Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
sexta-feira, 19 de junho de 2015
Guiné 63/74 - P14765: Parabéns a você (922): Henrique Cerqueira, ex-Fur Mil Inf do BCAÇ 4610/72 (Guiné, 1972/74) e Leopoldo Amado, Amigo Grã-Tabanqueiro, Historiados e Professor Universitário
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Nota do editor
Último poste da série de 17 de Junho de 2015 > Guiné 63/74 - P14757: Parabéns a você (921): Juvenal Amado, ex-1.º Cabo Condutor Auto Rodas do BCAÇ 3872 (Guiné, 1971/73)
quinta-feira, 18 de junho de 2015
Guiné 63/74 - P14764: Filhos do vento (36): SIC, Jornal da Noite, hoje, 4ª feira, 18, 20h00-21h30; e revista do jornal "Público", domingo, 21: "Tivemos a felicidade de acompanhar o António Bento, que esteve em Angola entre 1973 e 1975, e era furriel, e ir com ele ao encontro do filho que ele nunca conheceu, deixou a mulher com quem viveu durante um ano grávida" (Catarina Gomes, jornalista)
1. Mensagem da nossa amiga Catarina Gomes, jornalista do "Público", coautora da reportagem sobre os "Filhos do Vento" e "O Meu Filho Ficou lá"; filha de ex-combatente da guerra colonial (em Angola), escreveu o livro "Pai, tiveste medo ?" (Lisboa, Matéria Prima Edições, 2014):
Data: 16 de junho de 2015 às 10:19
Assunto: Reportagem Angola
Caro professor,
Tal como lhe tinha dito, desde a ida à Guiné a a reportagem dos "filhos do vento", fiquei com vontade de contar uma história ao contrário, pelo lado de um pai de um "filho do vento". Tivemos a felicidade de acompanhar o António Bento, que esteve em Angola entre 1973 e 1975, e era furriel, e ir com ele ao encontro do filho que ele nunca conheceu, deixou a mulher com quem viveu durante um ano grávida.
É dessa aventura que dá conta a reportagem que sairá publicada na revista do "Público", no domingo dia 21 de Junho, e no Jornal da Noite da SIC, esta quinta-feira dia 18 de Junho.
Espero que a reportagem possa inspirar muitos pais a olharem para o passado e talvez a lembrarem-se que deixaram um filho para trás.
Aqui lhe deixo os dados da conta bancária da:
Associação da Solidariedade dos Filhos e Amigos dos Ex-Combatentes Portugueses na Guiné-Bissau (Fidju di Tuga)
Banco da África Ocidental em ligação à conta do Montepio em Lisboa.
114011010114
Um abraço
Catarina
2. Quinta-feira, dia 18 de junho, no 'Jornal da Noite', SIC [20h00-21h30],
Sinopse:
A Guerra Colonial levou milhares de soldados portugueses para África e deixou por lá muitas crianças sem pai, filhos de militares portugueses que acabaram as suas comissões de serviço e regressaram a Portugal. Há quem desconheça que por lá deixou um filho, há quem o esconda porque construiu uma nova família após o regresso e há quem nunca esqueça o que se passou.
Já na parte final do conflito, António Bento foi enviado, por dois anos, para Angola onde prestou serviço militar entre 1973 e 1975. Foi colocado no interior de Angola, na província de Luena, perto da fronteira com a Zambia.
Durante a comissão de serviço, António Bento apaixonou-se pela angolana Esperança. O soldado chegou mesmo a mudar-se e a ir viver para casa de Esperança, numa aldeia perto do quartel. Mas no início de 1975, a comissão de serviço termina e António Bento regressa a Lisboa pouco antes do filho de ambos nascer. O ex-combatente nunca esqueceu que se tinha despedido de uma mulher grávida.
A longa guerra civil em Angola e as dificuldades de comunicação com o interior do país foram algumas das barreiras que impediram António Bento de descobrir o paradeiro do filho. Mas nunca desistiu.
Hoje "Zito", o filho de António e de Esperança, tem 40 anos, a mesma idade de Angola independente. E só ao fim de 4 décadas pai e filho encararam-se, pela primeira vez, olhos nos olhos.
"O Meu Filho Ficou Lá " é a história de uma viagem ao interior de Angola e à emoção do primeiro encontro entre um pai e um filho. Uma 'Grande Reportagem' em parceria jornal Público /SIC.
Reportagem : Catarina Gomes
Ricardo Rezende (imagem e som)
Montagem: Ricardo Rezende | Rui Berton
Uma parceria jornal Público / SIC
Coordenação: Cândida Pinto
Direcção: Alcides Vieira | Rodrigo Guedes de Carvalho
Fonte: Cortesia de:
SIC | Ana Margarida Morais
Assunto: Reportagem Angola
Caro professor,
Tal como lhe tinha dito, desde a ida à Guiné a a reportagem dos "filhos do vento", fiquei com vontade de contar uma história ao contrário, pelo lado de um pai de um "filho do vento". Tivemos a felicidade de acompanhar o António Bento, que esteve em Angola entre 1973 e 1975, e era furriel, e ir com ele ao encontro do filho que ele nunca conheceu, deixou a mulher com quem viveu durante um ano grávida.
É dessa aventura que dá conta a reportagem que sairá publicada na revista do "Público", no domingo dia 21 de Junho, e no Jornal da Noite da SIC, esta quinta-feira dia 18 de Junho.
Espero que a reportagem possa inspirar muitos pais a olharem para o passado e talvez a lembrarem-se que deixaram um filho para trás.
Aqui lhe deixo os dados da conta bancária da:
Associação da Solidariedade dos Filhos e Amigos dos Ex-Combatentes Portugueses na Guiné-Bissau (Fidju di Tuga)
Banco da África Ocidental em ligação à conta do Montepio em Lisboa.
114011010114
Um abraço
Catarina
2. Quinta-feira, dia 18 de junho, no 'Jornal da Noite', SIC [20h00-21h30],
Grande Reportagem SIC: "O meu filho ficou lá"
Sinopse:
A Guerra Colonial levou milhares de soldados portugueses para África e deixou por lá muitas crianças sem pai, filhos de militares portugueses que acabaram as suas comissões de serviço e regressaram a Portugal. Há quem desconheça que por lá deixou um filho, há quem o esconda porque construiu uma nova família após o regresso e há quem nunca esqueça o que se passou.
Já na parte final do conflito, António Bento foi enviado, por dois anos, para Angola onde prestou serviço militar entre 1973 e 1975. Foi colocado no interior de Angola, na província de Luena, perto da fronteira com a Zambia.
Durante a comissão de serviço, António Bento apaixonou-se pela angolana Esperança. O soldado chegou mesmo a mudar-se e a ir viver para casa de Esperança, numa aldeia perto do quartel. Mas no início de 1975, a comissão de serviço termina e António Bento regressa a Lisboa pouco antes do filho de ambos nascer. O ex-combatente nunca esqueceu que se tinha despedido de uma mulher grávida.
A longa guerra civil em Angola e as dificuldades de comunicação com o interior do país foram algumas das barreiras que impediram António Bento de descobrir o paradeiro do filho. Mas nunca desistiu.
Hoje "Zito", o filho de António e de Esperança, tem 40 anos, a mesma idade de Angola independente. E só ao fim de 4 décadas pai e filho encararam-se, pela primeira vez, olhos nos olhos.
"O Meu Filho Ficou Lá " é a história de uma viagem ao interior de Angola e à emoção do primeiro encontro entre um pai e um filho. Uma 'Grande Reportagem' em parceria jornal Público /SIC.
Reportagem : Catarina Gomes
Ricardo Rezende (imagem e som)
Montagem: Ricardo Rezende | Rui Berton
Uma parceria jornal Público / SIC
Coordenação: Cândida Pinto
Direcção: Alcides Vieira | Rodrigo Guedes de Carvalho
Fonte: Cortesia de:
SIC | Ana Margarida Morais
Assistente Gabinete de Comunicação e Relações Externas
Tel.: +351 214 246 472 / +351 967 120 622
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Nota do editor:
Último poste da série > 27 de maio de 2015 > Guiné 63/74 - P14670: Filhos do vento (35): "Não nego a existência de 'filhos da guerra', mas defenderei sempre a dignidade dos combatentes portugueses" (Jorge Cabral) / "Sempre considerei e tratei os/as guineenses como sendo tão portugueses/as como eu" (João Martins) / "Sou claramente pela concessão da nacionalidade, o Estado que assuma as suas obrigações" (José Manuel Matos Dinis)
Último poste da série > 27 de maio de 2015 > Guiné 63/74 - P14670: Filhos do vento (35): "Não nego a existência de 'filhos da guerra', mas defenderei sempre a dignidade dos combatentes portugueses" (Jorge Cabral) / "Sempre considerei e tratei os/as guineenses como sendo tão portugueses/as como eu" (João Martins) / "Sou claramente pela concessão da nacionalidade, o Estado que assuma as suas obrigações" (José Manuel Matos Dinis)
Guiné 63/74 - P14763: Convívios (691): II Almoço do pessoal da Tabanca de Setúbal, dia 27 de Junho de 2015 na Praia de Albarquel (Hélder Valério de Sousa)
Vista nocturna da Península de Setúbal
Com a devida vénia ao autor da foto
1. Mensagem do nosso camarada Hélder Valério de Sousa (ex-Fur Mil de TRMS TSF, Piche e Bissau, 1970/72), com data de hoje 18 de Junho de 2015:
Caro amigo Carlos Vinhal
Sei que esta coisa de Convívios, Encontros, Almoços, etc. já é recorrente. Abrange uma multiplicidade de camaradas e situações.
Por isso, não me atreveria a pedir-te que fizesses a divulgação que se segue, que é o 2.º Almoço da "Tabanca de Setúbal" para o sábado 27 de Junho, não fora o caso de no rescaldo do nosso 1.º Almoço (e único até agora), ter havido um conjunto de justas reclamações de camaradas que se lamentaram não terem tido conhecimento.
Assim, "a pedido de várias famílias" vamos então promover esse 2.º Almoço, que irá ocorrer no próximo sábado dia 27, pelas 13:00 horas no Restaurante "All-Barquel", na Praia de Albarquel, logo na saída de Setúbal na estrada da Arrábida para a Figueirinha, antes do Forte/Hospital do Outão.
Para efeitos de contacto, quem estiver interessado em participar deve fazer a sua inscrição/comunicação através dos contactos seguintes:
duraes.setubal@hotmail.com - telemóvel 93 93 93 315
helder.v.sousa@gmail.com - telemóvel 93 202 56 20
A fim de se poder dimensionar a ocupação e reserva de espaço pedimos que façam a inscrição até terça- feira.
O almoço consistirá num 'rodízio de peixe', terá um custo previsível de 15 Euros e, claro, poderá haver a atenção para algum doentinho e/ou quem prefira uma dieta de carne.
Para os GPS-dependentes as coordenadas do restaurante/praia são:
38º 30' 40.50'' N - 8º 54' 53.35'' O (ou W, conforme o programa).
Temos consciência que a data escolhida (foi a possível) está 'encostada' a mais uma sessão da "Tabanca do Centro" mas não havia mais hipóteses a não ser adiar, mais uma vez, e isso não quisemos fazer.
Apelamos à compreensão dos camaradas habituais nesses almoços do Centro com a certeza de que não serão prejudicados.
Abraço
Hélder V Sousa
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Nota do editor
Último poste da série de 16 de junho de 2015 > Guiné 63/74 - P14753: Convívios (690): Almoço de confraternização do pessoal da CCAÇ 16, dia 27 de Junho de 2015, em Bragança (António Branco)
Guiné 63/74 - P14762: Conto breve (António Murta, ex-Alf Mil da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4513) (2): Binta: um caso de saias, faca e alguidar
1. Mensagem do nosso camarada António Murta, ex-Alf Mil Inf.ª Minas e Armadilhas da 2.ª
CCAÇ/BCAÇ 4513 (Aldeia Formosa, Nhala e Buba, 1973/74), com data de 14 de Junho de 2015:
Camaradas Luís e Carlos Vinhal
Por achar que vinha mesmo a calhar, resolvi passar ao papel uma historinha (conto breve 2) que há muito andava na minha cabeça e que já teve várias versões e mais teria se continuasse apenas na cabeça.
É uma historinha surreal quase, - ou talvez nem tanto - , mas que pode dar uma achega para se perceber a relação, algumas vezes complicada, da tropa com as mulheres e as bajudas do nosso encantamento.
Tal como a maioria já reconheceu, também na minha zona os casos de envolvimento foram raríssimos, e nunca houve conflitos por causa disso. A historinha trata, ainda, da obsessão psicopática (ou fixação maluca?), que normalmente descamba no assédio sexual. E de como isso pode afectar o comportamento e a autoridade do assediador, se este tiver responsabilidades de chefia, quer seja na tropa, quer seja noutra actividade qualquer.
Isto nada tem de científico, de que não percebo nada. É só observação. É um bocadinho longo este conto, mas não consigo cortar mais sem estragar o efeito. Por isso sugeria que, se tiver de ser cortado, o fosse nos pontos que assinalei com (*****), ou então publicado inteiro - teria melhor leitura - num daqueles dias em que escasseia o material para publicar. Isto, se entenderem publicar.
Um grande abraço a ambos
A. Murta
Conto breve
2 - “Binta: um caso de saias, faca e alguidar”
Estava um dia quente e abafado, sem uma aragem. O alferes Lourenço, sozinho no quarto dos oficiais, fazia tempo para o almoço deitado sobre a cama em tronco nu e folheando um jornal com mais de quinze dias. Quando olhou para o relógio sobre o caixote-mesinha de cabeceira, viu que já passava da hora. Sentou-se à pressa na cama e enfiou a camisa e as botas. Desligou a ventoinha e saiu para a messe, ali ao lado no mesmo edifício. Quando entrou, à mesa estavam apenas dois outros alferes. O alferes Madaleno tinha saído cedo para a protecção às obras da estrada nova. Faltava ainda o Capitão Arsénio. O ordenança-barmen aguardava ordens junto à porta que liga a messe ao bar. O alferes Lourenço puxou a sua cadeira e sentou-se à mesa perguntando para os colegas:
- Então hoje não se almoça? - E um deles respondeu:
- Deixa vir o capitão!
- Deixa vir o capitão, não! Deixa vir o nosso capitão, faz favor! - disse o capitão que, ao entrar, ainda ouvira a conversa.
Os alferes mantiveram-se calados e sisudos. O capitão fez um sinal para o ordenança servir os almoços e acomodou-se no seu lugar, no topo da mesa e à esquerda do alferes Lourenço.
- Então, Lourenço!... Ontem esteve nalguma orgia, ou quê? Para entrar no aquartelamento às três da madrugada!... - Disse isto com um sorriso largo e cínico, baixando a cabeça para olhar directamente nos olhos do alferes.
- Desde quando anda a vigiar-me as horas de entrada no aquartelamento, capitão?
- Ora!... Não é preciso ser bruxo para saber de onde vem e, como chega quase sempre a arrastar as botas, todos dão pela sua entrada, não sou só eu!...
- Tenha maneiras, capitão Arsénio!
Entretanto o ordenança já tinha trazido as travessas e as bebidas e fingia-se alheado do diálogo. Recuou para a porta do bar e ficou às ordens.
- Mas também lhe digo. Por uma febra daquelas até eu mandava às urtigas a prudência e a reverência! - Continuou o capitão.
O alferes Lourenço nem começara a comer e os colegas debicavam contrafeitos. Mas o capitão, enquanto falava, começara a comer normalmente, fazendo crer que a conversa era naturalíssima, o que irritou ainda mais o alferes.
- Ouça, capitão. Peço-lhe que acabe com esse despropósito, a ver se ainda consigo almoçar.
- Então, Lourenço!... Não se amofine, homem!
- Não me amofino, o caraças! Não lhe ficam bem esses comentários jocosos e provocadores, valendo-se da sua posição. Ou esquece, nestes momentos parvos, que é a autoridade máxima desta merda toda? O capitão pousou os talheres e com os olhos muito abertos para o alferes ia para dizer qualquer coisa, mas o alferes continuou: - E como vai impor essa autoridade aos seus subalternos se se desconsidera a si próprio, à frente de todos, como um primata despeitado, hã?
Dito isto, encolerizado, o alferes levantou-se brusco atirando a cadeira ao chão, perante a estupefacção de todos e dirigiu-se à porta. O capitão ainda ordenou:
- Alferes Lourenço! Volte aqui imediatamente! - Mas já o alferes saía porta fora sem lhe dar atenção e dirigindo-se para o quarto.
Puxou a cortina de chita da janela deixando o quarto na penumbra e deitou-se de costas em cima da cama. Fechou os olhos e ficou ofegante e a transpirar, com os punhos cerrados. Não tinham passado cinco minutos e entra, de rompante, o alferes Martins Silva:
- Foda-se, pá! Que ambiente de merda! Nem acabei de almoçar!...
O alferes Lourenço nem abriu os olhos e o camarada, sentando-se na borda da cama em frente, continuou, agora em tom de confidência:
- Ouve, Lourenço. Tens de te pôr a pau. Não é a primeira vez que o capitão toca no assunto e fá-lo sem papas na língua quando tu não estás. Parece que tem uma obsessão pela Binta ou então é uma tara qualquer que o descontrola completamente. Refere-se a ela como uma fêmea que nasceu apenas para enlouquecer os homens. Acho que isto se pode tornar perigoso. Eu a ti... - desculpa estar a meter-me no assunto - , eu a ti deixava passar algum tempo..., ou afastava-me dela definitivamente. Ainda, para mais, casada...
O alferes Lourenço abriu os olhos e rodou a cabeça lentamente para o camarada, dizendo sem ânimo:
- Sabes, meu caro..., o problema nisto tudo é que não devia ser suficiente ter habilitações académicas e passar o cú pelos bancos das academias militares, para se poder comandar homens, dirigir pessoas. É preciso ter mais qualquer coisa para além das teorias e das técnicas. Os neurónios deviam ser avaliados um a um e, depois, no seu todo. E a alma vista de vários ângulos e submetida a testes. Neste caso concreto...
Não completou a frase pois bateram à porta. Era o ordenança com uma ordem para o alferes Lourenço:
- Desculpe meu alferes, mas o nosso capitão quer que vá falar com ele ao gabinete.
Os alferes entreolharam-se interrogativos e o Martins Silva encolheu os ombros e arqueou as sobrancelhas, enquanto o Lourenço se levantava e pensava em voz alta:
- Será que reconsiderou e quer pedir desculpa?
O outro abanou lentamente a cabeça achando que não.
Deu dois toques na porta do gabinete e, muito formal, abrindo-a, disse:
- Dá-me licença, meu capitão?
Sentado à secretária, o capitão parecia preparado para um assalto.
- Entre e deixe-se de merdas! Sente-se! - Decepção e esfriamento.
- Não, obrigado. Prefiro ficar de pé.
- Como queira. Chamei-o aqui para lhe comunicar umas coisas mas, antes, quero dizer-lhe que não volte a repetir a atitude que teve ao almoço, porque eu não lho admito, percebeu?
- Mas não admite o quê, capitão Arsénio? Você tem-se desautorizado constantemente com as suas atitudes e já não tem condições para admitir ou deixar de admitir.
- Você verá, nosso alferes! Mas queria dizer-lhe muito mais: tenho informações do meu colega do aquartelamento de Samba-Fula de que o marido da Binta Domingo anda doido e só arranja problemas lá no pelotão de milícias. E que anda a afiar os cornos para, um dia destes, vir cá enfiar-lhos na barriga. Largue essa gaja, alferes Lourenço, antes que seja tarde.
- Ah! Então o capitão, para me poupar, prefere que o Mamadu lhe venha cá enfiar os cornos a si!... É isso, capitão? Não seja hipócrita!
O capitão, sem argumentos, ainda tentou mais uma prepotência, proibindo o alferes de, daí em diante, se ausentar de noite para a tabanca. A reacção do alferes foi tão violenta que, de repente, se abriu a porta que dá para a secretaria, aparecendo a cara do 1.º Sargento com olhos esbugalhados:
- Há algum problema, meu capitão?
- Não há problema nenhum, nosso sargento! Feche essa porta e não se ponha para aí a escutar, ouviu?
O sargento bateu com a porta com toda a força.
- Está a ver, capitão? Já ninguém lhe tem respeito!..
- Não lhe admito que me faça observações! E muito menos que me chame hipócrita ou outra coisa qualquer!
- Repito-lhe. Não admite nem deixa de admitir, capitão! Já pensou, ao menos por uma vez, como se vai impor até ao fim da comissão, com a sua autoridade na sarjeta? Você não tem condições para desempenhar as funções que lhe confiaram!
O capitão pôs-se em pé de um salto e, colérico, disse:
- Ponha-se no olho da rua, nosso alferes! Antes que lhe ponha um processo disciplinar às costas! Já!
Como se precisasse de mais motivos, pensou o alferes Lourenço. Calmo, mas olhando-o bem nos olhos, respondeu-lhe baixinho enquanto ia abrindo a porta:
- Tome nota, capitão Arsénio! Um de nós não vai acabar esta comissão!
- Ou ambos, nosso alferes! Ou ambos!...
*****
Passaram-se várias semanas e, apesar de alguma tensão entre os alferes e o capitão, o dia-a-dia decorria dentro de uma aparente normalidade, com ordens curtas e secas e com uma actividade operacional favorável a baixas tensões. À cautela, o alferes Lourenço manteve-se arredado da tabanca, menos por respeito ao capitão e mais por estratégia defensiva. Mas, se por um lado o Mamadu não dava sinais, a Binta Domingo começava a insistir nos porquês, através de bilhetinhos que lhe enviava. Ao menos dissesse porquê! Não desejava mais vê-la? Ou seria que, sem querer, o tinha magoado? E porque é que o capitão insistia em querer falar com ela? Saberia de alguma coisa?
Lourenço cedeu. Estava farto de se privar do aconchego da sua amiguinha por causa de um psicopata e das ameaças incertas de um marido ciumento. Bilhete para lá, bilhete para cá e combinaram novo encontro. Mas o alferes, ainda contrafeito, mais contrafeito ficou quando ela lhe indicou uma morança de adobe e chapa de zinco de uns familiares ausentes.
Estava uma noite amena mas um pouco escura. Em redor, tudo parecia demasiado tranquilo e isso teve um efeito contrário no estado de espírito do alferes. Para se tranquilizar, enquanto caminhava, levou a mão ao bolso da perna direita e tacteou a Walter. O facto de ter o seu grupo de combate de serviço nessa noite, sentinelas de confiança, também era tranquilizador, quis acreditar. Continuou a andar mas sem convicção. Para trás, uns já dormiam e outros entregavam-se aos jogos de mesa do costume. Pareceu-lhe que a sua saída não fora notada. Hoje também eram menos no aquartelamento, pois dois grupos de combate se mantinham fora para dormir no mato.
Respirou fundo e bateu levemente na porta de zinco. A Binta apareceu enrolada num lençol e, depois de fechar a porta, correu para a cama, num quartito escuro e acanhado, com a entrada, - sem porta - , frontal à da rua. O alferes Lourenço sentou-se na borda da cama em silêncio e foi habituando os olhos à escuridão, tentando perceber os detalhes à sua volta. Para além da cama, também não havia mais nada para ver. Só então se deu conta de que, atrás de si, na parede onde se encostava a cama, quase aos pés desta, havia uma espécie de janela minúscula, fechada apenas por uma rede fina. Era possível ver através dela uma ténue claridade exterior.
Após um longo silêncio, a Binta ensaiou dizer qualquer coisa, mas ainda a medo:
- Então, Lourenço? Não te deitas?
Mas ele quase não lhe deixou terminar a frase, dizendo “Chiu!...”, e já a pensar como lhe diria a urgência que tinha em sair dali. Havia qualquer coisa, inominável, que lhe dizia que fora um erro tremendo aquela visita. Queria sair dali mas faltavam-lhe as palavras e as forças para se pôr de pé. Parecia paralisado. Mais uma vez tacteou a Walter e, no bolso esquerdo das calças, a enorme lanterna com punho de borracha.
- Que se passa, Lourenço? Deita! - insistia ela, quase num sussurro.
Ele não disse nada, apenas a afagou docemente através do lençol. Continuava de costas para ela e cada vez mais tenso, como que encurralado. Nem debaixo de fogo, pensou. Após novo silêncio que pareceu uma eternidade e eis que, do exterior, chega um restolhar abafado, hesitante mas próximo, logo interrompido pelo silêncio absoluto. Alerta, mas já a duvidar dos seus ouvidos face à enorme tensão, o alferes aguardou e tentou relaxar. Longa espera, pareceu-lhe. De novo o restolhar junto à parede, em chão de capim seco.
Percebiam-se cautelas experimentadas. O alferes crispou-se e todos os seus sensores passaram a um estado de alerta tal, que lhe pareceu possível ver o que apenas estava a ouvir e, sentir até, a vibração cardíaca do intruso, tal como sentia a sua. É o capitão!, - pensou. Grande filho da puta! Não imaginava que chegasse tão longe a sua audácia e a sua loucura. Vem à procura de uma tragédia e, se calhar, vai tê-la, o energúmeno!
Aos poucos, os sons quase imperceptíveis, vinham nitidamente por debaixo da pequena janela. Com o máximo cuidado deslizou na borda da cama e chegou-se para a cabeceira, para ficar fora do alcance da janela, mas mantendo sempre os olhos fixos nela. Depois segredou aos ouvidos da Binta:
- Está alguém do lado de fora a espiar. Silêncio absoluto!
Ela estava a dormir, ou quase, e levantou ligeiramente a cabeça, mas ele fez-lha deitar novamente. Entretanto, uma silhueta começava a surgir muito lentamente na janela, da esquerda para a direita, com um recorte nítido na contraluz e que, para espanto do alferes, deixou perceber que se tratava, afinal, de um africano ainda jovem. O Mamadu não era, de certeza, pensou. Embora nunca o tivesse visto. Confundido mas atento, viu a cabeça rodar e encostar-se de frente à rede da janela, tentando lobrigar para o interior escuro do quarto.
Sentiu ganas de, num golpe rápido, lhe dar uma coronhada violenta na cara que o prostrasse. Mas conteve-se, com receio de falhar e ser dado o alarme. Aguentou imóvel tentando adaptar-se à ideia de que tinha um grave problema pela frente. Ainda avaliou a hipótese de dar a volta à morança e surpreender o intruso. Mas depois? Dava-lhe um tiro? E se fosse mais que um? Matava-os todos?
Entretanto a silhueta abandonara a janela sem qualquer ruído. Depois, talvez, de uns dez minutos insuportáveis, soam na porta de zinco três pancadas aparentemente normais. A Binta, num sobressalto, saltou da cama só com o lençol a embrulhá-la e foi abrir. Na ombreira da porta iniciou-se um diálogo completamente estranho aos ouvidos do alferes que, de onde estava, ouvia mas não via nem podia ser visto. Relaxou um pouco quando, uma vez ou outra, ouviu rir a Binta mas, retesou-se até à asfixia, quando os ouviu discutir acaloradamente no silêncio da noite, sem saber se ela estava, ou não, a negar a sua presença ali.
Com a pistola na mão direita e a lanterna na outra, levantou-se no escuro e abriu as pernas para se estabilizar, virou-se para a entrada e, pronto para o pior, rodou a patilha de segurança. Num momento mais exaltado da discussão à porta, descontrolou-se e acendeu inadvertidamente a lanterna. Apagou-a rápido mas, se o intruso até ali tinha dúvidas, agora só podia ter certezas.
Terminada a conversa, a Binta fechou a porta com força e correu para dentro dizendo aflita:
- Lourenço! Tens que ir embora! Espera dez minutos e foge rápido até ao quartel! É o meu primo que quer apanhar-te!
Ora, isto só enervou ainda mais o alferes, pois nunca a tinha visto assim, ela que era só facilidades e de um optimismo inabalável. A tudo dizia “não tem problema”...
O alferes abriu a porta e olhou para o trilho que levava ao aquartelamento, bem definido na escuridão. No sossego da noite, perpassou-o uma estranha onda de tranquilidade, que o fez sair, sem correr, mas com passo seguro e decidido. Não porque o aquartelamento era já ali, mas porque estava preparado para tudo, pensava ele. Ainda disse: “Adeus, Binta!”. Ela ficou a vê-lo afastar-se, no aro da porta, como um anjo branco.
Não tinha dado uma dúzia de passos e eis que, do escuro entre as palhotas, surgem três vultos que lhe barraram a passagem, sem uma palavra, aparentemente desarmados, mas resolutos. Afinal, eram adolescentes, embora dois deles quase homens feitos. O mais novo avançou um passo e recuou logo, espantado.
- Alferes Lourenço?!!!
O alferes, que não largara a pistola e agora lha apontava, percebeu que, afinal, eles não sabiam quem estivera com a Binta, logo, aquilo não lhe era dirigido a si especificamente. Mas isso não o tranquilizou. De novo voltou ao estado de tensão máxima, crispado. As pernas vacilaram-lhe quando disse:
- Ninguém se mexe! Vou sair daqui e o primeiro que se mexer, leva um tiro!
Pela primeira vez em toda a sua vida estava na iminência de ter mesmo de matar à queima-roupa. Com a comissão a chegar ao fim, tão perpassada de situações de grande perigo e nada se comparava ao que lhe estava a acontecer. Se os matasse, ficaria à mercê da fúria dos nativos ou, na melhor das hipóteses, sujeito às leis militares. Ficaria desgraçado.
Os rapazes não pareciam nada intimidados e são arrogantes por natureza, ele sabia-o. Excepto o mais novo, ostentavam mesmo um ar de desafio. Mas não eram eles que assustavam o alferes Loureço, mas sim o que iriam, de certeza, desencadear, obrigando-o a defender-se a tiro. Isto era o que mais o assustava. Tinha que se decidir. Enfiou o cano da Walter na barriga do mais novo, próximo de si, e começou a contorná-los dizendo:
- Mexes e disparo!
Começou a recuar na direcção do aquartelamento, devagar e sempre a apontar a arma. Eles viraram-se para não o perderem de vista, mas sem saírem do lugar. A tensão era brutal. Para piorar, ouviu espantado a voz da Binta gritar:
- Foge, Lourenço! Foge rápido! Rápido, rápido!
O alferes olhou para a casa onde estivera e viu-a toda nua, ainda na porta, sacudindo com fúria o lençol branco, como se o pudesse enxotar para a segurança de um porto seguro. As pernas do alferes começaram a tremer, estava no instante decisivo: tinha que reagir rapidamente ou desfalecia. Sentindo que estava a uma distância suficiente deles, uma dúzia de metros, virou-se bruscamente e começou a correr para o aquartelamento, percebendo que nesse instante começavam, também eles, a correr para o interior da tabanca, aos berros e batendo com fragor nas portas de zinco das palhotas:
- Traz G3! Traz G3!
Ainda sem estar a salvo, mas já quase a entrar no aquartelamento, que dormia, o alferes fazia um esforço titânico para correr, mas as pernas não lhe obedeciam e, por momentos, pareceu-lhe que tinha regressado aos pesadelos de criança em que, fugindo dos monstros, as pernas, embora frenéticas, não o faziam sair do lugar, deixando-o a vogar. Com esta pequena distracção o alferes estatelou-se ao comprido no chão irregular. Mas isto fê-lo despertar e deu-se então conta, ao levantar-se a custo, de que tinha caído em cima da pistola que lhe esfacelou o peito contra as costelas. Tinha a camisa empapada de sangue mas não sentia nada. Começou a andar, coxeando, e olhou para a mão direita que também sangrava, agarrando ainda a pistola. O dedo no gatilho todo esfolado. Virou-se para a tabanca, mas já não havia correrias e berros. Só silêncio. Parecia que alguém, autoridade suprema, pusera subitamente a recato, aqueles jovens estouvados e perturbadores da noite.
Ali, no aquartelamento, tudo dormia. Tudo parecia apaziguado. Teria o capitão dado conta do incidente, estando agora a observá-lo? Achou que não. Se alguém se apercebeu de alguma coisa, foram as suas sentinelas nos postos, rapazes da sua confiança. Decidiu sentar-se num lugar recôndito e mais escuro para recuperar a respiração, antes de se dirigir ao quarto sem ser notado. Amanhã lavar-se-ia e fingiria uma indisposição para passar o dia de folga na cama. Meditou e adormeceu sentado, por instantes, ainda com a pistola na mão.
*****
Era um fim de tarde magnífico e o pessoal vinha com óptima disposição. Tinha sido mais um dia rotineiro passado no mato, sem sobressaltos, para fazer protecção a uma coluna. Depois de muitos quilómetros apeados e a fazer picagem, para lá, vinham agora prazenteiros em dois Unimog´s de regresso à base. No Unimog da frente, de pé para amortecer solavancos e ao lado do condutor, como era habitual, o alferes Lourenço segurava-se ao pára-brisas com a mão esquerda e, na outra, segurava a G3. Estavam quase a chegar e, lá adiante, já se via o grande poilão como referência da tranquilidade e da segurança da zona. Mais à direita, lá ao fundo, também já era possível ver as manchas brancas do casario do aquartelamento, através da mata de grandes árvores mas espaçadas.
De súbito soa um tiro - de certeza de G3 -, do lado direito da mata, e o alferes, com o nariz a arder, berra para o condutor:
- Pára! Pára essa merda!
A travagem brusca quase provocou o choque do Unimog de trás e a projecção dos homens para cima dos condutores. Antes de o Unimog do alferes parar, já ele ia num salto para o chão em atitude defensiva, mas não houve mais nenhum disparo. Sentiu um grande ardor na base do nariz e no lábio superior e levou a mão à cara para se certificar se tinha sangue. Não, mas estava queimado de certeza. Pensou, em fracção de segundos: como fora possível, à velocidade a que vinham, aos saltos no Unimog, quase ser atingido na cabeça? Tudo isto ocorreu num ápice, pois mal chegou ao chão e vendo que parte do pessoal saltara também, entrou a correr na mata e fez várias rajadas curtas. Depois, virando-se para trás, disse ao furriel Paulo:
- Vais aí pela direita, eu vou pelo meio e tu – apontou para o 1.º Cabo Cardoso - vais pela minha esquerda. Rápido! Vamos fazer uma batida, que o gajo não pode estar longe.
Antes, virou-se para o furriel José Nunes e mandou-o continuar com as viaturas e o resto do pessoal para o aquartelamento. Enquanto seguiam em passo de corrida pela mata de chão quase limpo, com uns aglomerados esparsos de arbustos e um ou outro baga-a-baga, o alferes pensou, pela primeira vez, quem poderia ter sido o atirador furtivo que, sem dúvida, o tentara alvejar, e porquê. De repente fez-se luz na sua cabeça: Mamadu! Só podia ser. Subiu-lhe uma raiva das entranhas e parou, chamando pelos outros com a mão. Disse, falando baixo e por gestos:
- Tomem atenção! A ordem é: capturar o gajo, ou matá-lo! Não se afastem demasiado e tomem como referência o aquartelamento à esquerda. Vamo-nos manter sempre à vista. Olhos bem abertos!
Caminhavam agora com mais cautelas, mas já se estavam a afastar muito e o alferes começou a impacientar-se. Parou a olhar para trás, para o lado da picada, e concluiu que o tiro não podia ter sido disparado de tão longe. Crispou-se. O atirador tinha de estar por ali oculto, até porque, à esquerda e já não visível era o aquartelamento e, em frente, já se via a bolanha, onde o fulano não arriscaria entrar por ficar exposto.
De repente, soam dois tiros vindos da orla da mata com a bolanha, cortando-lhe o raciocínio. Instintivamente, o alferes saltou para trás da árvore que estava mesmo ao seu lado, mas ainda a tempo de ver um vulto agachado a mudar de posição lá à frente. Berrou:
- Está ali, o gajo! Cuidado! Está atrás do baga-a-baga em frente.
Enquanto o furriel e o 1.º Cabo se levantavam do chão, ele avançou vários metros ocultando-se de árvore em árvore. Sentiu que todo ele se eriçava num instinto felino. Teve o impulso de correr até ao baga-a-baga e contorná-lo despejando o carregador da G3, mas dominou-se e, enquanto avançava, começou a incitar a presa.
- Sei que estás aí, turra! Não tens hipóteses, filho da puta!
Viu surgir o cano da G3 do lado direito do abrigo e atirou-se para o chão no instante em que soou novo tiro. Pensou: o gajo não tem saída, mas é perigoso. Vou provocá-lo continuamente até chegar ao baga-a-baga e, ao expor-se, é abatido pelo furriel ou pelo 1.º cabo. Fez-lhes entender por gestos o que pretendia e avançou.
- Nharro de merda! Deita a arma para longe e sai daí que não te acontece nada, nharro!
Estava-se a ficar num impasse e perigosamente próximos do abrigo do atirador. O furriel e o cabo, cada um de seu lado, estavam quase no alinhamento do baga-a-baga, prontos a disparar se ele se expusesse. Mudou de estratégia, o alferes: chegou-se mais para o lado do furriel até se fazer ouvir e disse:
- Passas tu a espevitá-lo para o distrair. Não pares, que é para ele não dar pela minha aproximação. Vou até lá e mando-lhe uma bojarda. Está atento e deita-te porque vai haver merda. Mas mantém-no na mira.
Soou novo tiro, mas agora na direcção do furriel que começara a provocá-lo. Parecia estar a ficar nervoso. O alferes aproveitou a brusca ocorrência e, em três saltos, estava colado ao baga-a-baga. Puxou o porta-granadas do cinturão, retirou uma granada defensiva e, a seguir, levantou o braço mostrando-a ao cabo, acenando-lhe para que se deitasse. Virou-se para o lado oposto, para o furriel, mas percebeu que ele vira o sinal já feito ao 1.º Cabo. Sossegou uns segundos e respirou fundo. Encostou-se de lado na parede rugosa daquele colosso de terra, esticou os braços para baixo e descavilhou a granada, silenciosamente. Ergueu os olhos para o topo e avaliou a força a imprimir ao arremesso. E lançou a granada para o outro lado, num arco premeditadamente lento.
Quase se surpreendeu com o fragor modesto da explosão. Rápido, sacudiu-se de terras e poeiras e contornou o baga-a-baga de arma apontada. Teve um choque que o deixou estarrecido. Gritou:
- Capitão!!! Capitão filho da puta que me desgraçaste a vida! Fodeste-me a vida, capitão!
O capitão estava um pouco à frente do baga-a-baga. Deve ter tentado chutar a granada. Deitado de costas, sem um ai, tinha os olhos muito abertos fixados no alferes, metade da cara esfacelada e o camuflado empapado de sangue no peito.
Entretanto surgiram o furriel e o cabo que, atónitos e mudos, recuaram uns passos. O capitão parecia que ia dizer qualquer coisa, teve um vómito de sangue e a cabeça tombou-lhe para o lado com os olhos abertos.
O alferes, que não parara de praguejar, descontrolou-se e, com um profundo lamento, deitou a G3 ao chão e desatou a correr internando-se na mata profunda, longe da bolanha.
*****
Apesar da frescura da tarde, quase no fim, ali dentro abafava-se. E o ambiente de odores e conversa fiada dos circunstantes, que ocupavam quase todos os assentos de lona, só piorava a situação. De que é que estarão à espera? Impacientava-se o alferes Lourenço.
Finalmente, um dos motores, o do lado direito, arrancou e pôs aquela geringonça toda a oscilar e a torcer-se, parecendo que se ia desconjuntar a todo o instante. Mas com o arranque do motor esquerdo e após ter atingido as rotações normais, tudo se equilibrou numa vibração miudinha. As conversas, interrompidas por instantes, retomaram a senda mas num tom mais alto devido ao barulho dos motores. Sentiu-se um pequeno estremeção do monstro e, lentamente começou a rolar na pista, ganhando velocidade aos saltos como numa picada. Depois, pela suavidade que sobreveio, percebeu-se que já se elevara nos ares.
Tudo começou a ficar para trás. Até o futuro. O alferes Lourenço olhou de esguelha para os fundos da cauda do Nord Atlas e fixou-se no caixão, no meio de outros caixotes, presos com cintas ao bojo do avião. Pensou: “Tinhas razão, grande sacana! Ambos não acabámos a comissão!”.
© António Murta
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Nota o editor
Último poste da série de 1 de dezembro de 2014 > Guiné 63/74 - P13965: Conto breve (António Murta, ex-Alf Mil da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4513) (1): Pesadelo
Camaradas Luís e Carlos Vinhal
Por achar que vinha mesmo a calhar, resolvi passar ao papel uma historinha (conto breve 2) que há muito andava na minha cabeça e que já teve várias versões e mais teria se continuasse apenas na cabeça.
É uma historinha surreal quase, - ou talvez nem tanto - , mas que pode dar uma achega para se perceber a relação, algumas vezes complicada, da tropa com as mulheres e as bajudas do nosso encantamento.
Tal como a maioria já reconheceu, também na minha zona os casos de envolvimento foram raríssimos, e nunca houve conflitos por causa disso. A historinha trata, ainda, da obsessão psicopática (ou fixação maluca?), que normalmente descamba no assédio sexual. E de como isso pode afectar o comportamento e a autoridade do assediador, se este tiver responsabilidades de chefia, quer seja na tropa, quer seja noutra actividade qualquer.
Isto nada tem de científico, de que não percebo nada. É só observação. É um bocadinho longo este conto, mas não consigo cortar mais sem estragar o efeito. Por isso sugeria que, se tiver de ser cortado, o fosse nos pontos que assinalei com (*****), ou então publicado inteiro - teria melhor leitura - num daqueles dias em que escasseia o material para publicar. Isto, se entenderem publicar.
Um grande abraço a ambos
A. Murta
Conto breve
2 - “Binta: um caso de saias, faca e alguidar”
Estava um dia quente e abafado, sem uma aragem. O alferes Lourenço, sozinho no quarto dos oficiais, fazia tempo para o almoço deitado sobre a cama em tronco nu e folheando um jornal com mais de quinze dias. Quando olhou para o relógio sobre o caixote-mesinha de cabeceira, viu que já passava da hora. Sentou-se à pressa na cama e enfiou a camisa e as botas. Desligou a ventoinha e saiu para a messe, ali ao lado no mesmo edifício. Quando entrou, à mesa estavam apenas dois outros alferes. O alferes Madaleno tinha saído cedo para a protecção às obras da estrada nova. Faltava ainda o Capitão Arsénio. O ordenança-barmen aguardava ordens junto à porta que liga a messe ao bar. O alferes Lourenço puxou a sua cadeira e sentou-se à mesa perguntando para os colegas:
- Então hoje não se almoça? - E um deles respondeu:
- Deixa vir o capitão!
- Deixa vir o capitão, não! Deixa vir o nosso capitão, faz favor! - disse o capitão que, ao entrar, ainda ouvira a conversa.
Os alferes mantiveram-se calados e sisudos. O capitão fez um sinal para o ordenança servir os almoços e acomodou-se no seu lugar, no topo da mesa e à esquerda do alferes Lourenço.
- Então, Lourenço!... Ontem esteve nalguma orgia, ou quê? Para entrar no aquartelamento às três da madrugada!... - Disse isto com um sorriso largo e cínico, baixando a cabeça para olhar directamente nos olhos do alferes.
- Desde quando anda a vigiar-me as horas de entrada no aquartelamento, capitão?
- Ora!... Não é preciso ser bruxo para saber de onde vem e, como chega quase sempre a arrastar as botas, todos dão pela sua entrada, não sou só eu!...
- Tenha maneiras, capitão Arsénio!
Entretanto o ordenança já tinha trazido as travessas e as bebidas e fingia-se alheado do diálogo. Recuou para a porta do bar e ficou às ordens.
- Mas também lhe digo. Por uma febra daquelas até eu mandava às urtigas a prudência e a reverência! - Continuou o capitão.
O alferes Lourenço nem começara a comer e os colegas debicavam contrafeitos. Mas o capitão, enquanto falava, começara a comer normalmente, fazendo crer que a conversa era naturalíssima, o que irritou ainda mais o alferes.
- Ouça, capitão. Peço-lhe que acabe com esse despropósito, a ver se ainda consigo almoçar.
- Então, Lourenço!... Não se amofine, homem!
- Não me amofino, o caraças! Não lhe ficam bem esses comentários jocosos e provocadores, valendo-se da sua posição. Ou esquece, nestes momentos parvos, que é a autoridade máxima desta merda toda? O capitão pousou os talheres e com os olhos muito abertos para o alferes ia para dizer qualquer coisa, mas o alferes continuou: - E como vai impor essa autoridade aos seus subalternos se se desconsidera a si próprio, à frente de todos, como um primata despeitado, hã?
Dito isto, encolerizado, o alferes levantou-se brusco atirando a cadeira ao chão, perante a estupefacção de todos e dirigiu-se à porta. O capitão ainda ordenou:
- Alferes Lourenço! Volte aqui imediatamente! - Mas já o alferes saía porta fora sem lhe dar atenção e dirigindo-se para o quarto.
Puxou a cortina de chita da janela deixando o quarto na penumbra e deitou-se de costas em cima da cama. Fechou os olhos e ficou ofegante e a transpirar, com os punhos cerrados. Não tinham passado cinco minutos e entra, de rompante, o alferes Martins Silva:
- Foda-se, pá! Que ambiente de merda! Nem acabei de almoçar!...
O alferes Lourenço nem abriu os olhos e o camarada, sentando-se na borda da cama em frente, continuou, agora em tom de confidência:
- Ouve, Lourenço. Tens de te pôr a pau. Não é a primeira vez que o capitão toca no assunto e fá-lo sem papas na língua quando tu não estás. Parece que tem uma obsessão pela Binta ou então é uma tara qualquer que o descontrola completamente. Refere-se a ela como uma fêmea que nasceu apenas para enlouquecer os homens. Acho que isto se pode tornar perigoso. Eu a ti... - desculpa estar a meter-me no assunto - , eu a ti deixava passar algum tempo..., ou afastava-me dela definitivamente. Ainda, para mais, casada...
O alferes Lourenço abriu os olhos e rodou a cabeça lentamente para o camarada, dizendo sem ânimo:
- Sabes, meu caro..., o problema nisto tudo é que não devia ser suficiente ter habilitações académicas e passar o cú pelos bancos das academias militares, para se poder comandar homens, dirigir pessoas. É preciso ter mais qualquer coisa para além das teorias e das técnicas. Os neurónios deviam ser avaliados um a um e, depois, no seu todo. E a alma vista de vários ângulos e submetida a testes. Neste caso concreto...
Não completou a frase pois bateram à porta. Era o ordenança com uma ordem para o alferes Lourenço:
- Desculpe meu alferes, mas o nosso capitão quer que vá falar com ele ao gabinete.
Os alferes entreolharam-se interrogativos e o Martins Silva encolheu os ombros e arqueou as sobrancelhas, enquanto o Lourenço se levantava e pensava em voz alta:
- Será que reconsiderou e quer pedir desculpa?
O outro abanou lentamente a cabeça achando que não.
Deu dois toques na porta do gabinete e, muito formal, abrindo-a, disse:
- Dá-me licença, meu capitão?
Sentado à secretária, o capitão parecia preparado para um assalto.
- Entre e deixe-se de merdas! Sente-se! - Decepção e esfriamento.
- Não, obrigado. Prefiro ficar de pé.
- Como queira. Chamei-o aqui para lhe comunicar umas coisas mas, antes, quero dizer-lhe que não volte a repetir a atitude que teve ao almoço, porque eu não lho admito, percebeu?
- Mas não admite o quê, capitão Arsénio? Você tem-se desautorizado constantemente com as suas atitudes e já não tem condições para admitir ou deixar de admitir.
- Você verá, nosso alferes! Mas queria dizer-lhe muito mais: tenho informações do meu colega do aquartelamento de Samba-Fula de que o marido da Binta Domingo anda doido e só arranja problemas lá no pelotão de milícias. E que anda a afiar os cornos para, um dia destes, vir cá enfiar-lhos na barriga. Largue essa gaja, alferes Lourenço, antes que seja tarde.
- Ah! Então o capitão, para me poupar, prefere que o Mamadu lhe venha cá enfiar os cornos a si!... É isso, capitão? Não seja hipócrita!
O capitão, sem argumentos, ainda tentou mais uma prepotência, proibindo o alferes de, daí em diante, se ausentar de noite para a tabanca. A reacção do alferes foi tão violenta que, de repente, se abriu a porta que dá para a secretaria, aparecendo a cara do 1.º Sargento com olhos esbugalhados:
- Há algum problema, meu capitão?
- Não há problema nenhum, nosso sargento! Feche essa porta e não se ponha para aí a escutar, ouviu?
O sargento bateu com a porta com toda a força.
- Está a ver, capitão? Já ninguém lhe tem respeito!..
- Não lhe admito que me faça observações! E muito menos que me chame hipócrita ou outra coisa qualquer!
- Repito-lhe. Não admite nem deixa de admitir, capitão! Já pensou, ao menos por uma vez, como se vai impor até ao fim da comissão, com a sua autoridade na sarjeta? Você não tem condições para desempenhar as funções que lhe confiaram!
O capitão pôs-se em pé de um salto e, colérico, disse:
- Ponha-se no olho da rua, nosso alferes! Antes que lhe ponha um processo disciplinar às costas! Já!
Como se precisasse de mais motivos, pensou o alferes Lourenço. Calmo, mas olhando-o bem nos olhos, respondeu-lhe baixinho enquanto ia abrindo a porta:
- Tome nota, capitão Arsénio! Um de nós não vai acabar esta comissão!
- Ou ambos, nosso alferes! Ou ambos!...
*****
Passaram-se várias semanas e, apesar de alguma tensão entre os alferes e o capitão, o dia-a-dia decorria dentro de uma aparente normalidade, com ordens curtas e secas e com uma actividade operacional favorável a baixas tensões. À cautela, o alferes Lourenço manteve-se arredado da tabanca, menos por respeito ao capitão e mais por estratégia defensiva. Mas, se por um lado o Mamadu não dava sinais, a Binta Domingo começava a insistir nos porquês, através de bilhetinhos que lhe enviava. Ao menos dissesse porquê! Não desejava mais vê-la? Ou seria que, sem querer, o tinha magoado? E porque é que o capitão insistia em querer falar com ela? Saberia de alguma coisa?
Lourenço cedeu. Estava farto de se privar do aconchego da sua amiguinha por causa de um psicopata e das ameaças incertas de um marido ciumento. Bilhete para lá, bilhete para cá e combinaram novo encontro. Mas o alferes, ainda contrafeito, mais contrafeito ficou quando ela lhe indicou uma morança de adobe e chapa de zinco de uns familiares ausentes.
Estava uma noite amena mas um pouco escura. Em redor, tudo parecia demasiado tranquilo e isso teve um efeito contrário no estado de espírito do alferes. Para se tranquilizar, enquanto caminhava, levou a mão ao bolso da perna direita e tacteou a Walter. O facto de ter o seu grupo de combate de serviço nessa noite, sentinelas de confiança, também era tranquilizador, quis acreditar. Continuou a andar mas sem convicção. Para trás, uns já dormiam e outros entregavam-se aos jogos de mesa do costume. Pareceu-lhe que a sua saída não fora notada. Hoje também eram menos no aquartelamento, pois dois grupos de combate se mantinham fora para dormir no mato.
Respirou fundo e bateu levemente na porta de zinco. A Binta apareceu enrolada num lençol e, depois de fechar a porta, correu para a cama, num quartito escuro e acanhado, com a entrada, - sem porta - , frontal à da rua. O alferes Lourenço sentou-se na borda da cama em silêncio e foi habituando os olhos à escuridão, tentando perceber os detalhes à sua volta. Para além da cama, também não havia mais nada para ver. Só então se deu conta de que, atrás de si, na parede onde se encostava a cama, quase aos pés desta, havia uma espécie de janela minúscula, fechada apenas por uma rede fina. Era possível ver através dela uma ténue claridade exterior.
Após um longo silêncio, a Binta ensaiou dizer qualquer coisa, mas ainda a medo:
- Então, Lourenço? Não te deitas?
Mas ele quase não lhe deixou terminar a frase, dizendo “Chiu!...”, e já a pensar como lhe diria a urgência que tinha em sair dali. Havia qualquer coisa, inominável, que lhe dizia que fora um erro tremendo aquela visita. Queria sair dali mas faltavam-lhe as palavras e as forças para se pôr de pé. Parecia paralisado. Mais uma vez tacteou a Walter e, no bolso esquerdo das calças, a enorme lanterna com punho de borracha.
- Que se passa, Lourenço? Deita! - insistia ela, quase num sussurro.
Ele não disse nada, apenas a afagou docemente através do lençol. Continuava de costas para ela e cada vez mais tenso, como que encurralado. Nem debaixo de fogo, pensou. Após novo silêncio que pareceu uma eternidade e eis que, do exterior, chega um restolhar abafado, hesitante mas próximo, logo interrompido pelo silêncio absoluto. Alerta, mas já a duvidar dos seus ouvidos face à enorme tensão, o alferes aguardou e tentou relaxar. Longa espera, pareceu-lhe. De novo o restolhar junto à parede, em chão de capim seco.
Percebiam-se cautelas experimentadas. O alferes crispou-se e todos os seus sensores passaram a um estado de alerta tal, que lhe pareceu possível ver o que apenas estava a ouvir e, sentir até, a vibração cardíaca do intruso, tal como sentia a sua. É o capitão!, - pensou. Grande filho da puta! Não imaginava que chegasse tão longe a sua audácia e a sua loucura. Vem à procura de uma tragédia e, se calhar, vai tê-la, o energúmeno!
Aos poucos, os sons quase imperceptíveis, vinham nitidamente por debaixo da pequena janela. Com o máximo cuidado deslizou na borda da cama e chegou-se para a cabeceira, para ficar fora do alcance da janela, mas mantendo sempre os olhos fixos nela. Depois segredou aos ouvidos da Binta:
- Está alguém do lado de fora a espiar. Silêncio absoluto!
Ela estava a dormir, ou quase, e levantou ligeiramente a cabeça, mas ele fez-lha deitar novamente. Entretanto, uma silhueta começava a surgir muito lentamente na janela, da esquerda para a direita, com um recorte nítido na contraluz e que, para espanto do alferes, deixou perceber que se tratava, afinal, de um africano ainda jovem. O Mamadu não era, de certeza, pensou. Embora nunca o tivesse visto. Confundido mas atento, viu a cabeça rodar e encostar-se de frente à rede da janela, tentando lobrigar para o interior escuro do quarto.
Sentiu ganas de, num golpe rápido, lhe dar uma coronhada violenta na cara que o prostrasse. Mas conteve-se, com receio de falhar e ser dado o alarme. Aguentou imóvel tentando adaptar-se à ideia de que tinha um grave problema pela frente. Ainda avaliou a hipótese de dar a volta à morança e surpreender o intruso. Mas depois? Dava-lhe um tiro? E se fosse mais que um? Matava-os todos?
Entretanto a silhueta abandonara a janela sem qualquer ruído. Depois, talvez, de uns dez minutos insuportáveis, soam na porta de zinco três pancadas aparentemente normais. A Binta, num sobressalto, saltou da cama só com o lençol a embrulhá-la e foi abrir. Na ombreira da porta iniciou-se um diálogo completamente estranho aos ouvidos do alferes que, de onde estava, ouvia mas não via nem podia ser visto. Relaxou um pouco quando, uma vez ou outra, ouviu rir a Binta mas, retesou-se até à asfixia, quando os ouviu discutir acaloradamente no silêncio da noite, sem saber se ela estava, ou não, a negar a sua presença ali.
Com a pistola na mão direita e a lanterna na outra, levantou-se no escuro e abriu as pernas para se estabilizar, virou-se para a entrada e, pronto para o pior, rodou a patilha de segurança. Num momento mais exaltado da discussão à porta, descontrolou-se e acendeu inadvertidamente a lanterna. Apagou-a rápido mas, se o intruso até ali tinha dúvidas, agora só podia ter certezas.
Terminada a conversa, a Binta fechou a porta com força e correu para dentro dizendo aflita:
- Lourenço! Tens que ir embora! Espera dez minutos e foge rápido até ao quartel! É o meu primo que quer apanhar-te!
Ora, isto só enervou ainda mais o alferes, pois nunca a tinha visto assim, ela que era só facilidades e de um optimismo inabalável. A tudo dizia “não tem problema”...
O alferes abriu a porta e olhou para o trilho que levava ao aquartelamento, bem definido na escuridão. No sossego da noite, perpassou-o uma estranha onda de tranquilidade, que o fez sair, sem correr, mas com passo seguro e decidido. Não porque o aquartelamento era já ali, mas porque estava preparado para tudo, pensava ele. Ainda disse: “Adeus, Binta!”. Ela ficou a vê-lo afastar-se, no aro da porta, como um anjo branco.
Não tinha dado uma dúzia de passos e eis que, do escuro entre as palhotas, surgem três vultos que lhe barraram a passagem, sem uma palavra, aparentemente desarmados, mas resolutos. Afinal, eram adolescentes, embora dois deles quase homens feitos. O mais novo avançou um passo e recuou logo, espantado.
- Alferes Lourenço?!!!
O alferes, que não largara a pistola e agora lha apontava, percebeu que, afinal, eles não sabiam quem estivera com a Binta, logo, aquilo não lhe era dirigido a si especificamente. Mas isso não o tranquilizou. De novo voltou ao estado de tensão máxima, crispado. As pernas vacilaram-lhe quando disse:
- Ninguém se mexe! Vou sair daqui e o primeiro que se mexer, leva um tiro!
Pela primeira vez em toda a sua vida estava na iminência de ter mesmo de matar à queima-roupa. Com a comissão a chegar ao fim, tão perpassada de situações de grande perigo e nada se comparava ao que lhe estava a acontecer. Se os matasse, ficaria à mercê da fúria dos nativos ou, na melhor das hipóteses, sujeito às leis militares. Ficaria desgraçado.
Os rapazes não pareciam nada intimidados e são arrogantes por natureza, ele sabia-o. Excepto o mais novo, ostentavam mesmo um ar de desafio. Mas não eram eles que assustavam o alferes Loureço, mas sim o que iriam, de certeza, desencadear, obrigando-o a defender-se a tiro. Isto era o que mais o assustava. Tinha que se decidir. Enfiou o cano da Walter na barriga do mais novo, próximo de si, e começou a contorná-los dizendo:
- Mexes e disparo!
Começou a recuar na direcção do aquartelamento, devagar e sempre a apontar a arma. Eles viraram-se para não o perderem de vista, mas sem saírem do lugar. A tensão era brutal. Para piorar, ouviu espantado a voz da Binta gritar:
- Foge, Lourenço! Foge rápido! Rápido, rápido!
O alferes olhou para a casa onde estivera e viu-a toda nua, ainda na porta, sacudindo com fúria o lençol branco, como se o pudesse enxotar para a segurança de um porto seguro. As pernas do alferes começaram a tremer, estava no instante decisivo: tinha que reagir rapidamente ou desfalecia. Sentindo que estava a uma distância suficiente deles, uma dúzia de metros, virou-se bruscamente e começou a correr para o aquartelamento, percebendo que nesse instante começavam, também eles, a correr para o interior da tabanca, aos berros e batendo com fragor nas portas de zinco das palhotas:
- Traz G3! Traz G3!
Ainda sem estar a salvo, mas já quase a entrar no aquartelamento, que dormia, o alferes fazia um esforço titânico para correr, mas as pernas não lhe obedeciam e, por momentos, pareceu-lhe que tinha regressado aos pesadelos de criança em que, fugindo dos monstros, as pernas, embora frenéticas, não o faziam sair do lugar, deixando-o a vogar. Com esta pequena distracção o alferes estatelou-se ao comprido no chão irregular. Mas isto fê-lo despertar e deu-se então conta, ao levantar-se a custo, de que tinha caído em cima da pistola que lhe esfacelou o peito contra as costelas. Tinha a camisa empapada de sangue mas não sentia nada. Começou a andar, coxeando, e olhou para a mão direita que também sangrava, agarrando ainda a pistola. O dedo no gatilho todo esfolado. Virou-se para a tabanca, mas já não havia correrias e berros. Só silêncio. Parecia que alguém, autoridade suprema, pusera subitamente a recato, aqueles jovens estouvados e perturbadores da noite.
Ali, no aquartelamento, tudo dormia. Tudo parecia apaziguado. Teria o capitão dado conta do incidente, estando agora a observá-lo? Achou que não. Se alguém se apercebeu de alguma coisa, foram as suas sentinelas nos postos, rapazes da sua confiança. Decidiu sentar-se num lugar recôndito e mais escuro para recuperar a respiração, antes de se dirigir ao quarto sem ser notado. Amanhã lavar-se-ia e fingiria uma indisposição para passar o dia de folga na cama. Meditou e adormeceu sentado, por instantes, ainda com a pistola na mão.
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Era um fim de tarde magnífico e o pessoal vinha com óptima disposição. Tinha sido mais um dia rotineiro passado no mato, sem sobressaltos, para fazer protecção a uma coluna. Depois de muitos quilómetros apeados e a fazer picagem, para lá, vinham agora prazenteiros em dois Unimog´s de regresso à base. No Unimog da frente, de pé para amortecer solavancos e ao lado do condutor, como era habitual, o alferes Lourenço segurava-se ao pára-brisas com a mão esquerda e, na outra, segurava a G3. Estavam quase a chegar e, lá adiante, já se via o grande poilão como referência da tranquilidade e da segurança da zona. Mais à direita, lá ao fundo, também já era possível ver as manchas brancas do casario do aquartelamento, através da mata de grandes árvores mas espaçadas.
De súbito soa um tiro - de certeza de G3 -, do lado direito da mata, e o alferes, com o nariz a arder, berra para o condutor:
- Pára! Pára essa merda!
A travagem brusca quase provocou o choque do Unimog de trás e a projecção dos homens para cima dos condutores. Antes de o Unimog do alferes parar, já ele ia num salto para o chão em atitude defensiva, mas não houve mais nenhum disparo. Sentiu um grande ardor na base do nariz e no lábio superior e levou a mão à cara para se certificar se tinha sangue. Não, mas estava queimado de certeza. Pensou, em fracção de segundos: como fora possível, à velocidade a que vinham, aos saltos no Unimog, quase ser atingido na cabeça? Tudo isto ocorreu num ápice, pois mal chegou ao chão e vendo que parte do pessoal saltara também, entrou a correr na mata e fez várias rajadas curtas. Depois, virando-se para trás, disse ao furriel Paulo:
- Vais aí pela direita, eu vou pelo meio e tu – apontou para o 1.º Cabo Cardoso - vais pela minha esquerda. Rápido! Vamos fazer uma batida, que o gajo não pode estar longe.
Antes, virou-se para o furriel José Nunes e mandou-o continuar com as viaturas e o resto do pessoal para o aquartelamento. Enquanto seguiam em passo de corrida pela mata de chão quase limpo, com uns aglomerados esparsos de arbustos e um ou outro baga-a-baga, o alferes pensou, pela primeira vez, quem poderia ter sido o atirador furtivo que, sem dúvida, o tentara alvejar, e porquê. De repente fez-se luz na sua cabeça: Mamadu! Só podia ser. Subiu-lhe uma raiva das entranhas e parou, chamando pelos outros com a mão. Disse, falando baixo e por gestos:
- Tomem atenção! A ordem é: capturar o gajo, ou matá-lo! Não se afastem demasiado e tomem como referência o aquartelamento à esquerda. Vamo-nos manter sempre à vista. Olhos bem abertos!
Caminhavam agora com mais cautelas, mas já se estavam a afastar muito e o alferes começou a impacientar-se. Parou a olhar para trás, para o lado da picada, e concluiu que o tiro não podia ter sido disparado de tão longe. Crispou-se. O atirador tinha de estar por ali oculto, até porque, à esquerda e já não visível era o aquartelamento e, em frente, já se via a bolanha, onde o fulano não arriscaria entrar por ficar exposto.
De repente, soam dois tiros vindos da orla da mata com a bolanha, cortando-lhe o raciocínio. Instintivamente, o alferes saltou para trás da árvore que estava mesmo ao seu lado, mas ainda a tempo de ver um vulto agachado a mudar de posição lá à frente. Berrou:
- Está ali, o gajo! Cuidado! Está atrás do baga-a-baga em frente.
Enquanto o furriel e o 1.º Cabo se levantavam do chão, ele avançou vários metros ocultando-se de árvore em árvore. Sentiu que todo ele se eriçava num instinto felino. Teve o impulso de correr até ao baga-a-baga e contorná-lo despejando o carregador da G3, mas dominou-se e, enquanto avançava, começou a incitar a presa.
- Sei que estás aí, turra! Não tens hipóteses, filho da puta!
Viu surgir o cano da G3 do lado direito do abrigo e atirou-se para o chão no instante em que soou novo tiro. Pensou: o gajo não tem saída, mas é perigoso. Vou provocá-lo continuamente até chegar ao baga-a-baga e, ao expor-se, é abatido pelo furriel ou pelo 1.º cabo. Fez-lhes entender por gestos o que pretendia e avançou.
- Nharro de merda! Deita a arma para longe e sai daí que não te acontece nada, nharro!
Estava-se a ficar num impasse e perigosamente próximos do abrigo do atirador. O furriel e o cabo, cada um de seu lado, estavam quase no alinhamento do baga-a-baga, prontos a disparar se ele se expusesse. Mudou de estratégia, o alferes: chegou-se mais para o lado do furriel até se fazer ouvir e disse:
- Passas tu a espevitá-lo para o distrair. Não pares, que é para ele não dar pela minha aproximação. Vou até lá e mando-lhe uma bojarda. Está atento e deita-te porque vai haver merda. Mas mantém-no na mira.
Soou novo tiro, mas agora na direcção do furriel que começara a provocá-lo. Parecia estar a ficar nervoso. O alferes aproveitou a brusca ocorrência e, em três saltos, estava colado ao baga-a-baga. Puxou o porta-granadas do cinturão, retirou uma granada defensiva e, a seguir, levantou o braço mostrando-a ao cabo, acenando-lhe para que se deitasse. Virou-se para o lado oposto, para o furriel, mas percebeu que ele vira o sinal já feito ao 1.º Cabo. Sossegou uns segundos e respirou fundo. Encostou-se de lado na parede rugosa daquele colosso de terra, esticou os braços para baixo e descavilhou a granada, silenciosamente. Ergueu os olhos para o topo e avaliou a força a imprimir ao arremesso. E lançou a granada para o outro lado, num arco premeditadamente lento.
Quase se surpreendeu com o fragor modesto da explosão. Rápido, sacudiu-se de terras e poeiras e contornou o baga-a-baga de arma apontada. Teve um choque que o deixou estarrecido. Gritou:
- Capitão!!! Capitão filho da puta que me desgraçaste a vida! Fodeste-me a vida, capitão!
O capitão estava um pouco à frente do baga-a-baga. Deve ter tentado chutar a granada. Deitado de costas, sem um ai, tinha os olhos muito abertos fixados no alferes, metade da cara esfacelada e o camuflado empapado de sangue no peito.
Entretanto surgiram o furriel e o cabo que, atónitos e mudos, recuaram uns passos. O capitão parecia que ia dizer qualquer coisa, teve um vómito de sangue e a cabeça tombou-lhe para o lado com os olhos abertos.
O alferes, que não parara de praguejar, descontrolou-se e, com um profundo lamento, deitou a G3 ao chão e desatou a correr internando-se na mata profunda, longe da bolanha.
*****
Apesar da frescura da tarde, quase no fim, ali dentro abafava-se. E o ambiente de odores e conversa fiada dos circunstantes, que ocupavam quase todos os assentos de lona, só piorava a situação. De que é que estarão à espera? Impacientava-se o alferes Lourenço.
Finalmente, um dos motores, o do lado direito, arrancou e pôs aquela geringonça toda a oscilar e a torcer-se, parecendo que se ia desconjuntar a todo o instante. Mas com o arranque do motor esquerdo e após ter atingido as rotações normais, tudo se equilibrou numa vibração miudinha. As conversas, interrompidas por instantes, retomaram a senda mas num tom mais alto devido ao barulho dos motores. Sentiu-se um pequeno estremeção do monstro e, lentamente começou a rolar na pista, ganhando velocidade aos saltos como numa picada. Depois, pela suavidade que sobreveio, percebeu-se que já se elevara nos ares.
Tudo começou a ficar para trás. Até o futuro. O alferes Lourenço olhou de esguelha para os fundos da cauda do Nord Atlas e fixou-se no caixão, no meio de outros caixotes, presos com cintas ao bojo do avião. Pensou: “Tinhas razão, grande sacana! Ambos não acabámos a comissão!”.
© António Murta
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Nota o editor
Último poste da série de 1 de dezembro de 2014 > Guiné 63/74 - P13965: Conto breve (António Murta, ex-Alf Mil da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4513) (1): Pesadelo
Guiné 63/74 - P14761: Estórias cabralianas (87): O Espanhol, o alferes Sá de Miranda e a Borboleta que sonhava que era rapariga (Jorge Cabral)
Lisboa > Belém > 10 de junho de 2009, Dia de Portugal > Encontro Nacional de Combatentes, em Belém, junto ao Forte de Bom Sucesso > Vacas de Carvalho à direita da foto, Jorge Cabral deliciosamente "cercado" pelas camaradas da Polícia do Exército (PE).
Foto: © Mário Fitas (2009). Todos os direitos reservados [Edição e legenda; LG]
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1. Mais uma história de encontros e desencontros, nas margens da vida... Ninguém como o "alfero Cabral", na nossa Tabanca Grande, sabe evocar, com delicadeza, compaixão e empatia, estas figuras de gente humilde que eram os nossos camaradas, ditos "básicos", remetidos quase sempre para funções de auxiliar de cozinheiro, e cujos nomes se nos varreram da memória... Todas as companhias tinham um ou mais soldados básicos (sic)... Muitos deles já levavam, para o TO da Guiné, uma cruz às costas: ou "nasceram tortos", ou a curta vida de 20 anos já lhes era madrasta... Tenho a imagem de um, que foi comigo no Niassa; "ia a ferros", preso, por ser desertor, segundo se dizia...
Jorge Cabral foi alf mil art, Pel Caç Nat 63, Guiné, zona leste, setor L1 (Bambadinca), tendo comandado destacamentos como Fá Mandinga e Missirá, 1969/71; especialista em direito penal , professor do ensino superior universitário, reformado, é autor desta série, "estórias cabralianas", aque há muito procuram a editora que ele merece... Mas é aqui, no nosso blogue,. que ele tem os seus melhores (e maiores) leitores e fãs desde pelo menos 2006 ... Estas "estórias do outro lado da guerra" (87, com esta última!) já há muito que mereciam ser reunidas em livro... E, quando o forem, vamos fazer um "grande ronco"!... Até lá, boa saúde, bons encontros, alfero!
PS - Com a sua proverbial modéstia, está-me sempre a dizer, quando lhe abordo o tema: "Publicar um livro, para quê e para quem ? Está tudo no blogue... Quem vai compar e ler ? Os meus leitores estão todos a prazo e não vão pagar para me reler... Só se vive e escreve uma vez, camarada"...
2. Estórias cabralianas (87): O Espanhol, o Alferes Sá de Miranda e a Borboleta
por Jorge Cabral
Em Missirá, jantávamos cedo. Éramos apenas onze brancos e rápidamente despachávamos o pé de porco com arroz ou a cavala com batatas. Depois ficávamos à mesa conversando. Alguns mais resistentes permaneciam noite dentro. Um deles era o novo cozinheiro, o Espanhol, soldado básico, que mancava.
Segundo ele fora um tigre que lhe comera três dedos do pé esquerdo, num circo de Antequera. Contava que a mãe fugira de Lisboa com um palhaço e o levara ainda bebé, mas que quando fizera dezoito anos regressara para procurar o pai, o qual nunca chegara a encontrar.
Incorporado, nem a falta dos dedos o safou... Na altura tinha uma correspondente, que se intitulava Madrinha de Paz. Escrevia bem e às vezes naqueles serões eu citava pequenos trechos das cartas. Uma noite li, que ela escrevera:
”Hoje sonhei que era Borboleta. Mas não serei eu uma Borboleta que está a sonhar que é rapariga?”
A gaja é maluca, foi a opinião unânime. A partir de então, quem ía buscar o correio, vinha logo ter comigo, satisfeito:
– Meu Alferes, carta da Borboleta!.
A comissão acabou. Voltei e nunca mais me lembrei nem do Espanhol nem da Borboleta...
Porém há muitos anos, frequentei com alguma assiduidade, uma “Casa de Pouca Permanência”, hoje Hostel, ali para os lados da Praça do Chile. Tudo lá era discreto, quase secreto. Tocava-se à campainha, subia-se e as portas da casa e do quarto já estavam abertas. Ninguém via a dama, mas o cavalheiro tinha que dar a cara, junto da recepcionista, uma velhota que não pedia qualquer identificação. Pagava-se e escrevia-se o nome num caderno já gasto. Por mim fui Gil Vicente, Bernardim Ribeiro e até Luiz Vaz de Camões...
Ora uma vez, para minha surpresa, a recepcionista fora substituída. E adivinhem, por quem? Pelo Espanhol. Eu reconhecio-o e senti que ele também me reconheceu. Mas não dissémos nada. Paguei e assinei. Desta vez... Sá de Miranda. Ainda lá voltei mas a velha senhora retomara o seu posto.
Foi há um mês, descia a Almirante Reis, quando mesmo em frente à Igreja dos Anjos, deparei com o Espanhol:
– É o Alferes Cabral, não é? Ou devo chamar-lhe Alferes Sá de Miranda?
– Malandro... vamos almoçar!
À mesa, diante de um arroz de tomate com joaquinzinhos, conversámos. Lembrava-se bem de Missirá e perguntou logo:
– Então, e a Borboleta?
Foi no entanto parco em informações sobre como lhe correra a vida. Todas as vidas têm altos e baixos, mas deu para entender que a do Espanhol, só teve baixos. Regressado da Guiné, ainda foi a Antequera, mas o palhaço morrera e a mãe emigrara para a Argentina. Durante estes mais de quarenta anos, sonhou ir visitá–la. E ainda sonha...
–Ah! Alferes Cabral se eu ganhasse o euromilhões...
Adeus, Espanhol, mas olha não há duas sem três. Vais ver que o nosso próximo encontro será em Buenos Aires. E até vou levar uma Borboleta, a fingir de rapariga, para dançar o tango.
Jorge Cabral
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Nota do editor:
Último poste da série > 17 de junho de 2015 > Guiné 63/74 - P14760: Estórias cabralianas (86): Alferofilia (...uma parafilia a acrescentar à lista DSM - Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders, da APA - American Psychiatric Association (Jorge Cabral)
quarta-feira, 17 de junho de 2015
Guiné 63/74 - P14760: Estórias cabralianas (86): Alferofilia (...uma parafilia a acrescentar à lista DSM - Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders, da APA - American Psychiatric Association) (Jorge Cabral)
1. Com um especial agradecimento à amiga Anabela Martins, que processou, em word, a versão original, manuscrita, de mais esta estória do alfero Cabral, pensada e alinhavada enquanto o autor se preparava, há dias, para ser submetido aos horrores de uma colonoscopia num daqueles sítios asséticos, de batas brancas, muitas luzes e aparelhos da guerra das estrelas, num conceituado hospital da capital, onde um gajo, se se descuida, pode muito bem bater a bota ou lerpar, como se dizia em Missirá, antes de ter cantado o fado todo a que foi condenado)...
Quanto ao editor, ele muito se congratula com o regresso, ao mundo dos vivos, do nosso alfero Cabral que já não nos "mandava estória" desde o último Natal de 2014! E desta feita, mandou-nos duas, duas estórias!... Se não quisesse correr o risco de ser mal interpretado, até diria: "Bendita colonoscopia, alfero Cabral"!... (LG)
[Foto acima; o "alfero" Cabral não precisa de apresentações... Mas recorde-se que, noutra encarnação, foi alf mil art, cmdt Pel Caç Nat 63, Guiné, zona leste, setor L1 (Bambadinca), tendo destacdo em Fá Mandinga e Missirá, 1969/71; hoje é jurista, professor do ensino superior universitário, reformado; autor da série "estórias cabralianas" ... há muito à espera de um bom de um editor que as publique em suporte de papel!...]
2. Estórias cabralianas (86) > Alferofilia
por Jorge Cabar
O Alfero nem oito dias tinha de Missirá, quando Binta, a mulher do Milícia, se meteu no seu quarto – abrigo, convidando-o a ...Ainda pensou resistir, mas... Na função era básica, mas os dotes pedagógicos do Alfero, surtiram efeito.
Era conhecida como a mulher do Milícia, mas não tinha marido, pois o repudiara, segundo os usos e costumes, por questões anatómicas, como se dizia na Tabanca.
Há uns anos, num dos nossos Encontros, conheci o último Comandante de Missirá. Pois não é, que me falou dela?! Também não resistiu... Aliás, no tempo dele chamavam-lhe a Alfera.
Quantos Alferes? Bem, todos estiveram lá, mas foi para resistir ao PAIGC...
O Alfero nem oito dias tinha de Missirá, quando Binta, a mulher do Milícia, se meteu no seu quarto – abrigo, convidando-o a ...Ainda pensou resistir, mas... Na função era básica, mas os dotes pedagógicos do Alfero, surtiram efeito.
Era conhecida como a mulher do Milícia, mas não tinha marido, pois o repudiara, segundo os usos e costumes, por questões anatómicas, como se dizia na Tabanca.
Há uns anos, num dos nossos Encontros, conheci o último Comandante de Missirá. Pois não é, que me falou dela?! Também não resistiu... Aliás, no tempo dele chamavam-lhe a Alfera.
Quantos Alferes? Bem, todos estiveram lá, mas foi para resistir ao PAIGC...
Nas minhas aulas, falava das perversões sexuais, as parafilias (pedofilia, zoolofilia, necrofilia...) e acrescentava sempre a Alferofilia. (**)
– Alferofilia, professor? Não consta do DSM... (1)
Pois não... Os psiquiatras americanos não a conhecem. Com esta estória, tenho a certeza, que a próxima actualização do Manual a vai referir.
Luís, não te esqueças de a enviar à APA - American Psychiatric Association...
Pois não... Os psiquiatras americanos não a conhecem. Com esta estória, tenho a certeza, que a próxima actualização do Manual a vai referir.
Luís, não te esqueças de a enviar à APA - American Psychiatric Association...
Jorge Cabral
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(1) – Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders – American Psychiatric Association [Em português, Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais, da Associação de Psiquiatria Americana]
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Notas do editor:
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(1) – Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders – American Psychiatric Association [Em português, Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais, da Associação de Psiquiatria Americana]
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Notas do editor:
(*) Último poste da série > 16 de dezembro de 2014 > Guiné 63/74 - P14037: Estórias cabralianas (85): uma floresta de árvores de Natal... (Jorge Cabral)
(**) "Parafilia (do grego παρά, para, "fora de", e φιλία, philia, "amor") é um padrão de comportamento sexual no qual, em geral, a fonte predominante de prazer não se encontra na cópula, mas em alguma outra atividade. São considerados também parafilias os padrões de comportamento em que o desvio se dá não no ato, mas no objeto do desejo sexual, ou seja, no tipo de parceiro, como, por exemplo, a efebofilia". (Fonte; Wikipédia, com a devida vénia...)
Guiné 63/74 - P14759: (Ex)citações (283): Sexo em tempo de guerra... Um caso de violação, em que foi condenado um camarada do António Reis, ex-1º cabo aux enf, HM 241, Bissau, 1966/68, autor do livro "A jornada em África".
Capa do livro de António Reis, agora aumentado e reeditado: "A minha jornada em África", Vila Nova de Gaia, Palavras & Rimas, 2015, 110 pp. O autor foi 1º cabo aux enf, HM 241, Bissau, 1966-68 (*). E teve a gentileza de nos mandar 3 exemplares do seu livro. Vamos fazer a sua devida nota de leitura.
1. Excerto: "A justiça não tinha cor", por António Reis…
O colega P., mas que não se chamava Pedro, era um colega porreirinho e era um bom colega, mas um dia a cabeça não teve juízo, foi o corpo quem pagou. Foi acusado de violação. Nós, por ironia, dizíamos: “Não estava a mãe, foi a filha”.
A verdade é que esta mãe não teve receio perante a situação de levar a filha ao hospital e apresentar queixa. Esta mãe não teve receio de represálias.
O colega P. terminou a comissão e continuou em serviço a aguardar julgamento. Não me recordo qauntos foram os meses que teve de aguardar até que chegasse o julgamento. Julgado, a sentença foi: “Prisão com ele!”.
Também não me recordo o tempo que esteve preso, mas recordo-me de o ter ido visitar à cadeia do Quartel-General em Bissau.
No mato era olho por olho, dente por dente. Fora do cenário de guerra havia respeito e carinho pelas populações.” (…).
Excerto publicado com a devida vénia: In: REIS, António – A minha jornada em África: a todos os netos, a verdade que eu vi!. Vila Nova de Gaia: Palavras & Rimas Lda, 2015, p. 81
2. Comentário do editor:
Não sabemos, infelizmente, quantos casos, semelhantes, por alegada violação de mulheres, foram parar à justiça militar. Este caso, passado com um camarada (presumivelmente maqueiro ou auxiliar de enfermeiro) que fazia serviço no HM 241, em Bissau, ocorreu no tempo do governador e com-chefe gen Arnaldo Schulz, antecessor de Spínola. (O autor do livro, nascido em 1944. em Avintes, Vila Nova de Gaia, esteve no TO da Guiné entre 13 de março de 1996 e 20 de março de 1968). E é uma das 27 histórias compõem o livro, nesta nova edição com a chancela de Palavras & Rimas Lda.
E vem a propósito citar uma carta que escrevi de Bissau, em 10/2/1970, onde refiro ter conhecido, nos Adidos, um capitão e um furriel, da mesma companhia, que estavam a contas com a justiça por alegados crimes de "violação e assassínio a sangue frio de bajudas, além da tortura e liquidação de suspeitos" (**)...
Na altura, em Bissau, o caso era muito badalado, e o furriel, o único que foi condenado (, segundo depois vim a saber, ainda há pouco tempo) , é conhecido de alguns camaradas nossos da Tabanca da Linha.
A haver mais casos, na época, de violação de mulheres guineenses, por parte de militares portugueses, seria interessante (e importante, para todos nós, ex-combatentes), que eles pudessem vir a ser relatados e publicados no nosso blogue, sem a identificação, obviamente, dos seus autores e das suas vítimas. (***)
_________________
Notas do editor:
(*) 5 de janeiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5596: O mundo é pequeno e a nossa Tabanca... é grande (20): Antonio Reis, ex-1º Cabo Enf, Bissau, HM 241, 1966-1968, e escritor (Rui Alexandrino Ferreira / Luís Graça)
(**) Vd. poste de 14 de novembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2264: Blogue-fora-nada: O melhor de... (3): Carta de Bissau, longe do Vietname: talvez apanhe o barco da Gouveia amanhã (Luís Graça)
(...) De facto, aqui desaguam todos os rios humanos da Guiné: a carne que já foi do canhão e agora é do bisturi (ou dos vermes, em caixões de chumbo, discretamente empilhados, à espera que o Niassa ou o Uíge ou o Alfredo da Silva os levem nos seus porões nauseabundos); os desenfiados, como eu, todos os que procuram safar-se do inferno verde, quanto mais não seja por uns dias ou até umas breves horas, que o tempo aqui conta-se, de cronómetro na mão, até à fracção de segundo; os prisioneiros de guerra, esfarrapados, andrajosos, a caminho da Ilha das Galinhas; as populações do interior desalojadas pela guerra; os jovens recrutados para a nova força africana; enfim, os criminosos de guerra como o capitão P. que está aqui detido no Depósito Geral de Adidos à espera de julgamento em tribunal militar – suponho eu -, juntamente com um furriel miliciano da sua companhia. Ambos estão implicados em vários casos, muito falados, de violação e assassínio a sangue frio de bajudas, além da tortura e liquidação de suspeitos. (...)
(***) Último poste da série > 15 de junho de 2015 > Guiné 63/74 - P14746: (Ex)citações (282): Sexo em tempo de guerra... Ha(via) um raio de um "santo inquisidor" dentro de cada um de nós... (Francisco Baptista, natural de Brunhoso, Mogadouro; ex-alf mil inf, CCAÇ 2616, Buba, 1970/71, e CART 2732 , Mansabá, 1971/72)
A haver mais casos, na época, de violação de mulheres guineenses, por parte de militares portugueses, seria interessante (e importante, para todos nós, ex-combatentes), que eles pudessem vir a ser relatados e publicados no nosso blogue, sem a identificação, obviamente, dos seus autores e das suas vítimas. (***)
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Notas do editor:
(*) 5 de janeiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5596: O mundo é pequeno e a nossa Tabanca... é grande (20): Antonio Reis, ex-1º Cabo Enf, Bissau, HM 241, 1966-1968, e escritor (Rui Alexandrino Ferreira / Luís Graça)
(**) Vd. poste de 14 de novembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2264: Blogue-fora-nada: O melhor de... (3): Carta de Bissau, longe do Vietname: talvez apanhe o barco da Gouveia amanhã (Luís Graça)
(...) De facto, aqui desaguam todos os rios humanos da Guiné: a carne que já foi do canhão e agora é do bisturi (ou dos vermes, em caixões de chumbo, discretamente empilhados, à espera que o Niassa ou o Uíge ou o Alfredo da Silva os levem nos seus porões nauseabundos); os desenfiados, como eu, todos os que procuram safar-se do inferno verde, quanto mais não seja por uns dias ou até umas breves horas, que o tempo aqui conta-se, de cronómetro na mão, até à fracção de segundo; os prisioneiros de guerra, esfarrapados, andrajosos, a caminho da Ilha das Galinhas; as populações do interior desalojadas pela guerra; os jovens recrutados para a nova força africana; enfim, os criminosos de guerra como o capitão P. que está aqui detido no Depósito Geral de Adidos à espera de julgamento em tribunal militar – suponho eu -, juntamente com um furriel miliciano da sua companhia. Ambos estão implicados em vários casos, muito falados, de violação e assassínio a sangue frio de bajudas, além da tortura e liquidação de suspeitos. (...)
Guiné 63/74 - P14758: Os nossos seres, saberes e lazeres (101): Tomar à la minuta (4) (Mário Beja Santos)
1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70) com data de 20 de Maio de 2015:
Queridos amigos,
Concentrei-me nesta viagem no casco histórico e redondezas. Andei à procura dos sinais do tempo, e é bem verdade que há pedras que falam, estas ruas tem majestade, mas há para aqui uma descrição ou um recato muito portugueses, o que fazer as coisas numa dimensão humana, veja-se a sinagoga ou o edifício onde está o acervo de arte contemporânea doado por José-Augusto França. E arrebata, percorrendo a Tomar multisecular, pressentir que todos estes lugares e memórias mexem e remexem com todas as gentes, pois também daqui houve nome de Portugal, da cristandade, do delírio artístico, da ousadia henriquina e da fé inquisitorial de D. João III. Percorre-se Tomar e o seu cadinho de contradições que são as contradições em que nos habituamos a viver.
Um abraço do
Mário
Tomar à lá minuta (4)
A primeira tentação era sair de casa e deambular pela berma da estrada até à capela de S. Lourenço, depois andar à volta do padrão comemorativo da junção das tropas de D. Nuno Álvares Pereira com as de D. João I, daqui singraram para Aljubarrota e mudaram o curso da história. Findos estes encontros, seguia pela Estrada de S. Lourenço e entrava na Corredoura, sentia-me ansioso para calcorrear o casco histórico da cidade. Mas veio a modorra, encurtei o propósito e segui diretamente para a Corredoura. As ruas laterais são estreitas e os moradores socorrem-se destes “frades” para evitar destruições nas paredes, há aqui um sabor medieval a que se junta muita pedra à vista, mais adiante mostro portas bem sulcadas pelo tempo.
Guardo uma boa coleção de postais com mais de um século trocados entre a minha avó Ângela e os seus familiares aqui residentes. Uns fazem parte da coleção da Havaneza de Tomar, outros são anónimos. No entanto, a loja do Barateiro produziu bilhetes-postais, li no suplemento de “O Templário”, com data de Agosto de 2008, um soberbo guia onde se compara a Tomar de outras décadas com os tempos atuais, edição comemorativa dos 20 anos do novo “O Templário”, uso-o como bússola. Felizmente que o interior da loja mantém os toques e os tiques do que foi o seu comércio multifuncional, estas vitrinas e portadas Arte Deco são uma das marcas de classe desta rua Serpa Pinto do comércio elegante, de outras e destas eras.
Deu-me a veneta, saí da Corredoura e desandei por ruas laterais, e assim descubro uma porta aberta, um corredor longo e um estendal com lençóis ao fundo, não é proeza nenhuma captar toda esta alvura com uma determinada luz ao fundo do corredor, intervalada com estas manchas de castanho. Mas é um pouco dos mistérios tomarenses a que me acostumei e de que não me quero privar.
Mais uma guinada, parece que me sinto atraído pelo Nabão ou pelo Mouchão, mas não é verdade, sinto-me bem nestas ruas às vezes quase vielas ou ruelas, e assim me deparo com a entrada de uma casa cheia de arte contemporânea doada pelo professor José-Augusto França à sua terra-natal. Não vou entrar, fica para mais tarde, aliás de vez em quando venho aqui regalar os olhos com o Vespeira e outros artistas. Quedo-me nesta escultura do José Guimarães e ao fundo um painel de Eduardo Nery, as obras acasalam muito bem e penso como esta beleza sossegada tão bem se enquadra na placidez do cosmopolitismo tomarense, com tanta paisagem rústica à sua mercê.
É manhã de mercado, atravesso a ponte Arantes e Oliveira e mergulho na cor da comida e da roupa. Como ainda tenho outros desígnios para este calcorreio, fiquemos por aqui, imagens de frutos secos, há para ali também cheiro a açafrão e talvez caril, são lembranças da Índia que não se apagam no nosso ADN de descobridores e depois sinto a atração pela fruta do tempo, carnuda, polposa, vermelhusca, estou seguro que nem o mais hábil pintor encontraria pigmento para avivar as cores destes morangos e cerejas.
Tomar distinguiu-se pelas suas moagens e fiação, agora temos a lembrança, mais do que arqueologia industrial estes equipamentos irão ganhar vida, estarei à espreita para ver o que daqui sai, mas que está tudo formoso está, oxalá que lhe deem bom caminho, seja para formação, para espaço lúdico, hotel de charme ou de encontro entre o passado e o presente, e enquanto procuro o melhor ângulo para aconchegar esta beleza até questiono se não se devia pôr aqui o museu municipal de Tomar, há a casa Lopes Graça, a sinagoga, o museu dos fósforos, e a cidade multicentenária não precisa de um espaço para questionar o seu brilhante passado?
Sinceramente, é despiciendo identificar-se este património respeitado, usufrua-se o zelo e por certo o dever de memória que os proprietários quiseram ver preservado, o que interessa é o que é bonito de ver, aqui respira-se a ondulação do tempo e como ele desagua naquele conceito largo que designamos pela nossa pátria bem-amada, aquele salutar princípio de que somos um velho povo, tão antigo que as suas pedras nos ressoam pelos nossos passos perdidos onde pisamos presente e futuro.
Eis a sinagoga de Tomar, construída em meados do século XV, e que andou em bolandas desde que o Senhor D. Manuel I, o mesmo que mandou construir a edificação que embelezou para todo o sempre a Charola do Convento de Cristo, expulsou os judeus e nos privou deste ramo precioso da cultura, da ciência e dos negócios, Aqui sente-se a influência oriental e quem entra leva uma injeção de sabedoria sobre o simbolismo das colunas e capitéis, fala-se nas 12 tribos de Israel, nas 4 matriarcas de Israel, exalta-se a acústica do templo. O que mais me interessa é a harmonia do seu interior, a sua porta principal que está no prédio ao lado, e sair para a Judiaria, marcho impante por estes trabalhos, pelo desvelo da guia e pela luz que fica nestas imagens. O deus único fala por si.
(Continua)
____________
Notas do editor
Poste anterior de 10 de junho de 2015 > Guiné 63/74 - P14726: Os nossos seres, saberes e lazeres (99): Tomar à la minuta (3) (Mário Beja Santos)
Último poste da série de 13 de junho de 2015 > Guiné 63/74 - P14741: Os nossos seres, saberes e lazeres (100): Passeio turístico a Sanxenxo (Galiza) promovido pelo Núcleo de Matosinhos da Liga dos Combatentes (Carlos Vinhal)
Queridos amigos,
Concentrei-me nesta viagem no casco histórico e redondezas. Andei à procura dos sinais do tempo, e é bem verdade que há pedras que falam, estas ruas tem majestade, mas há para aqui uma descrição ou um recato muito portugueses, o que fazer as coisas numa dimensão humana, veja-se a sinagoga ou o edifício onde está o acervo de arte contemporânea doado por José-Augusto França. E arrebata, percorrendo a Tomar multisecular, pressentir que todos estes lugares e memórias mexem e remexem com todas as gentes, pois também daqui houve nome de Portugal, da cristandade, do delírio artístico, da ousadia henriquina e da fé inquisitorial de D. João III. Percorre-se Tomar e o seu cadinho de contradições que são as contradições em que nos habituamos a viver.
Um abraço do
Mário
Tomar à lá minuta (4)
A primeira tentação era sair de casa e deambular pela berma da estrada até à capela de S. Lourenço, depois andar à volta do padrão comemorativo da junção das tropas de D. Nuno Álvares Pereira com as de D. João I, daqui singraram para Aljubarrota e mudaram o curso da história. Findos estes encontros, seguia pela Estrada de S. Lourenço e entrava na Corredoura, sentia-me ansioso para calcorrear o casco histórico da cidade. Mas veio a modorra, encurtei o propósito e segui diretamente para a Corredoura. As ruas laterais são estreitas e os moradores socorrem-se destes “frades” para evitar destruições nas paredes, há aqui um sabor medieval a que se junta muita pedra à vista, mais adiante mostro portas bem sulcadas pelo tempo.
Guardo uma boa coleção de postais com mais de um século trocados entre a minha avó Ângela e os seus familiares aqui residentes. Uns fazem parte da coleção da Havaneza de Tomar, outros são anónimos. No entanto, a loja do Barateiro produziu bilhetes-postais, li no suplemento de “O Templário”, com data de Agosto de 2008, um soberbo guia onde se compara a Tomar de outras décadas com os tempos atuais, edição comemorativa dos 20 anos do novo “O Templário”, uso-o como bússola. Felizmente que o interior da loja mantém os toques e os tiques do que foi o seu comércio multifuncional, estas vitrinas e portadas Arte Deco são uma das marcas de classe desta rua Serpa Pinto do comércio elegante, de outras e destas eras.
Deu-me a veneta, saí da Corredoura e desandei por ruas laterais, e assim descubro uma porta aberta, um corredor longo e um estendal com lençóis ao fundo, não é proeza nenhuma captar toda esta alvura com uma determinada luz ao fundo do corredor, intervalada com estas manchas de castanho. Mas é um pouco dos mistérios tomarenses a que me acostumei e de que não me quero privar.
Mais uma guinada, parece que me sinto atraído pelo Nabão ou pelo Mouchão, mas não é verdade, sinto-me bem nestas ruas às vezes quase vielas ou ruelas, e assim me deparo com a entrada de uma casa cheia de arte contemporânea doada pelo professor José-Augusto França à sua terra-natal. Não vou entrar, fica para mais tarde, aliás de vez em quando venho aqui regalar os olhos com o Vespeira e outros artistas. Quedo-me nesta escultura do José Guimarães e ao fundo um painel de Eduardo Nery, as obras acasalam muito bem e penso como esta beleza sossegada tão bem se enquadra na placidez do cosmopolitismo tomarense, com tanta paisagem rústica à sua mercê.
É manhã de mercado, atravesso a ponte Arantes e Oliveira e mergulho na cor da comida e da roupa. Como ainda tenho outros desígnios para este calcorreio, fiquemos por aqui, imagens de frutos secos, há para ali também cheiro a açafrão e talvez caril, são lembranças da Índia que não se apagam no nosso ADN de descobridores e depois sinto a atração pela fruta do tempo, carnuda, polposa, vermelhusca, estou seguro que nem o mais hábil pintor encontraria pigmento para avivar as cores destes morangos e cerejas.
Tomar distinguiu-se pelas suas moagens e fiação, agora temos a lembrança, mais do que arqueologia industrial estes equipamentos irão ganhar vida, estarei à espreita para ver o que daqui sai, mas que está tudo formoso está, oxalá que lhe deem bom caminho, seja para formação, para espaço lúdico, hotel de charme ou de encontro entre o passado e o presente, e enquanto procuro o melhor ângulo para aconchegar esta beleza até questiono se não se devia pôr aqui o museu municipal de Tomar, há a casa Lopes Graça, a sinagoga, o museu dos fósforos, e a cidade multicentenária não precisa de um espaço para questionar o seu brilhante passado?
Sinceramente, é despiciendo identificar-se este património respeitado, usufrua-se o zelo e por certo o dever de memória que os proprietários quiseram ver preservado, o que interessa é o que é bonito de ver, aqui respira-se a ondulação do tempo e como ele desagua naquele conceito largo que designamos pela nossa pátria bem-amada, aquele salutar princípio de que somos um velho povo, tão antigo que as suas pedras nos ressoam pelos nossos passos perdidos onde pisamos presente e futuro.
Eis a sinagoga de Tomar, construída em meados do século XV, e que andou em bolandas desde que o Senhor D. Manuel I, o mesmo que mandou construir a edificação que embelezou para todo o sempre a Charola do Convento de Cristo, expulsou os judeus e nos privou deste ramo precioso da cultura, da ciência e dos negócios, Aqui sente-se a influência oriental e quem entra leva uma injeção de sabedoria sobre o simbolismo das colunas e capitéis, fala-se nas 12 tribos de Israel, nas 4 matriarcas de Israel, exalta-se a acústica do templo. O que mais me interessa é a harmonia do seu interior, a sua porta principal que está no prédio ao lado, e sair para a Judiaria, marcho impante por estes trabalhos, pelo desvelo da guia e pela luz que fica nestas imagens. O deus único fala por si.
(Continua)
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Notas do editor
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Guiné 63/74 - P14757: Parabéns a você (921): Juvenal Amado, ex-1.º Cabo Condutor Auto Rodas do BCAÇ 3872 (Guiné, 1971/73)
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Nota do editor
Último poste da série de 14 de junho de 2015 > Guiné 63/74 - P14743: Parabéns a você (920): Francisco Silva, ex-Alf Mil Art da CART 3492 e Pel Caç Nat 51 (Guiné, 1971/74)
Nota do editor
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terça-feira, 16 de junho de 2015
Guiné 63/74 - P14756: Em busca de... (259): Fotos do cinema de Bafatá, c. 1970 (António Martins, arquiteto, Bigarquitectura, Braga)
1. Mensagem do nosso leitor António Martins, arquiteto [, ESBAP, 1978], coordenador da equipa da Bigarquitectura [, foto à esquerda, cortesia da respetiva página na Net]
Data: 19 de maio de 2015 às 17:22
Assunto: cinema Bafatá
Caro Luis Graça
Não fui combatente na Guiné, porque, na altura em que eu teria que cumprir o serviço militar, já tinha acabado a guerra.
Tenho no entanto desde há 5 anos uma ligação forte com a Guiné e, como sou arquiteto, tenho um especial interesse pelos edifícios coloniais ainda existentes e que, infelizmente, estão, na sua maioria, senão destruídos, em muito mau estado de conservação.
Depois de ter visto o magnífico documentário Bafatá Filme Clube, de Silas Tiny, fiquei com imensa curiosidade sobre o edifício. Acontece que, após consulta intensiva na internet, não consegui obter imagens do edifício enquanto este era novo e estava em bom estado de conservação. Todas as fotografias que descobri reportam-se ao edifício em muito mau estado de conservação, ou mostram-no após as (pequenas) obras de recuperação que sofreu para as filmagens.
Data: 19 de maio de 2015 às 17:22
Assunto: cinema Bafatá
Caro Luis Graça
Não fui combatente na Guiné, porque, na altura em que eu teria que cumprir o serviço militar, já tinha acabado a guerra.
Tenho no entanto desde há 5 anos uma ligação forte com a Guiné e, como sou arquiteto, tenho um especial interesse pelos edifícios coloniais ainda existentes e que, infelizmente, estão, na sua maioria, senão destruídos, em muito mau estado de conservação.
Depois de ter visto o magnífico documentário Bafatá Filme Clube, de Silas Tiny, fiquei com imensa curiosidade sobre o edifício. Acontece que, após consulta intensiva na internet, não consegui obter imagens do edifício enquanto este era novo e estava em bom estado de conservação. Todas as fotografias que descobri reportam-se ao edifício em muito mau estado de conservação, ou mostram-no após as (pequenas) obras de recuperação que sofreu para as filmagens.
Um aparte: Curiosamente, consegui imagens interessantíssimas e da época, relativas ao edifício do Sporring Clube de Bafatá.
Assim sendo, agradecia que colocasse no seu blog este meu apelo, no sentido de que me sejam enviadas eventuais fotografias do cinema, isto é, logo após 1968/1970.
Desde já o meu obrigado.
Com os melhores cumprimentos,
A. Martins
big@bigarquitectura.pt
www.bigarquitectura.pt
Assim sendo, agradecia que colocasse no seu blog este meu apelo, no sentido de que me sejam enviadas eventuais fotografias do cinema, isto é, logo após 1968/1970.
Desde já o meu obrigado.
Com os melhores cumprimentos,
A. Martins
big@bigarquitectura.pt
www.bigarquitectura.pt
Recorde-se que o Fernando Gouveia (i) foi alf mil rec inf, Cmd Agr 2957, Bafatá, 1968/70; (ii) é autor do romance Na Kontra Ka Kontra, Porto, edição de autor, 2011; e (iii) é arquiteto, reformado, residente no Porto.
Foto: © Fernando Gouveia (2014).Todos os direitos reservados. [Edição: LG]
Foto: © Fernando Gouveia (2014).Todos os direitos reservados. [Edição: LG]
2. Comentário do editor:
Meu caro arquiteto, as nossas desculpas pelo atraso na publicação do seu pedido, mas a nossa equipa é curta de recursos (humanos, técnicos, financeiros...). Infelizmente, falta-nos,nos nossos arquivos, uma foto do cinema quando "jovem" (c. 1970)... Mas o nosso Fernando Gouveia, ele próprio arquiteto e residente no Porto, pode ser que dê uma ajuda preciosa... Ele é contemporâneo da construção do cinema, tendo estado em Bafatá em 1968/70. Vou contactá-lo. Ele tem um álbum fotográfico precioso da nossa querida "princesa do Geba", com muitas fotos, de resto, já aqui publicadas ao longo dos 11 anos de existência do blogue. Vamos também apelar aos nossos camaradas que passaram por (ou estiveram em) Bafatá nessa época.
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Nota do editor:
Último poste da série > 16 de junho de 2015 > Guiné 63/74 - P14754: Em busca de... (258): Joaquim Santos Viana procura camaradas da CCAV 1748 (Contuboel e Farim, 1967/69)
Nota do editor:
Último poste da série > 16 de junho de 2015 > Guiné 63/74 - P14754: Em busca de... (258): Joaquim Santos Viana procura camaradas da CCAV 1748 (Contuboel e Farim, 1967/69)
Guiné 63/74 - P14755: Caderno de Memórias de A. Murta, ex-Alf Mil da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4513 (8): Início de Maio de 1973 – Os devaneios e a crueza da guerra
1. Em mensagem do dia 10 de Junho de 2015, o nosso camarada António Murta, ex-Alf Mil Inf.ª Minas e Armadilhas da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4513 (Aldeia Formosa, Nhala e Buba, 1973/74), enviou-nos a 8.ª página do seu Caderno de Memórias.
Nos primeiros dias de Maio de 1973, associei-me a outro camarada e comprei um “estúdio fotográfico” a uma “sociedade” de alguns graduados da Companhia que viemos render. Não temos qualquer formação em fotografia mas o gosto e uma mini formação dada pelos antigos donos devem ser suficientes e, como eles dizem, aprendendo com os erros, pode ser que consigamos ter sucesso.
[Grande ingenuidade! Além do mais, nesta fase da comissão nem sequer possuía máquina fotográfica e o outro camarada também não. Acreditámos que seria suficiente processar os rolos dos “clientes” e depois vender-lhes as fotografias. É certo que, nalguns casos, pedíamos uma máquina emprestada e fazíamos tudo. Grande parte das fotografias em papel que possuo hoje, fui eu que as fiz e processei. Mas a ideia era aguentar a situação até às minhas primeiras férias e na Metrópole comprar uma máquina].
Pessoalmente, ainda que sem meios, sempre tive o gosto pela fotografia, talvez por as artes em geral fazerem parte do meu universo desde miúdo. Se conseguirmos pagar o investimento, tanto melhor. A maioria do pessoal da Companhia, como é evidente, são soldados sem grandes recursos, mas todos gostam de enviar uma ou outra fotografia à família e, para isso, arranjam-se sempre uns tostões. O “estúdio” está instalado numa pequena palhota da tabanca de Nhala, mas próxima do aquartelamento. Dispõe do equipamento e “mobiliário” essenciais e dos produtos reagentes e papel que, quando acabam, se mandam vir de Bissau. O ampliador eléctrico está em boas condições, apesar da muita humidade. Já percebi que os líquidos (revelador e fixador) devem ser usados a temperaturas controladas, mas aqui, mesmo de noite, é melhor esquecer o termómetro. Como também não há água corrente, vai ser preciso muito engenho e paciência nas lavagens do fim do processo.
[O tempo mostrou que o engenho e a paciência não foram suficientes. Com o passar dos anos as fotografias foram ficando cada vez mais brancas, resultado das más lavagens, com algumas boas excepções].
Mulheres de Nhala em data provável anterior a 1973. Revelei e fixei esta fotografia (e outras), a partir de restos de negativos deixados pelos anteriores donos do “estúdio”.
Autor desconhecido.
Estamos no início de Maio, recém-chegados ao interior da Guiné, e já a ideia de fazer do aquartelamento de Nhala a nossa casa, aconchego e conforto a cada regresso operacional, começa a parecer um devaneio. Mais ainda a ideia de fazer fotografia ou ter sossego para qualquer outra actividade lúdica: só devaneios.
Pairam negras e espessas nuvens sobre o futuro próximo da nossa Companhia e de todo o Batalhão. Batalhão inicialmente instalado para substituir no terreno o BCAÇ 3852, (que vai ter de prolongar a sua comissão), mas que já tem instruções para passar a actuar como força de intervenção, orientada para a região de Nhacobá. Ora, as notícias que nos chegam diariamente dessa região - aqui tão próxima - são as mais desanimadoras: minas, flagelações, contactos directos, mortos e feridos. Começou por falar-se na saída de um grupo de combate de Nhala em reforço de uma unidade dessa região, mas não vai ser bem assim: todos sairão, alternando-se.
[Julgo que foi neste período de grande constrangimento, que o Cap. B. da C. me comunicou uma informação que me deixou de rastos: a nível do território (todo?) estava a ser organizada uma grande equipa de sapadores e especialistas de minas e armadilhas para intervirem numa operação prolongada de desminagem nas matas do Cantanhês. Na altura nem sabia para que lado ficava isso, mas o meu nome estava indicado para integrar a equipa. Para me animar, o capitão disse-me que ia fazer todos os possíveis para o meu nome ser retirado. Não recordo o desenvolvimento desta acção no Cantanhês, tão pouco se chegou a acontecer, mas a verdade é que eu nunca fui convocado].
Nhala, Maio de 1973 – Eu e o meu estado de alma. Que era mais ou menos o retrato de todos, porque eu não era mais egocêntrico do que os outros.
[O meu estado de alma era tal, que em 10 de Maio de 1973 escrevia para a Metrópole uma carta azeda que, só hoje, dez anos passados (1983), me apercebo de como deveria ter sido duro lê-la cá, a frio, sem ter a noção do moral que imperava em Nhala quando ela foi escrita. Depois de fazer alguns comentários a umas notícias sobre o 1.º de Maio em Portugal (o último em ditadura) acabadas de receber numa carta que tinha à frente, dizia assim:
“ (...) Ultimamente ando com os nervos arrasados não sei porquê (!), e só me apetecia deitar a baixo, de uma vez para sempre, esta merda aqui e essa merda aí e toda a merda entre aí e aqui”.
Isto a uma dezena de dias de ter chegado a Nhala, pois as decepções e as más notícias estavam a acontecer com um ritmo vertiginoso. Creio que foi a partir desta carta que deixei de escrever para casa e para a namorada, atitude inqualificável, mas que na altura era a minha vontade de rotura com tudo e com todos, excepto os camaradas de infortúnio que tantas vezes me animaram. Recordo que, muito mais tarde, foi o Cap. V. da G., Cmdt. da Companhia de Cumbijã, que entretanto aí tinha conhecido, que, num regresso de férias da Metrópole me abordou em Nhala, onde me encontrava na ocasião, e me deu um duro e merecido correctivo, instigando-me a que escrevesse rapidamente para casa, onde todos estavam desesperados. Isto porque, antes de ter deixado de escrever, dissera ao meu pai que conhecera ali na zona o capitão V. da G. que era de Buarcos e que em determinada data estaria de férias na terra. E o meu pai, coitado, procurou-o para saber se algo me tinha acontecido. Ainda hoje tenho uma enorme dívida de gratidão para com o V. da G].
14 de Maio de 1973 (segunda-feira)
Até agora tudo normal, mas vai mudar. Dois grupos de combate hão-de ir para Aldeia Formosa: fizemos sorteio e calhou-me o azar a mim e ao alferes T.B. Em princípio previa-se que íamos tomar parte, directa ou indirectamente, numa operação de grande envergadura. Fala-se em 1500 homens.
15 de Maio de 1073 (terça-feira)
Saímos à tarde para Aldeia Formosa sem outro armamento que não fosse a G3, pensando requisitar à chegada a Aldeia, pelo menos morteiros de 60 mm, lança-granadas, granadas para as respectivas armas e dilagramas. À passagem por Mampatá fazem-nos descer da coluna, a mim e ao T.B. com os nossos Grupos de Combate, mais dois GC dos “velhinhos” de Nhala (CCAÇ 3400), e dizem-nos que iremos ficar aqui por tempo indeterminado. Em pouco tempo arrasei os poucos nervos que me restavam: ficamos aqui sem saber por quanto tempo, sem o armamento necessário, a maior parte do pessoal sem dinheiro e todos apenas com o que trazemos vestido. Soubemos depois que vínhamos reforçar a Companhia de Mampatá em serviços ao aquartelamento, na segurança às máquinas da Engenharia na estrada (para Nhacobá) e no reforço do aquartelamento de Colibuía (entre Mampatá e Cumbijã). À noite houve que sortear a ida de dois grupos para Colibuía e dois para ficarem em Mampatá: foi o T. B. com o seu grupo e mais um grupo da CCAÇ 3400 de Nhala e fiquei eu com o meu grupo mais outro da CCAÇ 3400 comandado por dois furriéis. Fiquei para os serviços ao aquartelamento e escoltas a Aldeia Formosa, e o outro grupo para a segurança às obras da estrada de Nhacobá. Posteriormente trocaremos de funções.
(continua)
Texto e fotos: © António Murta
____________
Nota do editor
Último poste da série de 9 de junho de 2015 > Guiné 63/74 - P14720: Caderno de Memórias de A. Murta, ex-Alf Mil da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4513 (7): Levantar minas. Ponte interrompida
CADERNO DE MEMÓRIAS
A. MURTA – GUINÉ, 1973-74
8 -
Início de Maio de 1973 - Os devaneios e a crueza da guerra
Nos primeiros dias de Maio de 1973, associei-me a outro camarada e comprei um “estúdio fotográfico” a uma “sociedade” de alguns graduados da Companhia que viemos render. Não temos qualquer formação em fotografia mas o gosto e uma mini formação dada pelos antigos donos devem ser suficientes e, como eles dizem, aprendendo com os erros, pode ser que consigamos ter sucesso.
[Grande ingenuidade! Além do mais, nesta fase da comissão nem sequer possuía máquina fotográfica e o outro camarada também não. Acreditámos que seria suficiente processar os rolos dos “clientes” e depois vender-lhes as fotografias. É certo que, nalguns casos, pedíamos uma máquina emprestada e fazíamos tudo. Grande parte das fotografias em papel que possuo hoje, fui eu que as fiz e processei. Mas a ideia era aguentar a situação até às minhas primeiras férias e na Metrópole comprar uma máquina].
Pessoalmente, ainda que sem meios, sempre tive o gosto pela fotografia, talvez por as artes em geral fazerem parte do meu universo desde miúdo. Se conseguirmos pagar o investimento, tanto melhor. A maioria do pessoal da Companhia, como é evidente, são soldados sem grandes recursos, mas todos gostam de enviar uma ou outra fotografia à família e, para isso, arranjam-se sempre uns tostões. O “estúdio” está instalado numa pequena palhota da tabanca de Nhala, mas próxima do aquartelamento. Dispõe do equipamento e “mobiliário” essenciais e dos produtos reagentes e papel que, quando acabam, se mandam vir de Bissau. O ampliador eléctrico está em boas condições, apesar da muita humidade. Já percebi que os líquidos (revelador e fixador) devem ser usados a temperaturas controladas, mas aqui, mesmo de noite, é melhor esquecer o termómetro. Como também não há água corrente, vai ser preciso muito engenho e paciência nas lavagens do fim do processo.
[O tempo mostrou que o engenho e a paciência não foram suficientes. Com o passar dos anos as fotografias foram ficando cada vez mais brancas, resultado das más lavagens, com algumas boas excepções].
Mulheres de Nhala em data provável anterior a 1973. Revelei e fixei esta fotografia (e outras), a partir de restos de negativos deixados pelos anteriores donos do “estúdio”.
Autor desconhecido.
Estamos no início de Maio, recém-chegados ao interior da Guiné, e já a ideia de fazer do aquartelamento de Nhala a nossa casa, aconchego e conforto a cada regresso operacional, começa a parecer um devaneio. Mais ainda a ideia de fazer fotografia ou ter sossego para qualquer outra actividade lúdica: só devaneios.
Pairam negras e espessas nuvens sobre o futuro próximo da nossa Companhia e de todo o Batalhão. Batalhão inicialmente instalado para substituir no terreno o BCAÇ 3852, (que vai ter de prolongar a sua comissão), mas que já tem instruções para passar a actuar como força de intervenção, orientada para a região de Nhacobá. Ora, as notícias que nos chegam diariamente dessa região - aqui tão próxima - são as mais desanimadoras: minas, flagelações, contactos directos, mortos e feridos. Começou por falar-se na saída de um grupo de combate de Nhala em reforço de uma unidade dessa região, mas não vai ser bem assim: todos sairão, alternando-se.
[Julgo que foi neste período de grande constrangimento, que o Cap. B. da C. me comunicou uma informação que me deixou de rastos: a nível do território (todo?) estava a ser organizada uma grande equipa de sapadores e especialistas de minas e armadilhas para intervirem numa operação prolongada de desminagem nas matas do Cantanhês. Na altura nem sabia para que lado ficava isso, mas o meu nome estava indicado para integrar a equipa. Para me animar, o capitão disse-me que ia fazer todos os possíveis para o meu nome ser retirado. Não recordo o desenvolvimento desta acção no Cantanhês, tão pouco se chegou a acontecer, mas a verdade é que eu nunca fui convocado].
Nhala, Maio de 1973 – Eu e o meu estado de alma. Que era mais ou menos o retrato de todos, porque eu não era mais egocêntrico do que os outros.
[O meu estado de alma era tal, que em 10 de Maio de 1973 escrevia para a Metrópole uma carta azeda que, só hoje, dez anos passados (1983), me apercebo de como deveria ter sido duro lê-la cá, a frio, sem ter a noção do moral que imperava em Nhala quando ela foi escrita. Depois de fazer alguns comentários a umas notícias sobre o 1.º de Maio em Portugal (o último em ditadura) acabadas de receber numa carta que tinha à frente, dizia assim:
“ (...) Ultimamente ando com os nervos arrasados não sei porquê (!), e só me apetecia deitar a baixo, de uma vez para sempre, esta merda aqui e essa merda aí e toda a merda entre aí e aqui”.
Isto a uma dezena de dias de ter chegado a Nhala, pois as decepções e as más notícias estavam a acontecer com um ritmo vertiginoso. Creio que foi a partir desta carta que deixei de escrever para casa e para a namorada, atitude inqualificável, mas que na altura era a minha vontade de rotura com tudo e com todos, excepto os camaradas de infortúnio que tantas vezes me animaram. Recordo que, muito mais tarde, foi o Cap. V. da G., Cmdt. da Companhia de Cumbijã, que entretanto aí tinha conhecido, que, num regresso de férias da Metrópole me abordou em Nhala, onde me encontrava na ocasião, e me deu um duro e merecido correctivo, instigando-me a que escrevesse rapidamente para casa, onde todos estavam desesperados. Isto porque, antes de ter deixado de escrever, dissera ao meu pai que conhecera ali na zona o capitão V. da G. que era de Buarcos e que em determinada data estaria de férias na terra. E o meu pai, coitado, procurou-o para saber se algo me tinha acontecido. Ainda hoje tenho uma enorme dívida de gratidão para com o V. da G].
14 de Maio de 1973 (segunda-feira)
Até agora tudo normal, mas vai mudar. Dois grupos de combate hão-de ir para Aldeia Formosa: fizemos sorteio e calhou-me o azar a mim e ao alferes T.B. Em princípio previa-se que íamos tomar parte, directa ou indirectamente, numa operação de grande envergadura. Fala-se em 1500 homens.
15 de Maio de 1073 (terça-feira)
Saímos à tarde para Aldeia Formosa sem outro armamento que não fosse a G3, pensando requisitar à chegada a Aldeia, pelo menos morteiros de 60 mm, lança-granadas, granadas para as respectivas armas e dilagramas. À passagem por Mampatá fazem-nos descer da coluna, a mim e ao T.B. com os nossos Grupos de Combate, mais dois GC dos “velhinhos” de Nhala (CCAÇ 3400), e dizem-nos que iremos ficar aqui por tempo indeterminado. Em pouco tempo arrasei os poucos nervos que me restavam: ficamos aqui sem saber por quanto tempo, sem o armamento necessário, a maior parte do pessoal sem dinheiro e todos apenas com o que trazemos vestido. Soubemos depois que vínhamos reforçar a Companhia de Mampatá em serviços ao aquartelamento, na segurança às máquinas da Engenharia na estrada (para Nhacobá) e no reforço do aquartelamento de Colibuía (entre Mampatá e Cumbijã). À noite houve que sortear a ida de dois grupos para Colibuía e dois para ficarem em Mampatá: foi o T. B. com o seu grupo e mais um grupo da CCAÇ 3400 de Nhala e fiquei eu com o meu grupo mais outro da CCAÇ 3400 comandado por dois furriéis. Fiquei para os serviços ao aquartelamento e escoltas a Aldeia Formosa, e o outro grupo para a segurança às obras da estrada de Nhacobá. Posteriormente trocaremos de funções.
(continua)
Texto e fotos: © António Murta
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Nota do editor
Último poste da série de 9 de junho de 2015 > Guiné 63/74 - P14720: Caderno de Memórias de A. Murta, ex-Alf Mil da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4513 (7): Levantar minas. Ponte interrompida
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Guiné 63/74 - P14754: Em busca de... (258): Joaquim Santos Viana procura camaradas da CCAV 1748 (Contuboel e Farim, 1967/69)
1. No passado dia 11 de Maio de 2015 recebemos de Mário Miguel Rangel a seguinte mensagem:
Exmo. Sr. Luís Graça e restantes Camaradas,
Bom dia,
O meu nome é Mário Miguel Rangel, sou do Porto, tenho 32 anos e venho por este meio contactar convosco devido às conversas que tenho mantido com o meu sogro nos últimos tempos.
O meu sogro, Joaquim dos Santos Viana, foi combatente na Guiné, Companhia de Cavalaria 1748, de Julho de 1967 a Junho de1969, e nas conversas que temos mantido tem-me transmitido a sua tristeza devido ao facto de, ao longos destes anos, não ter conseguido reunir-se com os camaradas com quem partilhou aqueles anos.
Transmitiu-me que, em tempos, tentou conseguir o contacto de alguns mas os resultados não foram satisfatórios e, ao que parece, a referida companhia não tem nenhuma "organização" criada.
Face ao exposto, gostaria de vos pedir, por favor, a vossa ajuda no sentido de poder identificar camarada(s) do meu sogro e possivelmente organizar algum convívio.
Agradeço desde já toda a ajuda que me possam oferecer.
Sem outro assunto de momento
Com os melhores cumprimentos
Mário Miguel Rangel
E-mail: mariomiguelrangel@gmail.com
2. No dia14 foi enviada a seguinte mensagem/resposta:
Caro amigo Mário Rangel
Na verdade não temos nenhuma referência à CCAV 1748 no nosso Blogue, logo pouco podemos ajudar.
Pesquisando na net encontrei na página do nosso camarada Jorge Santos um pedido de contacto de Francisco Fartouce (CCAV 1748), que tem o telemóvel 964 506 350.
Encontrei também referências a um frequentador dos almoços das quarta-feiras da Tabanca de Matosinhos, o Capitão Reformado da GNR, Leite Rodrigues, que foi Alferes na CCAV 1748, que foi evacuado por ter sido ferido em combate.
Pode ler aqui: http://tabancapequenadematosinhos.blogspot.pt/2010/01/310-encontro-de-bons-camaradas.html -
Tem uma foto dele actual, não sei se ajuda.
Se autorizar que se publique a sua mensagem no sentido de tentar encontrar mais alguém, talvez não fosse pior mandar mais elementos sobre o senhor seu sogro, como:
Posto Militar, Especialidade e como era mais conhecido. Ajudaria também uma foto da altura.
Se quiserem posso tentar arranjar um contacto do Cap Leite Rodrigues.
Ao vosso dispor
Carlos Vinhal
3. Que deu origem a esta mensagem de 31 de Maio:
Estimado Carlos,
Muito obrigado pela sua resposta.
Antes de mais peço-lhe desculpa por não ter respondido antes mas estive fora do país em trabalho e só regressei este fim de semana.
Agradeço que publique a minha mensagem, pois assim, pode ser que seja possível encontrar mais camaradas.
Anexo envio-lhe uma foto do meu sogro.
Um grande Abraço e mais uma vez o nosso muito obrigado pela sua ajuda.
Mário Miguel Rangel
4. Comentário do editor
Aqui fica o pedido do nosso camarada Joaquim dos Santos Viana, da CCAV 1748, no sentido de encontrar os seus camaradas de armas.
Sobre a CCAV 1748 publica-se digitalização da página 507 do 7.º Volume - Fichas das Unidades - Tomo II - Guiné, da Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África (1961-1974) - Edição do Estado-Maior do Exército.
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Nota do editor
Último poste da série de 29 de abril de 2015 > Guiné 63/74 - P14540: Em busca de... (257): Elementos do conjunto musical "Os Bambadincas": o Toni (cantor romântico), o Serafim (baterista), o Peixoto (viola ritmo e cantor pop) e mais um outro 1º cabo, que era viola baixo...Eu sou o o "Braga", viola solo, e queria muito abraçar-vos, na Trofa, no próximo dia 30 de maio, por ocasião do convivio do pessoal de Bambadinca 1968/71
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