cerca de 3 meses em missão de cooperação na Guiné-Bissau, no último trimestre de  2009. Mais exactamente na Associação Saúde em Português, que está a actuar em Bafatá (Projecto  "Mais Saúde, Melhor Saúde por Bafatá").

Nesse período fomos trocando mails e eu convidei-a inclusive para colaborar no blogue, com alguns apontamentos sobre a sua estadia em Bafatá. Disse-me que estava a escrever o seu diário e que depois decidiria onde e quando publicar...

Em Outubro de 2009, escrevi-lhe o seguinte, em resposta às suas primeiras impressões da Guiné-Bissau (tinha chegado a 5):

 (...) Catarina, você representa uma geração, a do pós-guerra colonial, que está a redescobri África, nas suas misérias e grandezas… Sendo uma mulher de grande sensibilidade sócio-cultural e para mais médica de saúde pública, além de uma grande minhota, gostaria de poder publicar, no nosso blogue colectivo, Luís Graça & Camaradas da Guiné, alguns crónicas suas sobre esta sua 'viagem de imersão' na Guiné-Bissau" (...).

A Catarina respondeu-me, a 8, nestes termos:

(...) Sim, com efeito sou dessa geração. Mais interessante é o que a minha mãe constata: o meu pai escapou do Ultramar mas os 2 filhos estão em África. O meu irmão há dois anos que anda pelos PALOP e não só, como engenheiro civil de obras públicas. Confesso que ele me abriu portas por me alargar o planisférios mental. Sem medo, com confiança... a nossa geração tem se ser feita de cidadãos do mundo. (...)

Entretanto, a 1 de Dezembro manda-me um outro mail em que afirma ter necessidade de partilhar as suas emoções por ter tido o privilégio de assistir à cerimónia do carneiro, com os habitantes de Tabatô... Adorei o texto e disso-lho, na volta do correio, a 2:

Catarina:  Belíssimo texto. Você é uma mulher de grande sensibilidade, sócio-cultural. Esse fim semana foi mesmo ecuménico… Dou-he os parabéns por ter conseguido vencer as barreiras culturais, mentais e religiosas que, muitas vezes, nos impedem de comunicar com o outro… Essa tabanca é do meu tempo, mas nunca convivi com a respectiva população… Fulas ? Mandingas ? …Eu passei por Contuboel (2 meses), e o resto em Bambadinca (20 meses)… Ia com regularidade a Bafatá…


O meu filho João Graça, 25 anos, médico (acaba de entrar para a especialidade de psiquiatria, no Amadora -Sintra) vai estar aí quinze dias…Em princípio, vai trabalhar uma semana e depois vai dar um giro, revisitando alguns sítios por onde eu andei (Contuboel, Bafatá, Bambadinca…). Parte na 6ª feira, à noite… Seria interessante poderem estar juntos (em Bafatá) (...).

 Mais recentemente, e já com novos projectos de cooperação, a 18 de Junho último, a Catarina deu-me o seu OK para publicar, no blogue, o texto sobre o Tabaski, com a seguinte nota:

Este texto foi um impulso de partilha existêncial... de entre vários... Este, por acaso, tive que - por necessidade terapêutica!! - partilhá-lo... é que há coisas grandes demais para caber num só coração, numa só mente.  Deus, obrigado. (Como dizem os guineenses... eheheh)


Talvez a versão rectificada do texto, junto com fotografia, fique melhor... que acha?


Ao dispôr!!


Catarina


PS - Julga que não continuo a colaborar? Nunca parei. Constituí-me co-fundadora duma ONG e hoje mesmo recebi "material" para arrancar com projecto. E do "meu povo", continuo a receber notícias... Por exemplo, o grupo de música de Tabatô foi ao Mali gravar o primeiro CD. Se soubesse como isto representa uma vitória? Emociono-me, só de lembrar!


2. O Tabaski em Tabatô
por Catarina Meireles


No passado fim de semana fui ao Tabaski - cerimónia de imolação do carneiro (por analogia: Páscoa dos Muçulmanos).

Depois de muitas resistências, dúvidas, declinações... lá consegui que me deixassem assistir ao ritual ("eucaristia") numa tabanca perto de Bafatá, de seu nome Tabatô - muito especial, particularmente pela sua forma de vida comunitária, que assenta na música e dança étnicas. São fabulosos!

Fui com mais uma amiga (portuguesa) e um amigo (espanhol). Vestimos roupas típicas, ocupamos as posições indicadas (segundo a ordem social vigente) e imitamos tudo o que nos diziam para fazer...  E não me senti diferente... ao contrário, até me senti mais especial!

No fim do ritual, chamaram-nos (aos 3 brancos) para junto dos Homens Grandes e ajoelhámos em círculo.

Para quê? Para dar graças a Alá por esta dávida - pela primeira vez 3 brancos visitaram aquela tabanca no dia do Tabaski. Era um sinal divino de prosperidade e de vida longa (incluindo para nós!)

As explicações foram reforçadas várias vezes para que percebessemos o quão importante e bem-vinda era a visita dos 3 brancos.

Eu disse...
- Sim, 3 é número sagrado!

Eles rejubilaram com o entendimento do misticismo!

Foi-me pedido que falasse... e falei.  Pedi uma cadeia de união - corrente de mãos dadas. Expliquei como fazer e disse:
- Não há preto, não há branco, somos todos irmãos... daí esta cadeia de união.

E do meu lado esquerdo soou uma voz meiga, dum dos homens que me acolheu nas 3 vezes que fui a essa tabanca:
- Obrigado, Fátima de Portugal!

Catarina Meireles

Bafatá, 1 de Dezembro de 2009

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Nota de L.G.:

Último poste desta série > 6 de Julho de 2010 > Guiné 63/74 - P6683: Memória dos lugares (81): Binta, no Rio Cacheu... Quando o meu anfitrião foi o JERO, da CCAÇ 675 (Manuel Joaquim, ex-Fur Mil, CCAÇ 1419, Bissorã e Mansabá, 1965/67)

Guiné 63/74 - P6694: Notas de leitura (126): "Guineense Comando Português", de Amadú Bailo Djaló (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso Camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil At Inf, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 29 de Junho de 2010:

Queridos amigos,

Na capa do livro do Amadú Djaló, à esquerda com a mão na pistola e olhando-nos sem pestanejar, está o tenente Zacarias Saiegh, que virá a ser fuzilado em finais de 1977 num complô ainda hoje mal contado.

Quando cheguei a Missirá, em 4 de Agosto de 1968, ele era o comandante interino, o furriel mais antigo. Tivemos uma relação bastante tensa mas o respeito mútuo foi sempre mais forte.

A dupla Amadú Djaló – Virgínio Briote é um monumento de camaradagem inesquecível, um testemunho que os historiadores não poderão evitar.
 
Tenhamos orgulho pelo Virgínio e pelo caudal de imagens que o nosso blogue proporcionou a este relato pungente.

Um abraço do
Mário


Amadú Djaló a respirar no espelho de Virgínio Briote

por Beja Santos

“O meu primeiro objectivo foi perceber a escrita manual do Amadú e reescrevê-la para um português perceptível, respeitando o estilo de escrita do autor. Depois foram tardes a ler-lhe os textos, corrigir, acrescentar pormenores, cortar outros, pôr datas, nomes, locais, enquadrar as histórias, telefonar a camaradas, cruzar a informação, reavivar pormenores.

Não se trata de um trabalho exaustivo sobre os nossos anos na Guiné. Nem eu tenho arte nem o Amadú conta a sua história assim. Não há ficção, não se trata de um romance. A maior parte dos textos referem-se a contactos com o PAIGC, a combates com mortos e feridos, de um e outro lado”.

Este livro é um sortilégio, sente-se permanentemente o pulsar de uma cumplicidade de alguém que não renega a identidade ou ilude os diferentes níveis da memória e de um outro que escuta, reelabora, clarifica, adensa a trama. O produto final é brilhante, deixa perceber a intimidade do Eu e a disponibilidade do Outro. Fica-se com orgulho pela obra feita pelo Virgínio Briote, o Outro que garante um relato estuante transformado na árvore da vida.

“Guineense, Comando Português” é uma soberba colectânea de memórias, assegura a visão prismática de um fula que se orgulha das suas origens e que se releva apaziguado, propondo a todos os seus leitores guineenses que façam um esforço de reconciliação. 

Temos os ocasos da formação, a frequência da escola do Alcorão, a frequência de uma escola católica, as idas e vindas à Guiné francesa, os prenúncios da guerra, a incorporação em 1962. As origens da guerra continuam difusas, todos os protagonistas até hoje relatam uma escassa parcela dos acontecimentos: a formação dos partidos, a brutalidade no separar das águas, na decomposição e reorganização do território entre os santuários da guerrilha e as localidades fiéis à bandeira portuguesa, há uma discrição por vezes diáfana no relato dos acontecimentos que, pasme-se, leva o leitor, passados 50 anos, continuar confuso quanto às adesões partidárias, o desmoronar do espaço colonial, as tomadas de posições interétnicas. 

Este emaranhado só é possível pela continuação em propagar mitologias e iludir o rigor dos eventos, tudo por falta de historiografia amassada em documentos probos, testemunhos credíveis, assunção de paradoxos e contradições. Amadú refere-se a um tal Nino Vieira que em Junho de 1961 tinha fugido da prisão de Catió e que tinha sido ajudado por um cabo cipaio, Adulai Duca Djaló, casado com uma irmã de João Bacar Djaló, que se irá revelar como herói português. Só neste instantâneo temos a noção das dificuldades em perceber como se separaram as águas. Aliás, Amadú deixa transparecer o peso da decisão familiar e do poder do clã, determinante em tudo o que aconteceu a partir de 1961 e que continua nebuloso.

Amadú torna-se condutor, vai para o Sul, a experiência não lhe deixou muitas saudades. Segue para Farim, naquele tempo grande parte das estradas ainda eram transitáveis, o PAIGC sentia imensas dificuldades em implantar-se, as autoridades senegalesas mediam a guerrilha com imensa desconfiança. 

Depois da experiência de Farim, Amadú vai colaborar com os comandos do Saraiva, a guerrilha entra em efervescência, as tropas especiais passam a ser requisitadas para os golpes de mão mais espinhosos, caso do Buruntoni ou da região de Madina do Boé, onde Amadú é protagonista de uma calamidade provocada por uma mina anti-carro. 

A mata do Oio, a partir de 1964, abriga santuários que exigem a técnica do bate e foge, tal a capacidade de reacção de uma guerrilha que usa e abusa das asperezas da floresta. Em 65 Amadú regressa ao quartel-general por pouco tempo, outras tropas especiais estão em formação. Depois, Bafatá onde surgiram novas tensões como Sinchã Jobel, acima de Geba. 

Em 1969 dá-se a viragem com a formação dos Comandos Africanos, em Fá Mandinga. A partir daí, é o galopar da narrativa, entre sucessos e desaires, muitas perdas, premonições de adivinhos que Amadú jamais esqueceu, incursões nos santuários de resistência mais renhida como Galo Corubal, a participação na Operação Mar Verde, inúmeras viagens aos Morés, a ida a Cumbamori. 

O Eu e o Outro formam uma dupla espantosa, é um encontro lusófono que toca pelo sopro narrativo, tudo numa atmosfera singela de quem nunca precisa de se pôr em bicos dos pés, mesmo quando a tempestade dos acontecimentos podia facilitar disparos emotivos. Um só exemplo do rigor entre o Eu e o Outro:

“Saí do local onde estavam 4 ou 5 feridos e o corpo de um soldado, para verificar o andamento dos trabalhos das macas e, momentos depois, começaram os rebentamentos [ida a Cumbamori, Senegal].

Foi um inferno. Ao primeiro estoiro ninguém pensou em mais nada senão em escapar dali. Eu corri para a frente, com 7 ou 8 soldados, armados de bazucas e RPG’s, para respondermos ao fogo. Todos dispararam a vez, outros duas vezes depois saíram dos locais, porque a posição deles estava denunciada quando fizeram fogo. Sabíamos isso da instrução.
Fiquei muito satisfeito com eles, porque foi com os disparos que fizeram que travámos a contra-ofensiva do PAIGC e dos páras senegaleses.
O tenente Jamanca estava à minha esquerda, sentado, com as pernas estendidas, encostado a uma pequena árvore, parecia exausto.

– Então, o que se está a passar? Perguntei.

– Amadú, anda cá! Mata-me, não deixes o PAIGC levar-me! Mata-me, Amadú, mata-me!

– Tu não ficas, levamos-te de qualquer forma. Não ficas aqui! Descansa um pouco, Jamanca!”


Amadú vai sendo promovido, a sua folha de serviços é notável. Vai seguidamente para a CCaç 21, percorre a Ponta do Inglês, Paunca, Pirada, Piche, Canquelifá. Estamos a viver o tufão que se estenderá até ao fim da guerra. A ofensiva do PAIGC é brutal, como Amadú descreve: 

“Passámos mais tempo em Canquelifá porque o PAIGC queria mesmo acabar com o quartel e com a tabanca. Os morteiros de 120 eram em número de cinco e, como tínhamos atacado a base de Cumbamori, perto da estrada de Koldá-Ziguinchor, o PAIGC transferiu parte do material do Norte para o Leste. Copá e Canquelifá passaram a ser considerados os primeiros objectivos do PAIGC. Copá veio a ser abandonada e o pessoal que lá estava foi recolhido em Amdalai, perto de Bajocunda, com o nosso apoio e dos paras. Depois de Copá faltava-lhes conquistar Canquelifá”.

Amadú combate há praticamente 11 anos, perdeu família, amigos, inúmeros camaradas. Bateu todos os teatros de operações mais infernais. Deixa antever a evolução dos acontecimentos de 1973 para 1974. E um dia a guerra acaba, espera-o um calvário, a traição dos amigos, a perseguição. Será esse seguramente o material que Virgínio Briote, o diligente e discretíssimo Outro, terá entre mãos.

Venho publicamente expressar o meu júbilo pelo trabalho do Virgínio Briote. A Associação de Comandos incumbiu-o de uma tarefa espinhosa, o Virgínio revelou-se exemplar nesta metamorfose do apagamento em que o Outro deixa o palco iluminado a um Eu cheio de carácter, sereno, à espera que lhe façam justiça depois dos caminhos desavindos da guerra.

Enquanto lia e relia este relato inigualável recordei um retrato de genial artista surrealista, o belga René Magritte, intitulado A Invenção da Vida, datado de 1928. Alguém olha fixamente o espectador, parece pronto a desvelar o vulto encapuçado, a mostrar uma pessoa em corpo inteiro. Não sei porquê lembrei-me deste trabalho monumental do Virgínio, este corpo a corpo com o Amadú em que se inventou, a partir do maço informe dos dados, a vida de um combatente. Obrigado por tudo, Virgínio.

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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 7 de Julho de 2010 > Guiné 63/74 - P6689: Notas de leitura (125): O Lince de Có, de António Veríssimo (Mário Beja Santos)

Guiné 63/74 - P6693: Convívios (260): Encontro do pessoal da CCAÇ 2701, Saltinho, 1970/72 (Mário Migueis)

1. Mensagem de Mário Migueis da Silva* (ex-Fur Mil de Rec Inf, Bissau, Bambadinca e Saltinho, 1970/72), com data de 29 de Junho de 2010:

Caro amigo:
Na esperança de que tenhas vindo revigorado de Monte Real, estou a juntar (sem esperar a publicação do meu último escrito do passado dia 20) um mini-artigo inspirado no último encontro da CCaç 2701/Saltinho.

Anexo igualmente duas fotos legendadas para ilustração do texto.
Um grande abraço,
Mário Migueis



“Olha que há coisas bonitas!...”

No passado domingo, dia 7, tive oportunidade de, uma vez mais, confraternizar com os camaradas da CCAÇ 2701, aquela que foi minha anfitriã no Saltinho, de Março/71 a Fevereiro/72, altura em foi substituída pela CCAÇ 3490.

Realizado, desta vez, num hotel da Póvoa de Varzim – a escassos 12km da meu cantinho -, o almoço reuniu mais de duas centenas de pessoas, entre ex-combatentes e respectivos familiares, e terá sido em tudo muito semelhante a tantos outros convívios periódicos de ex-combatentes que, felizmente, continuam a realizar-se por todo o país, dando provas de que o passar dos anos, por mais que force, não consegue fazer esmorecer – antes pelo contrário - os fortíssimos laços de amizade e solidariedade criados entre os nossos militares durante aqueles terríveis dois anos de sofrimento físico e psicológico. Porém, algo me tocou profundamente desta vez, fazendo-me reflectir sobre a verdadeira força, o peso, a dimensão da marca que a guerra colonial deixou em cada um de nós no que concerne a esses sentimentos de amizade, a esses valores de camaradagem e solidariedade.

Na véspera do convívio, fora ao meu sótão de estimação, onde se respira tropa por todos os poros, que é como quem diz por todos os buraquinhos de traças e outros quejandos, à procura de uma cassete gravada no Saltinho durante a noite de Natal de 1971, em que, conjuntamente com o Rui Coelho – 1.º Cabo especialista em criptografia -, fiz uma curta entrevista a cada um dos sentinelas, procurando saber do estado de espírito de cada um naquela noite em que a saudade dos nossos apertava ainda mais que habitualmente. Tinha decidido deixar de ser egoísta e, agindo em conformidade, iria tornar pública aquela espécie de relíquia histórica, há quarenta anos esquecida no fundo de uma das caixas com a etiqueta “Guiné”.

Cheguei a temer que, decorrido tanto tempo, a pobre cassete não estivesse já em bom estado de conservação, mas, incrivelmente, logo que consegui desenrascar um leitor portátil, pude comprovar que a gravação estava perfeita. E lá estava, em primeiro lugar, a entrevista ao Pessoa, de sentinela, no turno das vinte e duas à meia-noite, ao abrigo dos condutores, o primeiro que visitámos.

“Então, senhor Pessoa, como é que se sente nesta noite de Natal? Casado, pai de uma menina, deve sentir imensas saudades, não é verdade?...”

Seguiam-se as entrevistas ao Calceirão - o homem do clarim-, ao Miguel – 1.º Cabo Enfermeiro - e por aí fora. Enfim, tudo nas melhores condições acústicas, incluindo o som da viola do Mário Rui, furriel do 53, que, no abrigo de Transmissões, deliciava os presentes com uma belíssima balada de sua autoria.

Já no salão onde teria lugar o almoço, num aparte entre as animadas conversas que a ocasião oferecia, diz-me o Novo – meu vizinho da Póvoa e responsável pela organização do convívio deste ano – quase ao ouvido:

- Olha que há coisas bonitas! Estão cá a viúva e o casal de filhos do Pessoa, que morreu já lá vão oito anos!

Daí a um minuto, o Novo estava a apresentar-me à família do Joaquim Pessoa. Pude conversar, durante cerca de meia hora, com a Senhora D. Maria Fernanda - assim se chama a viúva do nosso camarada -, interessadíssima nas referências que eu fazia às recordações mais simples que tinha do Pessoa, desde o seu comportamento muito respeitador e responsável até à forma como se exaltava durante os jogos de futebol, especialmente quando as decisões do árbitro não eram do seu agrado.

Inevitavelmente, falei-lhe das palavras do marido que tinha gravadas na cassete que trazia comigo. Chorou de emoção quando prometi que lhe remeteria uma cópia em CD para a Vila de Prado, onde reside. E voltaria a chorar quando o ex-alferes Fernando Mota, no uso da palavra em nome da Companhia, agradeceu a sua presença e a dos restantes familiares, numa atitude que constituía sem dúvida um exemplo a seguir: não deixar morrer a memória dos nossos e da sã camaradagem que tão fortemente os uniu.


Enquanto nos despedíamos, a Senhora D. Maria Fernanda não pôde evitar que mais duas teimosas lágrimas se lhe desprendessem dos olhos, correndo, lestas e envergonhadas, para o pequeno lenço branco que, delicadamente, as aparou junto ao queixo. Tentei ler o conteúdo do seu sentimento, da sua emoção. Como interpretar aquelas lágrimas? Tristeza pela ausência do seu ente querido? Um sentimento de amargura por o não poder ver entre os seus camaradas? Algo mais para além disso?... Confesso que me pareceram lágrimas de uma misteriosa satisfação, como se aquela sua presença entre nós, que lhe permitia partilhar connosco a recordação do marido, lhe suavizasse a dor e lhe desse o ânimo de que carecia para prosseguir a sua caminhada. Tive a sensação de que a senhora, de uma forma instintiva e para seu próprio sossego, sentiu necessidade de se assegurar de que aqueles de quem, durante anos a fio, o marido contara maravilhas não o tinham esquecido e que a sua memória continuava presente nos nossos corações. De qualquer modo, certo é que só algo muito sólido e importante pode despertar tão fortes emoções e sentimentos. E, por detrás de tudo isto, estarão seguramente os laços tão fraternais que caracterizaram e caracterizam a geração de soldados de que fomos, somos e seremos parte.

Esposende, 24 de Junho de 2010
Mário Migueis da Silva
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Nota de CV:

(*) Vd. poste de 6 de Julho de 2010 > Guiné 63/74 - P6682: Convívios (174): Convívio anual de "Os Sobreviventes" - CCAÇ 3490, Saltinho, 1971/74 (Mário Migueis)