terça-feira, 29 de julho de 2014

Guiné 63/74 - P13446: Memórias de Gabú (José Saúde) (41): Jaló, um milícia dúbio. Homem feito com o sistema.

1. O nosso Camarada José Saúde, ex-Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523 (Nova Lamego, Gabu) - 1973/74, enviou-nos a seguinte mensagem.

AS MINHAS MEMÓRIAS DE GABU

Camaradas,

A guerra tem contornos quiçá impensáveis. Na obra “AS MINHAS MEMÓRIAS DE GABU”, dou conta de um antigo camarada, milícia local, de nome Jaló, que segundo o ex furriel miliciano, Amílcar Ramos, um velho amigo com quem partilhei a messe de sargentos em Nova Lamego, me elucidou sobre o fim de um homem que muito bem conhecemos.

Transmitiu-me o camarada Amílcar que em finais do século passado visitou Gabu e teve conhecimento profícuo que o Jaló era então mais um dos militar do PAIGC. 

Ziguezagueou e sobrou-lhe a audácia para se salvar das amarras do passado. 

Jaló, um milícia dúbio
Homem feito com o sistema

A sua imagem era sobejamente conhecida! Obeso, bonacheirão e com uma túnica normalmente branca, o Jaló era o homem típico da tabanca. Porém, a sua conduta pessoal diferenciava-o do restante pessoal com o qual quotidianamente convivíamos: era um homem dúbio, ambíguo, desfazia-se em sorrisos, em cobrar favores e na sua arte inigualável não perdia a oportunidade de tudo pedir. Era um convicto pedinchão!

O Jaló era demasiadamente conhecido no Quartel e no seio da população civil. As lérias do camarada africano enterneceriam o mais descuidado militar se porventura não meditasse de imediato no seu doce e embalador palavreado. Mostrava-se acolhedor, pronto a fazer favores e, de seguida, propunha como recompensa: cobrar alguns pesos ou uma dádiva em arroz.

Lembro as ocasiões, e foram muitas, em que o Jaló chegava à nossa beira com uma quantidade de moços atrás mendigando favores e depois lá vinha a súplica de uma alcova de arroz, alimentação preponderante da população para os rapazes transportarem para a sua tabanca! Claro que esse pedido não era em vão, havia uma recompensa para o velho milícia: a maior quantidade da dádiva era para ele. Não dava ponto sem nó.

O homem proclamava, amiúde, o seu dever cívico e militar para com a tropa branca. A sua mensagem passava fluidamente na população. O Jaló era reconhecido como odeus da tabanca. O seu dom de palavra impunha-se a gentes que viviam de paredes meias com a guerra. Não podia ouvir falar dos turras.

O mal da população passava pelas suas carências alimentares. O Jaló, vivaço, sabia as regras do jogo e jogava com pedras bases que puxavam ao equilíbrio. Dar para depois receber era a sua filosofia.

Como milícia, sempre assumido, o seu papel determinante era comandar um pequeno grupo que assegurava um posto avançado de segurança da tabanca durante a noite.

Sempre que me encontrava de serviço, como sargento dia, acontecia que durante a noite era-nos familiar as nossas rondas noturnas. Controlávamos as entradas das estradas de Bafatá e Piche, sendo que na tabanca que nos conduzia a Pirada o serviço era feito pelo grupo do Jaló. Um grupo onde se destacava a perseveração daquele militar nativo que se entregava de peito aberto em defesa do hino nacional português.

Não me recordo se alguma vez ouvi o seu atabalhoado som vocal pronunciar a portuguesa “heróis do mar, nobre povo…”. O Jaló, era moço que se ajeitava a tudo.

A guerra tem, contudo, contornos que disparam em diversas direções. As surpresas das suas decisões finais tocam na rama de deveres anteriormente levados à letra e, depois, desprezados. 

Segundo informações do camarada Amílcar Ramos, ex furriel miliciano que no ano de 1999 visitou Gabu, o bom do Jaló, a tal figura vacilante que muito bem conheci em plena altura do conflito, após a independência foi, alegadamente, um dos primeiros a virar o bico ao prego: mudou-se para o PAIGC, alvorando-se, quem sabe, em guerrilheiro mor de um partido que lutou no terreno pela sua autodeterminação.

O Jaló, em meu entender, não enganava ninguém. Estudei-o ao pormenor e tracei-lhe o caminho do seu destino: morto ou vivo. VIVO terá gritado o bom do Jaló no preciso momento em que resignou às novas forças da ordem!

Confesso que fui seu amigo! Gostei sempre da ligeireza das suas presunções. Sobreviveu! Ah, grande herói. 

As árvores, o mato e o arame farpado eram paisagens que o milícia Jaló muito bem conhecia

Um abraço, camaradas 
José Saúde
Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523
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Nota de M.R.:

Vd. último poste desta série em:


Guiné 63/74 - P13445: Em busca de... (246): CISMI, 4ª Companhia, Tavira, agosto de 1963... a que pertenceu o vosso grã-tabanqueiro Manuel Luís Lomba... (Armando Sousa / Francisco Mota Lopes)



Foto de perfil da página do Facebook CISMI 4ª Companhia Agosto de 1963.


1. Mensagem do nosso leitor (e camarada) Armando Sousa, com data de 21 de maio passado:




Boa tarde, Luis Graça.

Não obstante não ter feito o meu tempo de guerra colonial na Guiné, mas sim em Angola, abordo o teu blogue para pedir-te o favor de me forneceres o mail do Manuel Lomba, um rapaz que fez comigo o Curso de Sargentos Milicianos, em Tavira. Somos um grupo também de  ex-combatentes, que pretende reunir o Primeiro dos nossos Primeiros Pelotões ( CISMI - Tavira - Agosto de 1963). Sabemos que o Lomba cruzou mails contigo e, por essa razão, te pedimos esse favor.

Para a Tabanca Grande votos de um número infinito de aderentes.
Para ti, um abraço do camarada




2. Resposta de LG, com data de  21 de maio último, ao  Armando Sousa com conhecimento ao Manuel Luís  Lomba [, foto atual à direita]


Armando: Obrigado pelo pedido e pelos votos de sucesso para o nosso blogue, o mesmo é dizer, pela causa de todos nós, qualquer que seja o TO que nos coube. Aqui tens o contacto do Manuel Lomba, a quem dou conhecimento deste mail...Se quiseres escrever sobre o CISMI e o nosso tempo de Tavira, tens as portas abertas do nosso blogue. Um alfabravo, Luís Graça

3. Nova mensagem de LG, para o Armando Sousa, com data de 22 de maio último



Camarada:

Eu sou um "pira". "maçarico", "checa", comparado com vocês... Passei por Tavira, CISMI, no 4º trimestre de 1968...Mas tenho muito gosto em pôr as páginas do nosso blogue ao serviço das vossas iniciativas... Temos algum impacto: 656 membros registados (, 5% dos quais já morreram, infelizmente), 1 milhão de visualizações por ano... Vejam aqui 32 referências ao CISMI, onde todos passámos bons e maus bocados

http://blogueforanadaevaotres.blogspot.pt/search/label/CISMI

O Manuel Lomba por certo que vos vai contactar. E eu tenho muito gosto em fazer um apelo, no blogue, à rapaziada desse tempo... Infelizmente, muitos não vão à Net, não teêm email... Mas têm os filhos e os netos...

Também podem usar a nossa página do Facebook, Tabanca Grande Luís Graça:

https://www.facebook.com/profile.php?id=100001808348667

Armando, um alfabravo (ABraço) fraterno... Somos uma espécie em vias de extinção... Luis Graça

Quartel da Atalaia, Tavira, jan 2014. Foto de LG

4. Mais três mails do Armando Sousa, com data de 22 de maio:



 (i) Boa tarde, Luis Graça.

Ainda ontem trocámos mensagens e já hoje te estou a "bater à porta".


Na verdade, ao referir-me no meu contacto anterior, que "somos alguns que pretendem reunir o primeiro dos primeiros pelotões no CISMI 1963", estava a incorrer num erro de informação porque o objectivo era a Companhia. 

Lembrámo-nos logo, em uníssono, de fazer a nossa primeira publicitação na Tabanca Grande, do Luis Graça, (que nos parece ser, ele mesmo, CISMI 1968) e de lhe agradecer a rápida informação que nos fez chegar, a propósito da localização do Manuel Lomba ( que, por motivos pessoais, ainda não deu acordo de si).

E,então, Luis Graça, aqui fica a nossa mensagem: "CISMI - 4ª Companhia - Agosto de 1963, quer encontrar-se", os contactos poderão ser para os mail s

armandopsousa@hotmail.com 

ou

 francisco_motalopes@hotmail.com

Esperemos que muita gente compareça à chamada.


O Armando Sousa e o Francisco Mota Lopes agradecem o teu contributo.

Um abraço fraterno de camaradas



(2)  Luis Graça, um muito obrigado pela tua disponibilidade.

Entretanto, vamos tentando outras vias e pensar que, daqui a um ano, talvez tenhamos um bom número de "rapazes" nas nossas "listas".

Fico, também, ao teu dispor, para aquilo que pretenderes de mim.

Um alfabravo

(3) Boa noite, Luis Graça.

Criámos uma página CISMI 4ª Companhia Agosto de 1963, no Facebook. O nosso desejo, como é evidente, é que a referida página seja visitada por muitos camaradas e, se possível, um Gosto, para que a mesma não seja eliminada. Pedimos, uma vez mais, a tua colaboração para publicitares esta "maçarica" página na prestigiada Tabanca Grande.

Um fraterno alfabravo do Armando Sousa

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Nota do editor:

Último poste da série > 4 de julho de 2014 > Guiné 63/74 - P13365: Em busca de... (245): Francisco Neto, ex-1.º Cabo Art do 15.º Pel Art (Guileje e Gadamael, 1973) (Luís Paiva)

Guiné 63/74 - P13444: Memórias da CCAÇ 1546 (Domingos Gonçalves) (4) - Reportagens da Época (1966): A morte do "Furriel Moreira, alcunha do milícia Nansá Camará

1. Mensagem do nosso camarada Domingos Gonçalves, (ex-Alf Mil da CCAÇ 1546/BCAÇ 1887, Nova Lamego, Fá Mandinga e Binta, 1966/68) com data de 25 de Julho de 2014:

Prezado Luís Graça:
Antes de mais, saúde, e votos de BOAS FÉRIAS.
Depois, para alimentar o Blogue durante as férias, e dar, até, oportunidade aos psicólogos, e etnólogos, ou especialistas em cultura africana, para divagarem sobre o assunto, tomo a liberdade de enviar um texto bastante longo que, se o entender conveniente, poderá inserir no Blogue.

Um abraço
Domingos Gonçalves



MEMÓRIAS DA CCAÇ 1546 (1966) 
- REPORTAGENS DA ÉPOCA

4 - A MORTE O FURRIEL MOREIRA

Novembro de 1966 
Dia 1 

Pouco passava das oito horas quando, com os meus homens, parti em direção a Binta.
É o adeus ao céu de Guidage... Aquilo a que chamamos estrada, mas que de facto não passa de um caminho estreito, simples picada feita de lama e buracos, está num estado miserável.
Mesmo assim, a viagem decorreu com normalidade.
Às onze horas já estávamos no local do destino.

Ao partir, senti pena da população de Guidage. Quando as viaturas estavam para arrancar para Binta juntou-se quase toda a gente junto à porta d’armas e, muitos deles, ficaram a chorar. E as lágrimas são uma coisa muito delicada e bonita, digna de admiração. Na hora da despedida, a população brindou-nos com aquilo que nós, os humanos, temos de mais precioso, ou seja, as lágrimas.

Em Bissau, no Hospital Militar, faleceu, doente, o Nansú Camarã. Foi evacuado de Guidage por duas vezes. Sofria de mal-estar geral e de um abatimento psicológico muito grande.
Vou contar a história da doença do rapaz, do combatente leal, esforçado, solidário e corajoso.
É a história do pássaro maldito.

***

A morte do furriel Moreira

O Nansú Camará, ou o furriel Moreira, como nós lhe chamávamos, era um negro de pele relativamente clara, alto e magro, pertencente à milícia local, que aprendi a admirar desde os primeiros dias da minha estada em Binta.

Chamávamos-lhe o furriel Moreira, alcunha de que gostava, e que terá recebido da boca de alguém que, por certo, lhe admirava a lealdade, a dedicação e o grande espírito de sacrifício. E ele gostava da alcunha. Sentia mesmo orgulho quando lhe chamavam furriel...

Regra geral os furriéis eram sempre brancos. Atribuir-lhe a categoria que só os brancos possuíam dava-lhe um estatuto diferente, fazia dele alguém muito especial e respeitável. Para ele, chamar-lhe furriel, nada tinha de ofensivo. Entendia a alcunha quase como uma distinção. Gostava mesmo de que o chamássemos assim, e ficava vaidoso e contente com um nome tão distinto.

Possuidor de uma admirável resistência física estava sempre pronto a auxiliar qualquer de nós, nas horas mais difíceis. Muitas vezes, quando regressávamos das operações, das patrulhas, ou das emboscadas, ele aproximava-se dos mais cansados e ajudava-os a transportar a arma, as munições, ou as granadas. Era, em tudo, um homem bom e generoso. Uma daquelas pessoas que nasceram para ser desinteressadamente solidárias e amigas.

Um dia, logo ao amanhecer, veio procurar-me muito aflito, expressando medo e angústia. Nos seus olhos meigos adivinhava-se um sofrimento enorme, ou visionava-se mesmo o limiar da morte. Trazia uma expressão dolorosa, onde se adivinhava qualquer coisa de transcendente, ao mesmo tempo terrível e grande. Naquele momento vi nele um homem que estava a chegar, vindo não da sua casa simples e pobre, mas de um mundo diferente e desconhecido. O Nansú que tinha ali em minha era já outro homem. Tudo nele se me afigurava estar alterado.
Ele estava diferente nos gestos, nas palavras, no aspecto e nas atitudes. Era um homem triste, tímido e distante, longe da realidade do nosso dia a dia, irremediavelmente perdido para a vida.

Por entre lágrimas e tremores conseguiu dizer-me:
- Alfero... Durante a noite, quando estava de sentinela, eu vi Irã.

Estas palavras saíam-lhe bem do fundo da alma, murmuradas com serenidade cadavérica e sinceridade profunda.

E eu perguntei-lhe:
- E quem é Irã? - Eu nunca ouvi falar dessa pessoa. - Como te apareceu? Que foi que te disse?

Ele, receoso e triste, murmurou:
- Irã, é o mal. É um espírito negro e terrível. Só pode trazer-nos a morte. Agora sei que vou morrer. A vida para mim já terminou. Quem vir Irã não pode mais ficar aqui... Tem mesmo de morrer. Nas suas asas negras ele traz a mensagem do inferno. O meu futuro já não existe. Para mim tudo vai terminar muito depressa.

E tiveste medo, perguntei-lhe?
- Tive, respondeu-me. Mas não abandonei o posto nem a arma. Não fugi...

No seu rosto adivinhava-se qualquer coisa de mistério, uma amargura profunda, a tristeza de quem teve, naquela trágica noite, a visita de um anjo mau que lhe veio trazer a mensagem da morte, ou qualquer coisa bastante pior, indesejável para qualquer de nós, pobres mortais. ... E aquele rapaz já não seria mais o soldado corajoso, leal e destemido que sempre soubera ser. Aquela visão terrível, alucinante, traçara-lhe bruscamente o destino. Era a visão da morte.

Eu continuei:
- E como era Irã?
- Era, disse-me, uma espécie de pássaro negro, muito grande, que se manteve perto de mim, durante muito tempo, como que a dançar, em movimentos loucos e sucessivos, mas sempre fora da rede de arame farpado.
- E que te disse, perguntei-lhe?

E o Furriel Moreira, numa voz quase imperceptível, murmurou:
- Não me disse nada. Mas eu entendi tudo o que tinha para me dizer.
- E porque não disparaste, perguntei-lhe, uma rajada de G3, para o afugentar? Um bicho desses mata-se de imediato, sem qualquer receio.

Mas ele, com toda a seriedade, e com uma voz branda, nascida bem do fundo da sua alma amargurada, respondeu-me:
- Alfero! Tiro de espingarda não mata Irã. O deus do mal tem muita força e poder. Ninguém pode matar Irã.

Enquanto falávamos, todo ele tremia e transpirava. O suor escorria-lhe, em gotas enormes, pelas faces escuras, enquanto que do seu olhar meigo escapava um desespero triste profundo. E eu fui conversando com ele, durante bastante tempo, tentando retirar-lhe da mente aquela imagem tenebrosa que nem o deixava respirar. Mas foi tudo em vão. Aquela ideia sinistra dominava-lhe por completo a mente, apossara-se dele com tanta força, que iria ser muito difícil restituir-lhe o equilíbrio mental e a vontade de continuar a viver, e a ser pessoa. Estava dominado por uma alucinação terrível, que se apossou daquela mente rústica de uma forma indizível.

Depois, acompanhei-o ao refeitório da companhia e pedi que lhe dessem o pequeno-almoço, pensando que fosse a fome e a má nutrição a causar-lhe aquelas alucinações. Mas ele quase não comeu. Depois, retirou-se para casa. Uma casa simples, coberta de capim, como quase todas as casas que na Guiné se constróem. Retirou-se macambúzio, triste.

 Durante a tarde mandei chamar o régulo da tabanca, - o Mamadu -, um homem já de bastante idade, muçulmano fervoroso e crente. Contei-lhe a história da visão que o Nansú tivera durante a noite, e perguntei-lhe:
- Quem é Irã? Que tipo de crença o povo tem e guarda nessa suposta divindade, ou anjo do mal?

E o régulo, discretamente, como que assustado com a história que lhe contara, lá me foi dizendo:
- Irã, é uma superstição. É uma crença antiga, pertencente às antigas religiões do nosso povo, na qual alguns de nós ainda acreditamos. É uma espécie de demónio, que só pode fazer mal às pessoas. Mas um bom muçulmano não pode acreditar em Irã, nem ter medo dele. Allah protege-nos contra os poderes do mal. Quem acreditar no nosso Deus está livre para sempre dos malefícios dessa crença. Mas, é verdade... Muitos de nós ainda acreditamos que Irã existe e domina este mundo obscuro, habitando algures, no coração da selva. É uma crença que permanecerá ainda por muito tempo na tradição do povo, sem que seja possível erradicá-la de todo. E, intimamente, todos nós temos ainda medo. Mesmo muito medo.

Depois, pausadamente, e como que dominado, também, por um estranho receio, continuou:
- ... No entanto, eu sei, que essa crença antiga já não devia subsistir. Ela é incompatível com a crença em Allah, o Deus em que acreditamos. Mas ainda são muitos os que acreditam e têm medo... Mesmo quando em público dizem que não acreditam, eles continuam presos a essa superstição.

E os dias foram-se passando. E o furriel Moreira começou a ficar mais doente... Deixou de se alimentar... Deixou de comparecer ao serviço... Definhava a olhos vistos, num desmoronar muito rápido e implacável da saúde física e mental de que antes parecia gozar quase em plenitude. A vivacidade que o caracterizava deu lugar a um homem amorfo e triste, em cujo olhar que se perdia a fixar, tenuemente, algo distante, só aflorava, imensa, uma amargura profunda e misteriosa.

Uma certa manhã, acompanhado pelo enfermeiro da companhia, fui mais uma vez visitá-lo e dei-lhe para tomar, um xarope e algumas vitaminas. Mas o rapaz não melhorava... Ia passando os seus dias, a pensar que já não seriam muitos, metido em casa, a merecer a compaixão de todos os que o visitavam.

 Dada a limitação de que dispúnhamos para o tratar, pediu-se uma evacuação, de helicóptero, e o Nansú foi internado em Bissau, no hospital militar. Talvez, pensei, longe do local da aparição fatídica, e beneficiando de razoável assistência médica, fosse ainda possível que a saúde voltasse de novo. Eu estava, aliás, bastante convencido de que se tratava apenas de um pequeno problema de natureza psíquica, que a intervenção de um psiquiatra resolveria com facilidade.

E os dias foram-se passando. Ao fim de quinze dias de internamento deram-lhe alta hospitalar e ele regressou a Binta. Mas não vinha curado. A visão de Irã não o abandonava... E, pouco a pouco, continuou a definhar... E foi-se lentamente apagando...

Já quase no fim pediu-se um novo internamento e ele regressou ao hospital militar, onde viria a morrer, ao fim de poucos dias, assassinado pela visão sinistra de um pássaro negro, cujo habitat permanece bem fundo, no inconsciente colectivo deste povo.

E numa qualquer tarde, quente e tristonha, vieram dizer-me:
- Morreu o furriel Moreira...

E eu pensei:
- Foi Irã, o pássaro maldito, quem o matou!...

Domingos Gonçalves
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Notas do editor

A propósito dos Irãs, do poste de 11 de Abril de 2012, de Cherno Baldé > Guiné 63/74 - P9732: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (35): O Irã animista e o Djinné muçulmano transcrevemos os seguintes parágrafos:

O Irã pode viver em qualquer sítio porque dotado de poderes e invisível ao olho humano, mas o seu habitat privilegiado são os poilões gigantes de base piramidal e altura imponente das florestas tropicais. Quanto a questão sobre como se desloca e de que se alimenta, os povos animistas, envoltos ainda num espesso nevoeiro de tabus, medos e secretismos não fornecem muitos detalhes a esse respeito, no entanto, sabe-se que a sua característica principal continua a ser o manto sagrado (manifestação do sagrado). O Irã, a imagem e semelhança dos seus seguidores é, acima de tudo, comedido e discreto, sendo também, por acréscimo, nacionalista acérrimo e incansável defensor dos usos e costumes tradicionais.

Quanto as cores que usa, no seu dia-a-dia, o Irã tem uma certa preferência pelas cores garridas, em especial a cor vermelha e a rosa, símbolos da vida, da fertilidade e da regeneração natural.

O Irã possui um carácter forte e afoito, tal qual o grau de álcool da sua bebida de eleição, a aguardente. Todavia, não é contra as bebidas mais finas, pois adora o vinho do Porto e não desdenha o uísque ou o conhaque Escocês. Não dispensa, ainda, a água simples e pura, bebedouro das almas penadas. O Irã é, também, um ser profundamente social, com famílias grandes e ruidosas sendo muito exigente quando se trata de zelar pela segurança dos seus bens e a integridade dos membros da sua família, em especial dos filhos.

Último poste da série de 27 de Junho de 2014 > Guiné 63/74 - P13336: Memórias da CCAÇ 1546 (1966) - Reportagens da Época (Domingos Gonçalves) (3): Viagem a Madina do Boé

Guiné 63/74 - P13443: FAP (81): A propósito do voo MH17 das linhas aéreas da Malásia atingido por um míssil, em 17/7/2014, sob o céu da Ucrânia... Deus nos livre da antiaérea amiga, que da inimiga livramo-nos nós (António Martins de Matos, ex-ten pilav, BA 12, Bissalanca, 1972/74)

 I. Mensagem do nosso camarada António Martins de Matos, ex-ten pilav, BA 12, Bissalanca, 1972/74, (ex-ten pilav, BA 12, Bissalanca, 1972/74; hoje ten gen ref) [, foto à esquerda]


Data: 19 de Julho de 2014 às 16:42

Assunto: MH17

Caros amigos

A tragédia do voo MH17 fez-me voltar à memória algumas ideias e temores há muito adormecidos, a saber:

1. Não compreendo como são fornecidos mísseis de "longo alcance" a militares, dissidentes ou paisanos que não estão inseridos numa bem definida Cadeia de Comando.

2. Não compreendo  como "alguém" pode decidir lançar um míssil contra um alvo não identificado, sem saber se é "FRIEND OR FOE" [, amigo ou inimigo], tão só pelo simples facto de ir a sobrevoar a sua área.

3. Não consigo compreender a ganância das companhias aéreas a tentar poupar uns míseros dólares em combustível, arriscando a vida dos passageiros e tripulação ao sobrevoar uma "zona de guerra".

Em 1973 e em plena Guiné de antiaéreas e Strelas, no meio de uma operação contra o PAIGC eis que, do nada, fui confrontado com a aparição de um avião civil (um DC-7), pachorrentamente cruzando a "zona de operações".

Tivesse esse DC-7 sido abatido (por nós ou por eles), quem assumia a responsabilidade?

Em conclusão,

1. Áreas de guerra não devem ser sobrevoadas;

2. Só quem tem a identificação positiva de um alvo é que pode dar uma ordem de disparo;

3. Essa identificação e ordem de disparo é SEMPRE feita pelos Comandos Aéreos, (os únicos que têm a imagem do Espaço Aéreo) tudo o resto são "tiros para o ar".

Ao longo dos tempos o não cumprimento destas regras tão empíricas tem originado inúmeros "acidentes".
Este estado de coisas acabou por levar os aviadores a valorizarem aquela máxima que diz:

" DEUS NOS LIVRE DA ANTIAÉREA AMIGA,… QUE DA INIMIGA LIVRAMO-NOS NÓS".

António Martins de Matos
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Nota do editor:

Último poste da série > 17 de novembro de 2013 > Guiné 63/74 - P12307: FAP (80): As nossas pistas de aviação: Bafatá, vista aérea, c. 1970 (Humberto Reis, ex-fur mil, op esp. CCAÇ 12, Bambadinca, 1969/71)

segunda-feira, 28 de julho de 2014

Guiné 63/74 - P13442: Histórias da CCAÇ 2533 (Canjambari e Farim, 1969/71) (Luís Nascimento / Joaquim Lessa): Parte XVII: 4 episódios recordados pelo José Joaquim da Costa Fonseca, ex-sold at inf,1º pelotão entre elas uma dramática saída para o mato em 29 de abril de 1970, ou aquela outra em que o Vieito "perdeu" a G3 na confusão de um ataque ao aquartelamento


Pormenor da capa do documento,  "Histórias da CCAÇ 2553". que reune cerca de 6 dezenas de episódios narrados por oficiais, sargentos e praças da CCAÇ 2533 (Canjambari e Farinm, 1969/71).  A brochura, com 115 pp. (mais 30 inumeradaas, com fotografias,) foi  impresso na Tipografia Lessa, na Maia, propriedade do Joaquim Lessa, ex-militar da CCAÇ 2533, e um dos organizadores dos convívios anuais do pessoal.












1. Histórias da CCAÇ 2533 > Parte XVII (José Joaquim da Costa Fonseca, sold at inf, 1º pelotão):

Continuamos a publicar as "histórias da CCAÇ 2533", a partir do documento  editado pelo ex-1º cabo quarteleiro, Joaquim Lessa, e impresso na Tipografia Lessa, na Maia (115 pp. + 30 pp, inumeradas, de fotografias). (*)

Registe-se, como facto digno de nota, que esta publicação é uma obra coletiva, feita com a participação de diversos ex-militares (oficiais, sargentos e praças) daquela  companhia.

A brochura chegou-nos às mãos, em suporte digital, através do Luís Nascimento, que vive em Viseu, e que também nos facultou um exemplar em papel. Até ao momento, ele é o único representante da CCAÇ 2533, na nossa Tabanca Grande, apesar dos convites, públicos, que temos feito aos autores cujas histórias vamos publicando.

Temos autorização do editor e autores para dar a conhecer, a um público mais vasto de amigos e camaradas da Guiné, as aventuras e desventuras vividas pelo pessoal da CCAÇ 2533, companhia independente que esteve sediada em Canjambari e Farim, região do Oio, ao serviço do BCAÇ 2879, o batalhão dos Cobras (Farim, 1969/71).

Desta vez publicamos 4 pequenas histórias, contadas pelo sold at inf José  Joaquim da Costa FosnecaTomás Costa, : (i) uam saída para o mato em 29 de abril de 1970 (p. 71); (ii) O Vieito que "perdeu" a arma num ataque ao aquartelamento (p. 72); (iii) Um dia aziago de janeiro de 1970 em que tivemos dois mortos , além do burro que transportava rações de combate (p. 73); e, por fim,  (iiv) uma história com o Ramalho (p.74)...

2. É pena que a malta da CCAÇ 2533, que produziu este livrinho com mais de 6 dezenas de histórias do dia a dia de Canjambarim e Farim, ainda não tenha respondido ao meu convite para se sentarem, também eles, à sombra do poilão da nossa Tabanca Grande. Só preciso do seu OK e das duas fotos da praxe (uma atual e outra do tempo da tropa; basta digitalizá-las e mandámos por email).

Estes camaradas são credores da nossa admiração e apreço. E são um exemplo a seguir  pelos demais combatentes da Guiné por partilharem, deste modo, as suas experiências, vivências e recordações.
Já aqui reproduzimos textos dos seguintes camaradas da CCAÇ 2533, por ordem cronológica:

(i) Cap inf Sidónio Nartins Ribeiro da Silva, cmdt de companhia, hoje cor ref;

(ii) Fur mil at inf Fernando J. do Nascimento Pires, 3º pelotão;

(iii) Fur mil minas arm Avelino da C. Meneses Pereira, 4º pelotão;

(iv) Alf mil inf Armando Manuel H. Gabriel da Mota, cmdt 1º pelotão;

(v) Sold at inf José Tomás Costa, 1º pelotão.

(vi) Sold at inf José Joaquim da Costa Fonseca, 1º pelotão)

Mas ainda há mais autores, uns sete... Para todos eles, vão os nossos parabéns e o nosso alfabravo. LG
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Guiné 63/74 - P13441: Diário da CART 1742 (Mário Alves, 1.º Cabo Corneteiro) (3): Período entre Agosto de 1968 e Janeiro de 1969 (Abel Santos)

1. Continuação do "Diário da CART 1742" de autoria de Mário dos Anjos Teixeira Alves, 1.º Cabo Corneteiro, enviado ao Blogue pelo nosso camarada Abel Santos (ex-Soldado Atirador da CART 1742 - "Os Panteras" - Nova Lamego e Buruntuma, 1967/69).




Diário da CART 1742

Autoria de Mário dos Anjos Teixeira Alves
1.º Cabo Corneteiro
Guiné, 1967/1969

Este diário foi oferecido aos camaradas presentes no 9.º convívio da Companhia de Artilharia 1742, em Campeã - Vila Real de Trás-os-Montes em 25 de Maio de 2013.

Eis a razão
Dos momentos
Da nossa indisposição,
Mandaram-nos para a guerra
Sem a nossa opinião.
Por isso o Salazar
Não terá o nosso perdão.


AGOSTO 68
Dia 1 - quinta-feira:
De manhã, por opinião do nosso alferes Cruz, eu e o Oliveira resolvemos deixar de dormir na arrecadação, eu passei a minha cama para o abrigo 7 devido a fazer lá reforço, e o Oliveira continua a dormir no abrigo dos mecânicos.

Dia 2 - sexta-feira:
A manhã passou-se dentro da normalidade, e à tarde veio cá a avioneta com o correio.

Dia 3 - sábado:
De manhã andei ajudar a abrir uma vala no abrigo 7 e a recompor outra que não estava em condições.

Dia 4 - domingo:
Às 9h30 fui à enfermaria dar uma massagem na perna que já está quase boa. Como já há medicamentos para me tratar a fístula na agulha vertebral, deram-me duas injecções para esse efeito.

Dia 5 - segunda-feira:
De manhã foi o pessoal a Camajabá e trouxeram correio.
De tarde às 16h30 estivemos a receber lençóis e outras coisas do pelotão que amanhã vai render o outro que está em Camajabá e em Ponte Caium.

Dia 6 - terça-feira:
Às 13h chegou o pelotão que foi rendido e, estivemos distribuír-lhes entre outras coisas os respectivos lençóis, esses já não tem o mínimo de qualidade.

Dia 12 - segunda-feira:
Foi uma coluna a Bambadinca para reabastecimento da despensa.

Dia 14 - quarta-feira:
Às 11h chegou a coluna com os géneros de Bambadinca, e com o correio.

Dia 15 - quinta-feira:
Tivemos um almoço melhorado, em relação ao costume: batatas com bacalhau, por terem chegado ontem os géneros, ofereceram também uma cerveja pequena a cada um, por causa da vaca que ontem mataram, e não tinham a quem pagar, por outra forma, porque, de outra forma o nosso furriel vagomestre, Romão, só está bem a arranhar para dentro, tal como os macacos.

Dia 16 - sexta-feira:
Tivemos um jantar com alguns amigos, cabrito com batatas no forno e foi comido na arrecadação, acompanhado com uma respectiva cerveja.

Dia 18 - domingo:
Foi um dia bastante atribulado, mas compensado com um jantar de cabrito com batatas assadas no forno. Foi organizado pelo pessoal do nosso abrigo (7), para inaugurar as novas reparações. Participou também no jantar o sargento Bonito, o alferes Cruz, o furriel Nogueira e o furriel Amaro. Comeu-se bem e, bebeu-se ainda melhor sempre acompanhado de boa disposição.

Dia 21 - quarta-feira:
A avioneta veio trazer os frescos, frango e outros artigos.

Dia 22 - quinta-feira:
De manhã saiu uma coluna para Camajabá buscar correio, chegaram às 10h.
Ao meio-dia almoçámos frango e, também houve fruta-maçã, o que é difícil chegar à nossa cozinha.

Dia 27 - terça-feira:
Um dia aborrecido. Estivemos a receber material dos que vão ser transferidos para outra companhia, devido ao castigo que lhes foi aplicado, castigo esse que foi por se terem ausentado durante um ataque do IN, quando a companhia se encontrava no mato debaixo de fogo. Pelo que dizem, a maior culpa foi do alferes Magalhães do mesmo pelotão, que se dirigira aos outros comandos, e deixou as secções sozinhas, isto relatam os camaradas.

Dia 28 - quarta-feira:
De manhã saiu uma coluna para Nova Lamego, chegaram à noite e trouxeram correio.
O resto do dia correu tudo normal, e assim até ao dia 31.

Setembro 68
Dia 4 - quarta-feira:
Da parte de tarde a avioneta veio trazer correio mais o nosso capitão, que chegara de gozar férias em Portugal.

Dia 8 - domingo:
Ao meio-dia veio cá a avioneta para levar um doente para o hospital.

Dia 9 - segunda-feira: 
Ao meio-dia voltou a avioneta e trouxe correio. O resto do dia tudo normal.

Dia 12 - quinta-feira:
Eu, o Lemos e o nosso faxina da arrecadação, fomos ver se comprávamos um frango ou uma galinha mas não conseguimos, já nem com dinheiro se consegue o que é preciso, isto porque no rancho geral só há esparguete e vianda.

Dia 13 - sexta-feira:
Saiu uma coluna para Piche, e regressou às 13h30 com os dois obuses, e com o pelotão que trabalhava com eles. A seguir estivemos a armazenar os cunhetes das granadas dos ditos obuses. Depois distribuímos-lhes mantas, porque as que há são só fitas.

Dia 14 - sábado:
De manhã andámos nós e os mecânicos, a arranjar o chuveiro que serve a eles e, a nós. O conserto foi demorado, porque o dito chuveiro é montado em quatro paus ao alto e, depois umas travessas para aguentar com um bidão de 200 litros com uma torneira e uma lata de coca-cola na ponta para fazer de chuveiro. A água é abastecida com um carro próprio, sempre que possível, e assim é a forma de tomar banho em todos os destacamentos.

Dia 15 - domingo:
Veio cá a avioneta com correio, o resto do dia normal.

Dia 16 - segunda-feira:
Às 11h chegou a avioneta com o capitão de operadores dos obuses, que a seguir estiveram a fazer fogo com eles para um acampamento IN, que segundo eles fica a 10 quilómetros daqui, junto à fronteira.

Dia 21 - sábado:
Foi melhor que os dias anteriores, veio a avioneta trazer-nos correio, tirando isso tudo normal.

Dia 22 - domingo:
Dia especial, porque completámos 14 meses de comissão, e de tarde estivemos a ouvir o relato da bola, que hoje deu para ouvirmos através da emissora de Bissau, talvez daqui em diante utilizem o mesmo sistema, assim o esperamos.

Dia 23 - segunda-feira:
De manhã saiu a companhia para uma operação e, ao passar em Camajabá o capitão verificou que havia falta de luz e, mandou-nos preparar petromaxes para os enviar ao destacamento.
Junto à noite formou-se uma tempestade que tirou os oleados que servem de cobertura da arrecadação e, continuava a arrancar as chapas de zinco, mas ao fim de 15 minutos começou a reduzir a força do vento, e não causou mais estragos.

Dia 24 - terça-feira:
De manhã andámos a estender os oleados na cobertura da arrecadação e a tentar segurá-los o melhor possível. De tarde, em virtude de haver informações de que o IN está a 4 quilómetros, ou seja, na fronteira, preparados com artilharia pesada. A nossa aviação, os Fiat e os T-6, andaram a patrulhar a zona para verem se encontravam algo. Nós redobrámos as precauções, apesar de estarmos sempre à espera de novas visitas.

Dia 25 - quarta-feira:
Veio a avioneta civil trazer alimentos, os chamados frescos: frango, peixe, etc. Mas não trouxe correio.

Dia 26 - quinta feira:
Às 7h estivemos a dar material ao pessoal que vai fazer uma coluna a Bambadinca, e levaram os petromaxes para Camajabá. Até ao final do dia tudo continuou normal.

Dia 27 - sexta-feira:
De manhã o nosso capitão avisou o pessoal do abrigo 7, ao qual eu pertenço, pelo facto de estarmos perto da arrecadação, para montarmos segurança à avioneta que vem cá fazer uma evacuação.

Dia 29 - domingo:
Como não há missa, fui ao abrigo 7 arrancar alguns tomateiros que temos lá em alfobre e, plantei-os aqui junto à arrecadação.

Dia 30 - segunda-feira:
Após o almoço chegou a avioneta com o comandante do sector, vindo de Bafatá e com ele o major de operações. A avioneta regressou e eles ficaram.
À noite, já estávamos no abrigo, quando chegou a informação de que o inimigo estava a caminho daqui para nos atacar. Os obuses fizeram fogo a bater a zona indicada e, o certo é que IN não deu sinal, se vinham retiraram-se.

Outubro 68
Dia 1 - terça-feira
Às 8h chegou a avioneta para levar o comandante e o major. Também nos trouxe correio.

Dia 3 - quinta-feira:
Após o meio-dia veio a avioneta trazer o 1.º sargento Bonito, que estava em Nova Lamego, e veio também o capitão do Batalhão que ficará cá alguns dias.

Dia 4 - sexta-feira:
O capelão rezou uma missa pelo falecido Bagaço, morto durante um ataque que sofremos a 28 de Julho. Como não há capela, a missa foi ao ar livre, e só foram à missa os que não estavam em serviço, como é óbvio.

Dia 5 - sábado:
Em virtude de ser feriado, às 7h foi um milícia chamar-me ao abrigo para ir à arrecadação dar-lhe a bandeira, nós, no abrigo ignorávamos que àquela hora havia missa. Assim eu ainda participei. Restante dia tudo normal.

Dia 6 - domingo:
E hoje sim, um domingo com possibilidade de assistir à missa, o que já não acontecia desde que saímos de Nova Lamego. A missa foi às 16h.

Dia 7 - segunda-feira:
Às 8h fui à missa, e de tarde o nosso capitão chamou-me para eu marcar o mês de férias o qual já lhe tinha pedido, e então marquei entre o dia 1 e o dia 5.

Dia 8 - terça-feira:
Como o capelão vai embora, às 8h rezou uma missa tendo antes confessado o pessoal todo ao mesmo tempo. Este foi um bom dia, porque além de nos termos confessado ainda tomámos o Senhor.

Dia 9 - quarta-feira:
Ao meio-dia chegou a coluna de Bambadinca com os géneros e algum cimento.

Dia 12 - sábado:
Nós, os do abrigo 7, passámos a manhã a esticar o arame farpado que pertence à zona do abrigo.
Após o meio-dia, veio a avioneta e trouxe correio.
Restante dia tudo normal.

Dia 16 - quarta-feira:
Das 7h às 9h eu e o Oliveira andámos a cavar terra no pequeno quintal para plantarmos mais crugidades (cultivos de horta).
De tarde veio a avioneta trazer frescos e o correio, que é o que nós aguardamos com mais ansiedade.

Dia 18 - sexta-feira:O meu turno de reforço foi das 3h às 5h, e a seguir estive a dar material – picas – ao pessoal que vai a Piche buscar um pelotão, que vem reforçar-nos enquanto a nossa companhia vai fazer uma operação às 10h.
Chegaram e estivemos a dar-lhes colchões e mantas para eles dormirem distribuídos pelos abrigos.
Também chegou o sargento Ribeiro com uma encomenda para o Oliveira, que os pais lhe mandaram.
De tarde distribuímos material ao nosso pessoal que vai fazer uma operação.
À noite o Oliveira ofereceu presunto, o Ribeiro também comeu, e até pagou umas cervejas.

Dia 19 - sábado:
De manhã, nós e o sargento Ribeiro, estivemos a receber os lençóis velhos e fronhas, e a entregar novos ao pessoal que não foi para a operação.
Às 10h30 chegou a avioneta com armas G3 novas e os respectivos carregadores, mas não trouxe correio.
De seguida conferimos todo o material, e de tarde metemos-lhes as bandoleiras para entregarmos o mais rápido possível aos homens a quem foram destinadas.
Às 17h30 chegou o pessoal da operação que correu bem.

Dia 20 - domingo:
De manhã continuámos a trocar os lençóis e fronhas aos que ontem chegaram da operação. A seguir, estivemos a encartar os lençóis velhos para os mandar para Bissau, quando os pedissem.
À noite houve informações de que tinha passado a fronteira, um grupo de 200 homens para atacarem um destacamento desta zona, e daqui transmitiram a mesma informação para Nova Lamego, Piche Camajabá e Ponte Caium. Nós preparámo-nos para receber esses amigos.
Às 21h os obuses bateram toda a fronteira que lhe estava ao alcance e à meia-noite voltaram a fazer o mesmo, mas retaliação não houve.

Dia 21 - segunda-feira:
Às 4h, os obuses voltaram a fazer fogo batendo novamente a zona, e só pararam às 7h, mas não houve notícias os amigos tivessem aparecido em qualquer destacamento.

Dia 22 - terça-feira:
Fazemos 15 meses de comissão e, cá vamos andando dentro do possível.

Dia 23 - quarta-feira:
A avioneta civil veio trazer frescos, mas não trouxe correio.

Dia 24 - quinta-feira:
Nós e o sargento Ribeiro andámos a conferir armas entre outras coisas, que já não funcionam bem, para serem enviadas para Bissau. Eu entretanto fui à cozinha buscar as sardinhas a que tínhamos direito e assámo-las, tendo também almoçado connosco o sargento Ribeiro.
Restante dia normal.

Dia 26 - sábado:
Esteve cá o Lima, carpinteiro, a preparar uns caixotes para mandar com armamento velho para Bissau.

Dia 28 - segunda-feira:
Ao meio-dia veio a avioneta trazer algumas armas G3 novas, veio também o furriel mecânico de armas e também o correio.

Dia 29 - terça-feira:
De manhã o furriel mecânico de armamento experimentou as bazucas que tinha reparado, e dos lados de Kandicá responderam também com armas pesadas, das quais duas granadas rebentaram muito perto do nosso destacamento, o que nos levou a reforçar de cautelas para esperarmos pelas visitas pela noite, mas tal não aconteceu.

Dia 30 - quarta-feira:
De manhã o mecânico esteve cá na arrecadação a reparar as avarias de algumas G3 de colegas nossos e continuou de tarde.
Às 23h estava eu a sair de reforço e os obuses fizeram fogo a bater a zona, para o IN não tentar qualquer aproximação.

Dia 31 - quinta-feira:
Às 6h os obuses voltaram a fazer fogo com o mesmo sentido, e repetiram a dose às 11h, enquanto nós, e o furriel mecânico de armamento continuámos a reparar algumas armas, e assim findou mais um mês.

Novembro 68
Dia 2 - sábado:
Às 6h foram-me chamar ao abrigo para dar picas, pois a companhia vai a Piche buscar dois pelotões para se concluir uma operação.
Também veio um pelotão de Nova Lamego para reforço, chegaram às 11h e trouxeram correio.
Resto do dia tudo normal.

Dia 3 - domingo:
Às 14h30 vim eu e o Oliveira à arrecadação dar material à malta que ia fazer a operação. Foi o pessoal da nossa companhia e dois pelotões que vieram para esse efeito.
Às 16h30 chegaram os bombardeiros e o helicóptero para apoio do pessoal.

Dia 4 - segunda-feira:
De manhã chegou o pessoal da operação que correu bem.
De tarde estivemos a receber o material (mantas, etc.) que tínhamos distribuído aos três pelotões que vieram reforçar-nos, e que amanhã vão para as suas companhias, em Piche e Nova Lamego.

Dia 5 - terça-feira:
Ao meio-dia veio a avioneta com o comandante de Nova Lamego que veio despedir-se da companhia, pois vamos passar a pertencer a um Batalhão que vem para Piche, aquartelamento em que só existia uma companhia. Também nos trouxeram correio.

Dia 7 - quinta-feira:
Após o meio-dia, chegou a avioneta com um capitão que já cá tinha estado em 64, a população fez-lhe uma festa formidável, em agradecimento ao tempo em que ele cá esteve, e que pelos vistos deixou saudades.

Dia 8 - sexta-feira:
Dia do meu aniversário.
De manhã começaram a preparar a coluna para ir a Bambadinca aos géneros e eu, ao saber disso, fui à secretaria para ver se podia ir com eles, gozando assim a minha licença. Então disseram-me que só podia ir no regresso da coluna, com as viaturas militares e civis de Nova Lamego, e como era para gozar a licença, ainda não sabiam a certeza dos que iam.
De tarde o nosso capitão chamou-nos e disse que eu podia preparar a mala juntamente com mais 7 colegas.

Dia 9 - sábado:
Preparei a mala para estar pronto para partir no dia seguinte rumo a Bissau.

Dia 10 - domingo:
Às 11h chegou a coluna e, como estava previsto parti para Nova Lamego, onde chegamos às 16h30 e lá pernoitei.

Dia 11 - segunda-feira:
Logo de manhã entreguei a arma na arrecadação do Batalhão, e de seguida fomos tentar arranjar viagem no avião Dacota para Bissau, mas já estava completo, mas havia uma coluna para Bambadinca, nós aproveitamos a boleia, onde chegamos às 14h.
Às 15h abriu a secretaria, fomos fazer a apresentação, e disseram-nos para ir ver se os barcos que estavam na doca nos podiam levar, encontrámos um que saía às 2h30 e lá fomos. Até lá demos um passeio por Bambadinca, e às 21h assistimos a um magusto que o batalhão ofereceu por ser dia de S. Martinho.
Também estava lá algum pessoal de uma escolta, a qual tinha sido atacada nas proximidades do Xitole, entretanto chegaram alguns feridos, e um soldado nativo morto.

Dia 12 - terça-feira:
Às 2h30 partimos no barco chamado Girassol rumo a Bissau.
Às 8h30 o barco ficou preso na areia, devido a maré ter baixado e não ter tido tomado a rota mais aconselhável.
Assim, só às 13h a maré começou a encher, e então recomeçámos a viagem, tendo chegado a Bissau às 19h30. Logo fomos a uma pensão comer, e a seguir tratámos de arranjar transporte para os Adidos, como a secretaria estava fechada ficámos lá a pernoitar.

Dia 13 - quarta-feira:
Às 8h fomos entregar as guias à secretaria, de seguida fomos arranjar pensão para passar o mês, que ficou por 1700 pesos, comer e dormir, fora as bebidas.
Às 14h fui à escola de condução para tirar a carta de condução de ligeiros e pesados.

Dia 14 - quinta-feira:
Comecei as aulas e assim continuei todos os dias, excepto aos domingos.
Só o dia 27, quarta-feira, é que foi diferente, porque recebi cá em Bissau o 1.º correio e dinheiro dos meus pais.
Até ao fim do mês tudo normal.

DEZEMBRO 68
Dia 1 - domingo:
Um dia mais próprio para dar um passeio pela cidade, de resto tudo normal até sexta-feira, dia em que meti o pedido na escola para ir a exame, dia 10 ou 11.

Dia 7 - sábado:
O Sr. Ramos, dirigente da escola de condução, chamou-me para me dizer que o meu registo criminal estava caducado, e por tal não podia pedir o exame, mas consegui que ele mo pedisse com urgência para Portugal, a ver se ainda era possível ir a exame, mesmo atrasando a minha ida para a companhia.

Dia 9 - segunda-feira:
Fui ao médico dos Adidos devido à fístula da agulha vertebral, e então ele marcou-me uma consulta para o hospital, e logo me alertou que tinha que ser operado.

Dia 10 - terça-feira:
Além da escola, fui à secretaria dos Adidos entregar a guia da consulta para o comandante assinar.

Dia 11 - quarta-feira:
Em virtude de me terminar a licença fui aos Adidos fazer a apresentação, e levantei a guia para ir à consulta externa, e agora fico a pertencer aos Adidos até que tudo esteja resolvido.

Dia 13 - sexta-feira:
Fui à consulta e fizeram-me algumas análises.

Dia 14 - sábado:
Voltei ao hospital para fazer mais análises, e fui avisado para marcar a passagem na segunda-feira para regressar à companhia.

Dia 16 - segunda-feira:
Às 7h30 fui à secção de transportes expor o meu caso, tinha consulta marcada para hoje no hospital, e então cancelaram a minha viagem, mas no hospital mudaram a consulta para amanhã.

Dia 17 - terça-feira:
Às 15h fui ao hospital e foram-me entregue os resultados das análises para entregar ao médico, mas hoje não o encontrei.

Dia 18 - quarta-feira:
Também não foi possível encontrá-lo, e só fui possível ter consulta dia 20, sexta-feira às 9h, e aí o médico mandou-me fazer mais análises, e nova consulta para o dia 27.

Dia 22 - domingo:
Faz 17 meses que saímos de Lisboa a caminho desta pobre Guiné.
Restante dia tudo como dantes e assim até ao dia 23, segunda-feira.

Dia 24 - terça-feira:
Dia de consoada. Fui passar o Natal com o amigo Libânio ao quartel da Amura. Foi uma ceia muito bem festejada.

Dia 25 - quarta-feira, dia de Natal:
Almocei cá nos adidos, e também foi um almoço natalício muito bom para o lugar que é.
À noite fui jantar à Amura com o amigo Libânio.

Dia 26 - quinta-feira:
Fui ao hospital tirar sangue para análise.

Dia 27 - sexta-feira:
Fui à consulta, mas esta foi mudada para dia 3 do próximo mês, e próximo ano.
E assim até ao dia 31 terça-feira e fim do ano.
Na passagem de ano também ofereceram um jantar melhorado, e assim terminou o ano 68.

ANO 1969
JANEIRO
Dia 2 - quinta-feira:
Chegou o registo criminal e fui à escola para marcarem o exame, o qual ficou marcado para o dia 7.

Dia 3 - sexta-feira:
De manhã fui ao hospital à consulta, e deram-me alta até ao dia 17, dia em que vou ser internado para me operarem.

Dia 5 - domingo:
Fui à secretaria falar com o primeiro-sargento, e ele chamou o delegado do batalhão a que pertence a minha companhia, para lhe entregar a guia de consulta externa para a mandar ao nosso capitão para a assinar. Só assim podia ser operado.

Dia 7 - terça-feira:
Dia do meu exame de condução de ligeiros e pesados profissional.
Às 16h começou o de código, e a seguir a mecânica, e finalmente a condução. Correu tudo bem, felizmente.
A partir daí foi festejar.
Tudo se passou normalmente até ao dia 12, domingo.

Dia 13 - segunda-feira:
Chegaram quatro colegas da minha companhia, que vêm gozar licença, e trouxeram-me boas notícias da companhia, o correio, e o dinheiro do mês de Novembro e Dezembro.

Dia 14 - terça-feira:
Tudo normal e assim até ao dia 24 em que faz três anos que assentei praça em Vila Real, e assim continuou até ao dia 28, terça-feira.

Dia 29 - quarta-feira:
À noite encontrei-me com um cabo da companhia que tinha chegado ferido com mais dois, um dos quais chamado Adão que é da Amarante, este ficou sem a perna direita numa armadilha, que rebentou a uma pequena distância de Buruntuma, durante a patrulha que hoje de manhã andaram a fazer.

(Continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 26 de Julho de 2014 > Guiné 63/74 - P13437: Diário da CART 1742 (Mário Alves, 1.º Cabo Corneteiro) (2): Período entre Fevereiro e Julho de 1968 (Abel Santos)

Guiné 63/74 - P13439: Notas de leitura (617): “Guiné-Bissau - Páginas de História Política, Rumos da Democracia", por F. Delfim da Silva (1) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 20 de Janeiro de 2014:

Queridos amigos,
Fernando Delfim da Silva é nome proeminente na política guineense. Licenciou-se em Filosofia em Leningrado, esteve ligado ao sistema educativo e foi dirigente da juventude Amílcar Cabral.

Entrou na rampa ascendente em 1990, como diretor geral da Presidência do Conselho de Estado, foi depois secretário de Estado e várias vezes ministro; foi prisioneiro político em 1972/73 e em 1985/86.

Este seu livro é assumido como uma coletânea de memórias da sua experiência política, tem um aporte sobre o processo eleitoral e o modo de o emendar e uma análise aos partidos políticos então existentes (conjuntura de 2003).

Trata-se de um depoimento incontornável, estranhamente silenciado em análises posteriores de gente credenciada. Coisa que faz parte dos chamados silêncios africanos…

Um abraço do
Mário


Fernando Delfim da Silva:
Memórias e considerações de um político guineense (1)

Beja Santos

Desafortunadamente, os escritos oriundos de antigos combatentes do PAIGC e de políticos guineenses pós-independência são raros e nem sempre esclarecedores.

Devemos a Luís Cabral, depois da sua prisão, após o golpe de Estado de 14 de novembro de 1980, um depoimento de inegável importância sobre a vida e obra de Cabral, é uma crónica que não deixa equívocos sobre a articulação estreitíssima entre o líder e a sua obra; Aristides Pereira começou por ser comedido e até entediante sobre a história do PAIGC e o fim da unidade Guiné-Cabo Verde, no final da vida, numa longuíssima entrevista a José Vicente Lopes foi de uma franqueza inesperada; Bobo Keita, uma figura militar de segunda grandeza, aceitou ser entrevistado e trouxe dados pertinentes sobre o regime de Nino e lançou uma outra luz sobre o assassínio de Amílcar Cabral; Filinto Barros, um dos políticos mais experientes e íntegros do PAIGC, escreveu um romance primoroso sobre a condição dos ex-combatentes numa Guiné-Bissau já desalentada, Kikia Matcho, o seu derradeiro testemunho foi publicado sem ser revisto, trata-se de um texto intragável onde o antigo político acusa muita gente de gestão danosa sem explicar muito bem quais os corretivos que deviam ter sido aplicados.

E há outros depoimentos, até aos dias de hoje, basta recordar o que aqui se escreveu sobre os livros de considerações políticas atuais assinados por Leopoldo Amado e Julião Soares Sousa. O nome de Fernando Delfim da Silva e o seu livro “Guiné-Bissau, Páginas de história política, rumos da democracia”, Firquidja Editora, Bissau, 2003, não me podia deixar indiferente.

Convivi com Delfim da Silva em 1991, quando ele, pela noitinha, a caminho de casa, e depois de ter trabalhado nos serviços da Presidência da República, me dava boleia entre a Pensão Central e a Cicer, salvou-me muitas vezes de dar trambolhões na noite sem lua; em 2010, quando eu estava a ultimar “A Viagem do Tangomau”, acedeu várias vezes a conversar comigo sobre a história recente da Guiné-Bissau, registei os seus pontos de vista, estou certo que nos despedimos com respeito e consideração mútuos.

O livro do antigo ministro dos Negócios Estrangeiros divide-se entre considerações de por vezes do grau íntimo sobre políticos guineenses e uma vasta apreciação sobre o processo eleitoral, isto em vésperas das eleições de 2004, após o afastamento compulsivo de Kumba Yalá da Presidência da República onde este, pouco antes da partida, dissolvera a Assembleia Nacional Popular. Por razões compreensíveis, não cabe nesta recensão dissecar as suas opiniões sobre um sistema eleitoral mais apropriado para a Guiné-Bissau, vamos ater-nos às considerações políticas.

Ele chama ao seu depoimento a história de uma geração, “uma história que ninguém sabe quando vai terminar, nem como vai terminar”. Geração vitoriosa, que levou a Guiné à independência, geração do 14 de novembro de 1980, que cindiu o PAIGC a que se seguiu o golpe da polícia política no chamado “caso 17 de outubro de 1985”, e depois a guerra civil de 1998-1999, com outros episódios pelo meio menos relevantes mas muitíssimo significativos de um poder autocrático que procriou um golpismo militar permanente.

É um livro de recordações, por vezes circulares, por vezes ordenadas na cronologia dos factos. Recorda as primeiras eleições legislativas e presidenciais livres, as de julho de 1994, acreditava-se então numa transição política de sucesso. Politicamente, sempre segundo Delfim da Silva, foram falhanços atrás de falhanços, daí ele considerar de primeiríssima importância a necessidade de se construir um modelo de maior justiça eleitoral, o livro termina por uma abordagem e descreve-os resumidamente, são apontamentos de consideração obrigatória para a historiografia política guineense.

Delfim da Silva afastara-se da política quando foi estudar filosofia na então Leninegrado. Em 1990, diz ter acreditado no processo de transição democrática e tornou-se num estreito colaborador de Nino Vieira. Acompanhou a revisão constitucional de maio de 1991 que revogou o artigo 4.º que consagrava o PAIGC como (única) “força política dirigente da sociedade e do Estado”, que tornou possível o aparecimento de legislação sobre os partidos, a liberdade de imprensa, o direito de reunião e manifestação e a liberdade sindical, entre outros.

Ninguém debateu nem ninguém escreveu, nem ninguém anteviu que a competição interpartidária podia vir a acarretar um populismo extremamente corrosivo no quadro de uma democracia parlamentar de fresca data. Parece ter havido uma confiança cega na transição democrática. O PAIGC vivia ferreamente atado aos princípios definidos por Cabral quanto ao partido-Estado, desde 1964. A omnipresença do PAIGC parecia um dogma, como escreveu Amílcar Cabral:

“Estamos organizados como um partido: por tabanca, por zona e por região. O Sul da Guiné é dirigido por um Comité Nacional das Regiões Libertadas do Sul, e o Norte é dirigido por um Comité Nacional das Regiões Libertadas do Norte. Isto constitui uma estrutura básica de Governo. De facto, as regiões libertadas têm já todos os elementos de um Estado – serviços administrativos, serviços de saúde, serviços de educação, forças armadas locais para a defesa dos ataques portugueses, tribunais e prisões. O problema imediato é alargar o nosso Estado até abarcar todo o país. A transição para a estrutura do Estado não será um problema”.

E assim aconteceu, o PAIGC instalou-se em Bissau, em outubro de 1974, e teve a ilusão da sua capilaridade por todo o território, planificou a economia, a direção política imaginou uma industrialização pujante, cercou-se de uma polícia política e instalou o esbirrismo, com os insucessos procuraram-se complôs irresponsáveis, caso dos comandos africanos; a latência da tensão entre os nacionais e os cabo-verdianos atingiu o clímax com uma nova proposta de revisão constitucional.

Nino coordenou o golpe, o poder militar superou o poder político, deu-se a cisão com os cabo-verdianos e a prisão de figuras importantíssimas da luta, guineenses de gema. Reforçou-se o poder autocrático, graças a militares como Ansumane Mané. Delfim da Silva recorda figuras que ele classifica como importantes, caso de Sanussi Cassamá que em julho de 1992 ascendeu a chefe de Estado-Maior General das Forças Armadas, nele se depositou esperança da reforma das Forças Armadas, institucionalizando-as em parâmetros modernos, adequados à tradição democrática. Sanussi Cassamá morreu de doença e sucedeu-lhe Ansumane Mané.

Estava lançada, com insidiosa violência, a questão militar que parecia resolvida desde o Congresso de Cassacá, em fevereiro de 1964. A questão militar entrou de enxurrada na vida política guineense a partir de 1980: o descontentamento dos antigos combatentes, a arrogância dos agentes da segurança do Estado, a clique militar à volta de Nino, uma burocracia de Estado montada à custa dos heróis indiscutíveis, fomentaram rivalidades e espírito de complô que irão desembocar na humilhação de Victor Saúde Maria, na paranóia de um “golpe militar Balanta” e no caso de Paulo Correia e de outros dirigentes, fuzilados em 1986.

(Continua)
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Nota do editor

Ultimo poste da série de 25 de Julho de 2014 > Guiné 63/74 - P13435: Notas de leitura (616): “Pluralismo Político na Guiné-Bissau", coordenação de Fafali Koudawao e Peter Karibe Mendy (2) (Mário Beja Santos)

domingo, 27 de julho de 2014

Guiné 63/74 - P13438: Efemérides (167): Homenagem aos Combatentes da Grande Guerra do Concelho de Loures, levado a efeito no passado dia 25 de Julho de 2014 (José Martins)

1. Mensagem do nosso camarada  José Marcelino Martins (ex-Fur Mil Trms da CCAÇ 5, "Gatos Pretos", Canjadude, 1968/70), com data de 25 de Julho de 2014:


Frente do Monumento 
© - Foto: José Martins


HOMENAGEM AOS COMBATENTES DA GRANDE GUERRA DO CONCELHO DE LOURES

Conforme difundido, teve lugar em Loures, junto ao Monumento aos Combatentes da Grande Guerra, obra de Fernando Soares, inaugurado a 8 de Dezembro de 1929, uma homenagem aos Combatentes do Concelho de Loures (à época incluía o actual município de Odivelas), assim como a apresentação da obra de restauro do citado monumento.

A cerimónia iniciou-se com a colocação de uma coroa de flores, na base do monumento, pelo Presidente da Câmara, Dr. Bernardino Soares.


Presidente da Câmara frente ao Monumento
© - Foto: José Martins

A Guarda de Honra foi prestada por uma secção da Companhia de Comando e Serviços do Regimento de Transportes.
Um terno de clarins e caixa, da mesma unidade, executou o Toque de Silêncio, seguido do toque de Mortos em Combate, enquanto a força militar se postava na posição de “apresentar armas”, findo o qual se fez silêncio, em memória dos combatentes tombados no campo da honra, tendo o Reverendo Padre Francisco, Paróquia de Loures, proferido uma Oração.

Reverendo Francisco, proferindo a Oração
© - Foto: José Martins

Seguidamente fez-se ouvir o toque de alvorada. Se o toque de silêncio e o toque a mortos em combate, nos recorda os camaradas de armas tombados, o toque de alvorada recorda-nos que há um “dia novo”, que é preciso reiniciar a vida e concluir o que aqueles militares não puderam fazer.

Coronel Rodrigues Cardoso, no uso da palavra
© - Foto: José Martins

Tomou seguidamente a palavra, representando a Liga dos Combatentes, o Coronel António Manuel Rodrigues Cardoso, presidente do Núcleo de Lisboa, que estava representado com o guião, lembrando o sacrifício pedido aos portugueses, assim como lembrando a criação da própria Liga, como meio de apoio aos combatentes de então e, actualmente, a prossecução desses mesmos objectivos.

O Presidente da Câmara de Loures
© - Foto: José Martins

A cerimónia ficou concluída com a intervenção do Dr. Bernardino Soares, que recordou que não basta recordar os nossos maiores, mas é preciso manter a sua memória viva, com a conservação do património que os celebra.

Porta-estandarte do Núcleo de Lisboa da Liga dos Combatentes
© - Foto: José Martins

À cerimónia estiveram presente elementos dos Órgãos Municipais, Comandante do Regimento de Transportes, Coronel Vítor Manuel dos Santos Borlinhas, assim como a população, entre os quais se notava a presença de Combatentes da Guerra do Ultramar.

Postal editado para comemorar o acto, pela C.M. Loures (2014)

Guarda de Honra, junto ao monumento. 
© - Foto: José Martins

Texto: José da Silva Marcelino Martins
Sócio da LC nº 80.393/Lisboa
Odivelas, 25 de Julho de 2014

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Links sobre o Monumento de Loures:

Em Ultramar Terra.Web.bis

(1) Inauguração do Monumento

(2) Homenagem aos Combatentes em 10 de Abril de 2011

(3) Combatentes da Grande Guerra do Concelho de Loures (actualização de listagem)


Blogue Luís Graça e Camaradas da Guiné

(1) Inauguração do Monumento

(2) Homenagem aos Combatentes em 10 de Abril de 2011

(3) Combatentes da Grande Guerra do Concelho de Loures (actualização de listagem)
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Nota do editor

Vd. último poste da série de 21 de Julho de 2014 > Guiné 63/74 - P13425: Efemérides (166): Faz hoje 50 anos que o Pel Caç Ind 953 desembarcou a Bissau (António Bastos)

sábado, 26 de julho de 2014

Guiné 63/74 - P13437: Diário da CART 1742 (Mário Alves, 1.º Cabo Corneteiro) (2): Período entre Fevereiro e Julho de 1968 (Abel Santos)

1. Continuação do "Diário da CART 1742" de autoria de Mário dos Anjos Teixeira Alves, 1.º Cabo Corneteiro, enviado ao Blogue pelo nosso camarada Abel Santos (ex-Soldado Atirador da CART 1742 - "Os Panteras" - Nova Lamego e Buruntuma, 1967/69).




Diário da CART 1742

Autoria de Mário dos Anjos Teixeira Alves
1.º Cabo Corneteiro
Guiné, 1967/1969

Este diário foi oferecido aos camaradas presentes no 9.º convívio da Companhia de Artilharia 1742, em Campeã - Vila Real de Trás-os-Montes em 25 de Maio de 2013.

Eis a razão
Dos momentos
Da nossa indisposição,
Mandaram-nos para a guerra
Sem a nossa opinião.
Por isso o Salazar
Não terá o nosso perdão.


FEVEREIRO 68
Dia 1 - quinta-feira, às 16h:
Ouvi um alarido e saí para ver o que se passava. Era a arrecadação de géneros e a enfermaria a arder. Vieram os carros de água do Batalhão, mas não conseguiram apagá-lo, pois a cobertura era de capim.

Dia 2 - sexta-feira:
O pessoal na limpeza ao espaço que ardeu.

Dia 3 - sábado:
De manhã estivemos a preparar o material, e à tarde foi entregue aos pelotões que vão montar segurança em redor de Nova Lamego ao presidente Américo Tomás, mas houve camaradas que passaram a noite todos encharcados, já que na travessia de um riacho desequilibraram-se do tronco de uma árvore que fazia de ponte, e um deles foi o Abel Santos. Até as ruas estão todas enfeitadas para ele pensar que isto é um paraíso.

Dia 4 - domingo, às 8h
Chegou o tal presidente da República Américo Tomás, mas nós não podíamos sair, para estarmos preparados para algo de estranho, mas correu tudo bem.
Às 13h3o chegaram os pelotões que tinham ido montar segurança.

Dia 6 - terça-feira:
Chegaram os furriéis com o armamento do Batalhão para o prepararmos, a companhia ia sair no dia seguinte, e nós tivemos de fazer serão a introduzir munições nos carregadores e a pôr o material todo em ordem.

Dia 7 - quarta-feira de manhã:
Estivemos a entregar o material aos pelotões que vão fazer escolta a Béli

Dia 12 - segunda-feira, às 16h:
Chegou a companhia da escolta a Béli que fica na zona de Madina.
No regresso hoje de manhã, entre o Che-Che e Canjadude, uma mina rebentou debaixo de uma das Daimler. Morreu o condutor, e o apontador ficou gravemente ferido, eram do pelotão Daimler, que estavam prestes a ir embora.
O IN não ataca a escolta, porque a aviação faz segurança voando sobre o trajecto que era percorrido pela companhia, por isso só com minas os cobardes faziam asneiras.

Foto da Daimler

Dia 21 - quarta-feira:
Chegou o furriel Nogueira para darmos material ao pelotão dele porque ia sair, mas depois houve novas ordens: já não era preciso e voltaram a entregar o material.

Dia 22 - quinta-feira, das 20h às 23h:
Estivemos a ver cinema cá no destacamento, veio cá o furriel Foto-Cine a pedido dos nossos furriéis e oficiais.

Dia 23 - sexta-feira:
Houve correio e voltámos a ver cinema à mesma hora de ontem.

Dia 25 - domingo:
Carnaval em Portugal, mas aqui contínua tudo mais ou menos o mesmo continuando assim segunda e terça-feira de carnaval.

Dia 28 - quarta-feira:
Parte do dia estive a preparar material, porque a companhia vai sair.

Dia 29 - quinta-feira de manhã:
Entregámos o material à companhia que saiu às 7h30 para fazer mais uma escolta a Madina do Boé.

MARÇO 68
Dia 1- sexta-feira:
Dia de correio e, como sempre quando a companhia sai nós temos que fazer de cabos de dia, da guarda e reforços etc.

Dia 2 - sábado:
Recebi uma encomenda que os meus pais me mandaram. O restante tudo normal.

Dia 4 - segunda-feira, às 15h:
Chegou o pessoal da escolta a Madina, em que houve grande azar, além de terem levantado quatro minas, uma rebentou numa viatura que ficou danificada, mas só o alferes Cruz é que ficou com uns ligeiros ferimentos com as areias felizmente.
Tudo normal.

Dia 6 - quarta-feira:
Na formatura do almoço esteve cá o comandante do Batalhão a dar um elogio ao bom comportamento da nossa companhia.

Dia 7 - quinta-feira de manhã:
Entregámos material a um pelotão que saiu de tarde, esteve cá o sargento Ribeiro e estivemos a conferir material.

Dia 8 - sexta de manhã:
Demos material a dois pelotões que saíram, e a seguir continuámos a conferir material com o sargento Ribeiro.

Dia 10 - domingo de tarde:
Os fulas fizeram uma festa com o batuque deles em frente ao destacamento, tirando isso tudo normal, e assim continuou até ao dia 15, dia em que chegou o correio.
À tarde pelas 18h fui á missa em honra do furriel que morreu em Buruntuma.

Dia 19 - terça-feira de manhã: 
Estivemos eu e o Oliveira como sempre, a preparar o armamento a municiar os carregadores da Drayse e fitas da MG42 etc.
De tarde fizemos a entrega do material à companhia que amanhã vai fazer mais uma escolta a Béli, e depois do jantar distribuímos mantas ao pelotão de Canquelifá, que vem para nos ajudar a fazer a segurança cá no destacamento, como sempre.

Dia 20 - quarta-feira, às 5h da manhã:
Chegou o nosso capitão e um condutor para carregar as munições, e continuámos a dar o restante material, o que ainda era necessário, e lá partiram às 6h.
À tarde estivemos a arrecadar o material da companhia de Fá, que ficam cá hoje, para irem amanhã fazer uma operação.

Dia 21- quinta-feira, às 3h da manhã:
Veio a companhia de Fá levantar o material que nós guardámos ontem.
Às 7h30 chegou uma GMC com material da mesma companhia, pois quando caminharam a pé, não o puderam levar todo e deixaram-no aqui guardado.
Também foi dia de correio.

Dia 22 - sexta-feira: 
Faz oito meses que embarcámos em Lisboa.
De dia tudo normal, mas à noite não havia pessoal para fazer reforço. Depois resolveram que seria o pelotão de Canquelifá a fazê-lo, os quais normalmente só estão de prevenção.

Dia 23 - sábado, às 21h45:
Chegou a companhia de Fá e estivemos a arrecadar o material deles. Eles disseram-nos que tinha corrido tudo bem.

Dia 24 - domingo, às 17h30:
Chegou a nossa companhia da escolta a Béli. Correu tudo bem felizmente, e assim estivemos a receber o material, e depois distribuir mantas ao pelotão de Fá que esteve de serviço.

Dia 26 - terça-feira, de manhã:
Demos material a diversos da companhia para irem fazer algumas demonstrações para filmar, e às 18h30 vieram entregar esse material.

Dia 27 - quarta-feira:
De manhã estivemos a fazer limpeza a algum material, de tarde tudo normal.

Dia 28 - quinta feira, às 13h:
Houve ordens para a companhia sair imediatamente e estivemos a entregar-lhe o material, às 17h30 chegaram novamente.
A operação que foram fazer foi em perseguição a um grupo IN, mas como não os encontraram, não demoraram muito.

Dia 29 - sexta-feira:
Dia de correio, e depois tudo normal tal como no dia 30 e 31, em que termina mais um mesito.

ABRIL 68
Dia 1 - segunda-feira de manhã:
Estivemos a descarregar os carregadores das Drayses, que são armas para entregar ao Batalhão.
Às 10h recebemos o pré que habitualmente se recebe no dia 1 de cada mês.
Às 16h estivemos a distribuir material a todos os pelotões da companhia, que amanhã vão fazer uma operação.

Dia 2 - terça-feira:
Sai a companhia para a dita operação.

Dia 3 - quarta-feira, às 17h30:
Chegou a companhia da operação que haviam feito e tudo correu bem felizmente.
E assim tudo continuou normal até ao dia 7 domingo, dia em que o Oliveira partiu no Dacota para Bissau, para ir passar férias em Portugal.

Dia 10 - quarta-feira, de manhã:
Estive a encaixotar material para levarmos a um novo destacamento que segundo dizem, será Buruntuma. E assim tudo normal até ao dia 12, em que às 16h formou a companhia, e dois pelotões receberam ordens para preparar tudo, para amanhã irem para o nosso novo destacamento: Buruntuma.

Dia 13 - sábado, às 5h da manhã:
Vieram os dois pelotões levantar as armas pesadas para levar, e entregar o resto do material que fica nesta arrecadação, também foi outro pelotão escoltá-los, o qual chegou às 13h30.
À noite chegou a companhia PIRIQUITA que nos vem substituir.

Dia 14 - domingo, dia de Páscoa na Metrópole:
Continuei a receber material que era para ficar e, distribui mantas ao nosso pessoal para dormir, porque a caserna foi entregue à nova companhia.

Dia 15 - segunda-feira:
Após o café estive a receber as mantas do nosso pessoal, as quais voltei a entregar à noite, visto que ainda cá continuámos, entreguei também material à companhia nova para amanhã irem fazer uma escolta a Madina.

Dia 17 - quarta-feira, das 5h30 às 7h30:
Estivemos a carregar material para o primeiro pelotão levar para Buruntuma. O sargento Ribeiro foi levantar à arrecadação de lá, e eu fiquei a entregar nesta.
Junto com o furriel Carrola, às 10h, começámos a conferir o material com o 1.º sargento da nova companhia mas de tarde interrompemos por termos recebido a notícia que na escolta a Madina rebentou uma mina, tendo morrido um alferes, e um cabo ficou sem uma perna, e o 1.º sargento deles teve de tratar desses assuntos, mau começo para esses rapazes.

Dia 18 - quinta-feira:
Eu e o quarteleiro da nova companhia continuámos a conferir o material e, no dia 19 prosseguimos com a ajuda do 1.º sargento e do furriel Carrola e assim continuámos no dia 20.

Dia 21 - domingo:
Continuámos no mesmo trabalho e, às17h chegou a companhia PIRA da escolta a Madina, que no regresso foram atacados ao atravessar na jangada o rio Corubal no Che-Che. Houve um soldado e um 1.º cabo, que eram da CCS, que ficaram afogados no rio e não mais apareceram.

Dia 22 - segunda-feira:
Continuámos a conferir o material, quando acabámos o 1º sargento abriu a cantina e pagou umas cervejas ao quarteleiro dele, a mim e ao furriel Carrola.

Dia 23-terça feira:
Depois das 6h andei a carregar o que me competia trazer, a própria bagagem, etc.
Às 7h30 iniciámos a viagem para Buruntuma onde chegámos às 11h30 e, assim tomei conta da nova arrecadação.

Dia 24 - quarta-feira:
Andei a arrumar o material que veio de Nova Lamego e à noite fiz uma hora de reforço, o que irá acontecer todos os dias, visto que as secções dos pelotões estão distribuídas cada uma em seu abrigo, e dá para todos fazerem uma hora por noite.

Dia 26 - sexta-feira, de manhã:
A companhia que vai embora, esteve a carregar o material para estarem prontos para irem manhã cedo.

Dia 27 - sábado:
Às 5h a companhia velha partiu para a Peluda e, foi um pelotão nosso montar segurança e, levou algum material para o destacamento de Camajabá e ponte do rio Caium, onde temos pessoal, instalado.

Dia 30 - terça-feira:
De tarde houve correio e pré, o nosso capitão mesmo aqui no cúmulo do mato e, na fronteira com a Guiné Conacri, exigiu que fossemos receber devidamente fardados.

MAIO 68
Dia 5 - domingo:
Após o meio-dia chegou a coluna com os géneros e o correio e, voltou novamente outro pelotão em outra coluna, para trazer mais géneros, para evitar que aconteça termos só bianda (arroz) para o pessoal comer, como andámos já há bastantes dias.
E assim continua tudo normal até ao dia 10.

Dia 10 - sexta-feira:
Dia em que houve correio, que é sempre um dia especial.
E assim tudo continuou bem até dia 14, em que o capitão me mandou chamar cedo para lhe entregar material, para a companhia sair para uma pequena operação.
Chegaram às 11h30, tendo corrido tudo bem.
Até ao dia 16 tudo normal.

Dia 17 - sexta-feira:
Às 5h estive a entregar material à companhia, pois iam fazer uma coluna para reabastecimento de géneros e não só.

Dia 18 -s ábado:
Chegou a coluna com toda a normalidade e, assim tudo normal até ao dia 21.

Dia 22 - quarta-feira:
Faz 10 meses que correspondem a 10 anos, que embarcámos em Lisboa.

Dia 23 - quinta-feira:
Começamos com o arranjo do nosso abrigo (7), que estava a abater. Os abrigos são cobertos por troncos de árvores grossas, colocadas lado a lado, e a seguir levam chapas de bidões abertos e, por cima algum cimento com areia. Por fim uma boa altura de terra para estarmos mais abrigados das granadas e morteiradas do IN.

Dia 24 - sexta-feira:
Fomos arrastar troncos até dia 26.

Dia 27 - segunda-feira:
Chegou o Oliveira (colega da arrecadação) de gozar a licença em Portugal, mas os trabalhos no abrigo continuam e assim até ao dia 30.

Dia 31- sexta-feira:
Término dos trabalhos no abrigo.

JUNHO 68
Dia 5 - quarta-feira:
Ao meio-dia chegaram os camaradas que foram ajudar a fazer a escolta a Madina e, trouxeram o correio.

Dia 8 - sábado de manhã:
Estivemos a dar material à companhia que foi a Bambadinca aos géneros, os quais chegaram dia 9 às 13h. Também trouxeram correio, tendo sido assim um bom domingo para todos.

Dia 10 - segunda-feira, de manhã: 
Recebemos o material de aquartelamento, da secção que vai para Béli juntar-se ao pelotão que já se encontra em Madina do Boé há alguns dias, mantendo-se a normalidade até ao dia 14.

Dia 15 - sábado de manhã:
Estivemos a dar material aos que vão fazer a coluna a Bambadinca.

Dia 16 - domingo de tarde:
Vieram cá os de Canquelifá e, trouxeram o correio, até ao dia 21 tudo normal.

Dia 22 - sábado:
Faz onze meses que deixámos Portugal.
Depois ao meio dia veio cá o nosso Governador e Comandante-Chefe, o que para nós foi muito agradável.

Dia 26 - quarta-feira:
Hoje saiu a companhia para fazer a operação mensal, tendo corrido tudo normalmente. Prolongando-se assim até ao dia 29.
Fim do mês.

JULHO 68
Dia 1-segunda feira:
É dia de pré e restante tudo normal até ao dia 6.

Dia 7 - domingo:
De manhã os oficiais e sargentos tiveram uma festa de anos, e o nosso capitão queria que eu fosse tocar o clarim para hastear a bandeira, mas os mesmos não estavam em condições, não podendo assim satisfazer-lhe a vontade.
Ao meio-dia chegou o pelotão que tinha ido para Madina, tendo estado ultimamente, no Che-Che.
O pelotão que estava cá que era de Piche regressou à companhia.
E por cá correu tudo dentro da normalidade até ao dia 10.

Dia 11 - quinta-feira:
Às 11h saiu uma coluna para a Bambadinca buscar géneros, e fui também com eles, para ir a Nova Lamego ao médico, derivado a uma fístula.
Ao chegar a Nova lamego, o Moura atropelou uma criança que acabou por morrer.
Quando chegámos o médico já não me consultou por ser tarde, e então ficamos lá.
No dia seguinte às 6h, fui com o meu pessoal a Bambadinca carregar as viaturas. No regresso avariaram algumas e só chegamos a Nova Lamego de noite, onde pernoitamos.

Dia 13 - sábado:
De manhã, a coluna não podia esperar que eu fosse ao médico, então eu regressei com eles mesmo sem ter sido consultado.
As coisas foram correndo bem até ao dia 16.

Dia 17 - quarta-feira:
De tarde veio cá a avioneta e trouxe correio.

Dia 20 - sábado:
Às 10h o furriel enfermeiro veio avisar-me que vai uma escolta a Bambadinca perguntando-me se eu queria ir ao médico, e eu respondi-lhe que desta vez não vinha embora sem ser consultado, aproveitei e partimos ao meio-dia e trinta, chegando a Nova Lamego às 16h, onde fomos logo à consulta, passando cá a noite.

Dia 21 - domingo:
Às 6h30 continuámos a viagem para Bambadinca onde chegámos às 10h30, e ainda assistimos à missa que estava a ser celebrada na capela.
Às 14h30 já os carros estavam carregados e começámos a viagem de regresso.
Depois de Bafatá, o Matos que era o condutor da viatura em que eu seguia, deixou-a encostar demasiado à berma e eu, que trazia o joelho da perna esquerda um pouco saliente, ao chocar com o taipal com uma árvore pensei ter fracturado o mesmo, mas felizmente só ficou pisado.
Ao chegar a Nova Lamego fui à enfermaria, e fizeram-me o curativo.

Dia 22 - segunda:
Às 7h30 iniciamos a viagem a caminho de Buruntuma onde chegámos às 11h30.
De tarde fui à enfermaria fazer o curativo à perna.
A seguir os furriéis e o alferes Cruz - que é provisoriamente o comandante da companhia enquanto o capitão está um mês de férias em Portugal - junto com alguns soldados e levaram o bombo e alguns clarins mesmo danificados. Só não levaram as caixas porque não têm conserto. Então com o Pereiro, com o acordeão que mandou o Movimento Nacional Feminino, foram fazer ronco (festa) em volta dos abrigos, a festejar um ano de Guiné, ou que partimos de Lisboa.
Nos dois dias seguintes tudo normal.

Dia 25 - quinta-feira:
Já de noite, quando o Penafiel me chamou, comecei a ouvir rebentamentos que vinham de Camajabá, era o IN que fez uma visita à malta.

Dia 26 - sexta-feira:
Logo pela manhã foi-nos dado conhecimento que as nossas tropas de Camajabá não sofreram baixas nem feridos graves.

Dia 27 - sábado:
Saiu uma escolta para Nova Lamego. Restante dia tudo normal.

Dia 28 - domingo:
Às 19h15 fomos surpreendidos por uma grande descarga de fogo do IN, e eu, o Oliveira e o Lemos que estava connosco, corremos para o abrigo do primeiro socorro, onde já estava o 1.º sargento Bonito.
Era um estrondo ensurdecedor, pela quantidade de granadas e rajadas de armas ligeiras que caíam cá no destacamento. Só quando o nosso pessoal reagiu abrindo fogo, e umas morteiradas foram lançadas é que eles abrandaram, e foram corridos dali graças à nossa pronta intervenção.
Às 20h20 demos por terminado o ataque ao aquartelamento.
Foi então averiguado o que tinha acontecido ao nosso pessoal, e foi-nos dito que o apontador do morteiro 81, o Bagaço, nome pelo qual era conhecido, ficou gravemente ferido.
Eu e o Oliveira fomos dormir à tabanca dos mecânicos, por ser o abrigo mais próximo.

Dia 29 - segunda-feira:
Bem cedo, foi-nos dado a fraca notícia que o Bagaço acabou por morrer à meia-noite, a seguir andámos a ver os estragos que os morteiros e os roquetes fizeram.
Eu e o Oliveira tínhamos um cão que apesar de pequeno, ficou quase desfeito à porta da arrecadação.
Às 7h30 chegaram duas avionetas para levarem os feridos e o falecido mas, mas como não cabiam todos, e foram os de maior gravidade, e às 18h30 voltaram novamente para levar os restantes todos negros, e só aí foi o falecido.
Também faleceu um negro, mas esse foi enterrado pelos familiares.

Dia 30 - terça-feira: 
De manhã começamos a renovar o abrigo que fica entre a secretaria e a arrecadação, e foi-nos dito que na noite passada no abrigo 9 ia um indivíduo a rastejar em direcção à sentinela, o qual ao dar conta lhe deu um tiro mas não o atingiu e o tipo fugiu por entre as tabancas sem deixar rasto.
De agora em diante para prevenir, o reforço será dois a dois, evidentemente que faremos o dobro do tempo.

Dia 31 - quarta-feira:
Mais um final de mês, que só deixa más recordações.

(Continua)
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Nota do editor

Vd. primeiro poste da série de 24 de Julho de 2014 > Guiné 63/74 - P13434: Diário da CART 1742 (Mário Alves, 1.º Cabo Corneteiro) (1): Período entre Agosto de 1967 e Janeiro de 1968 (Abel Santos)