terça-feira, 16 de junho de 2015

Guiné 63/74 - P14755: Caderno de Memórias de A. Murta, ex-Alf Mil da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4513 (8): Início de Maio de 1973 – Os devaneios e a crueza da guerra

1. Em mensagem do dia 10 de Junho de 2015, o nosso camarada António Murta, ex-Alf Mil Inf.ª Minas e Armadilhas da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4513 (Aldeia Formosa, Nhala e Buba, 1973/74), enviou-nos a 8.ª página do seu Caderno de Memórias.


CADERNO DE MEMÓRIAS
A. MURTA – GUINÉ, 1973-74

8 -  Início de Maio de 1973 - Os devaneios e a crueza da guerra

Nos primeiros dias de Maio de 1973, associei-me a outro camarada e comprei um “estúdio fotográfico” a uma “sociedade” de alguns graduados da Companhia que viemos render. Não temos qualquer formação em fotografia mas o gosto e uma mini formação dada pelos antigos donos devem ser suficientes e, como eles dizem, aprendendo com os erros, pode ser que consigamos ter sucesso.
[Grande ingenuidade! Além do mais, nesta fase da comissão nem sequer possuía máquina fotográfica e o outro camarada também não. Acreditámos que seria suficiente processar os rolos dos “clientes” e depois vender-lhes as fotografias. É certo que, nalguns casos, pedíamos uma máquina emprestada e fazíamos tudo. Grande parte das fotografias em papel que possuo hoje, fui eu que as fiz e processei. Mas a ideia era aguentar a situação até às minhas primeiras férias e na Metrópole comprar uma máquina].

Pessoalmente, ainda que sem meios, sempre tive o gosto pela fotografia, talvez por as artes em geral fazerem parte do meu universo desde miúdo. Se conseguirmos pagar o investimento, tanto melhor. A maioria do pessoal da Companhia, como é evidente, são soldados sem grandes recursos, mas todos gostam de enviar uma ou outra fotografia à família e, para isso, arranjam-se sempre uns tostões. O “estúdio” está instalado numa pequena palhota da tabanca de Nhala, mas próxima do aquartelamento. Dispõe do equipamento e “mobiliário” essenciais e dos produtos reagentes e papel que, quando acabam, se mandam vir de Bissau. O ampliador eléctrico está em boas condições, apesar da muita humidade. Já percebi que os líquidos (revelador e fixador) devem ser usados a temperaturas controladas, mas aqui, mesmo de noite, é melhor esquecer o termómetro. Como também não há água corrente, vai ser preciso muito engenho e paciência nas lavagens do fim do processo.
[O tempo mostrou que o engenho e a paciência não foram suficientes. Com o passar dos anos as fotografias foram ficando cada vez mais brancas, resultado das más lavagens, com algumas boas excepções].


Mulheres de Nhala em data provável anterior a 1973. Revelei e fixei esta fotografia (e outras), a partir de restos de negativos deixados pelos anteriores donos do “estúdio”. 
Autor desconhecido.

Estamos no início de Maio, recém-chegados ao interior da Guiné, e já a ideia de fazer do aquartelamento de Nhala a nossa casa, aconchego e conforto a cada regresso operacional, começa a parecer um devaneio. Mais ainda a ideia de fazer fotografia ou ter sossego para qualquer outra actividade lúdica: só devaneios.
Pairam negras e espessas nuvens sobre o futuro próximo da nossa Companhia e de todo o Batalhão. Batalhão inicialmente instalado para substituir no terreno o BCAÇ 3852, (que vai ter de prolongar a sua comissão), mas que já tem instruções para passar a actuar como força de intervenção, orientada para a região de Nhacobá. Ora, as notícias que nos chegam diariamente dessa região - aqui tão próxima - são as mais desanimadoras: minas, flagelações, contactos directos, mortos e feridos. Começou por falar-se na saída de um grupo de combate de Nhala em reforço de uma unidade dessa região, mas não vai ser bem assim: todos sairão, alternando-se.
[Julgo que foi neste período de grande constrangimento, que o Cap. B. da C. me comunicou uma informação que me deixou de rastos: a nível do território (todo?) estava a ser organizada uma grande equipa de sapadores e especialistas de minas e armadilhas para intervirem numa operação prolongada de desminagem nas matas do Cantanhês. Na altura nem sabia para que lado ficava isso, mas o meu nome estava indicado para integrar a equipa. Para me animar, o capitão disse-me que ia fazer todos os possíveis para o meu nome ser retirado. Não recordo o desenvolvimento desta acção no Cantanhês, tão pouco se chegou a acontecer, mas a verdade é que eu nunca fui convocado].

Nhala, Maio de 1973 – Eu e o meu estado de alma. Que era mais ou menos o retrato de todos, porque eu não era mais egocêntrico do que os outros.

[O meu estado de alma era tal, que em 10 de Maio de 1973 escrevia para a Metrópole uma carta azeda que, só hoje, dez anos passados (1983), me apercebo de como deveria ter sido duro lê-la cá, a frio, sem ter a noção do moral que imperava em Nhala quando ela foi escrita. Depois de fazer alguns comentários a umas notícias sobre o 1.º de Maio em Portugal (o último em ditadura) acabadas de receber numa carta que tinha à frente, dizia assim: 
“ (...) Ultimamente ando com os nervos arrasados não sei porquê (!), e só me apetecia deitar a baixo, de uma vez para sempre, esta merda aqui e essa merda aí e toda a merda entre aí e aqui”. 
Isto a uma dezena de dias de ter chegado a Nhala, pois as decepções e as más notícias estavam a acontecer com um ritmo vertiginoso. Creio que foi a partir desta carta que deixei de escrever para casa e para a namorada, atitude inqualificável, mas que na altura era a minha vontade de rotura com tudo e com todos, excepto os camaradas de infortúnio que tantas vezes me animaram. Recordo que, muito mais tarde, foi o Cap. V. da G., Cmdt. da Companhia de Cumbijã, que entretanto aí tinha conhecido, que, num regresso de férias da Metrópole me abordou em Nhala, onde me encontrava na ocasião, e me deu um duro e merecido correctivo, instigando-me a que escrevesse rapidamente para casa, onde todos estavam desesperados. Isto porque, antes de ter deixado de escrever, dissera ao meu pai que conhecera ali na zona o capitão V. da G. que era de Buarcos e que em determinada data estaria de férias na terra. E o meu pai, coitado, procurou-o para saber se algo me tinha acontecido. Ainda hoje tenho uma enorme dívida de gratidão para com o V. da G].


14 de Maio de 1973 (segunda-feira)

Até agora tudo normal, mas vai mudar. Dois grupos de combate hão-de ir para Aldeia Formosa: fizemos sorteio e calhou-me o azar a mim e ao alferes T.B. Em princípio previa-se que íamos tomar parte, directa ou indirectamente, numa operação de grande envergadura. Fala-se em 1500 homens.


15 de Maio de 1073 (terça-feira)

Saímos à tarde para Aldeia Formosa sem outro armamento que não fosse a G3, pensando requisitar à chegada a Aldeia, pelo menos morteiros de 60 mm, lança-granadas, granadas para as respectivas armas e dilagramas. À passagem por Mampatá fazem-nos descer da coluna, a mim e ao T.B. com os nossos Grupos de Combate, mais dois GC dos “velhinhos” de Nhala (CCAÇ 3400), e dizem-nos que iremos ficar aqui por tempo indeterminado. Em pouco tempo arrasei os poucos nervos que me restavam: ficamos aqui sem saber por quanto tempo, sem o armamento necessário, a maior parte do pessoal sem dinheiro e todos apenas com o que trazemos vestido. Soubemos depois que vínhamos reforçar a Companhia de Mampatá em serviços ao aquartelamento, na segurança às máquinas da Engenharia na estrada (para Nhacobá) e no reforço do aquartelamento de Colibuía (entre Mampatá e Cumbijã). À noite houve que sortear a ida de dois grupos para Colibuía e dois para ficarem em Mampatá: foi o T. B. com o seu grupo e mais um grupo da CCAÇ 3400 de Nhala e fiquei eu com o meu grupo mais outro da CCAÇ 3400 comandado por dois furriéis. Fiquei para os serviços ao aquartelamento e escoltas a Aldeia Formosa, e o outro grupo para a segurança às obras da estrada de Nhacobá. Posteriormente trocaremos de funções.

(continua)

Texto e fotos: © António Murta
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Nota do editor

Último poste da série de 9 de junho de 2015 > Guiné 63/74 - P14720: Caderno de Memórias de A. Murta, ex-Alf Mil da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4513 (7): Levantar minas. Ponte interrompida

3 comentários:

Luís Graça disse...

António, a foto das bajudas de Nhala é uma espanto... Não resisti à tentação de a "reeditar", mantendo a "original"... Parabéns pelas tuas confidências sobre a "paixão" pela fotografia... Tens, por certo, mais "material", com interesse documental, que vais querer partilhar connosco... Parabéns também por partilhares os teus "pensamentos íntimos"... Também passei por estes "terríveis estados de alma" que me levaram a não escrever a ninguém... Que crueldade para com aqueles que nos amavam, a começar pelos nossos pais e manos/as...

Teu leitor sempre atento, Luís Graça.

José Carlos Gabriel disse...

Amigo António Murta.

Tenho a certeza que as fotos a PB que tenho foram reveladas no vosso estúdio?. A partir de certa altura o rádio telegrafista Luís Oliveira começou a tirar uma fotos com a máquina dele sendo os negativos enviados para a metrópole e depois de revelados as fotos eram enviadas para Nhala (estas já a cores). No decurso das tuas memórias ainda irás com certeza falar de um episódio que se passou em Nhala quando as máquinas de engenharia lá estavam em frente ao arame farpado recolhidas depois de terminarem mais um dia de trabalho na altura da construção da estrada Aldeia Formosa-Buba. Tenho uma vaga ideia do que aconteceu mas como não tenho a certeza prefiro aguardar que alguém com a memória mais clarificada possa falar neste episódio e eu avive a minha cabecinha. Falas em Cumbijã e relembro uma altura (não sei se em 1973 ou já em 1974) ter ouvido no posto de rádio juntamente com outros camaradas pedidos de apoio de fogo em linguagem clara e bem picante e de uma aflição estrema porque estavam a ser altamente bombardeados. Sei que nós em Nhala só ouvíamos os rebentamentos bem longe mas com uma frequência assustadora. Pela primeira vez e não tenho vergonha de o dizer senti medo daquela guerra. Agora assolou-me uma dúvida não terá sido em Nhacobá ?. porque nessa altura também era uma zona muito difícil. Quanto às BAJUDAS de Nhala lembro-me na foto da do centro e da que está á direita. Cá fico a aguardar que escrevas mais algumas memórias.
Um abraço.

José Carlos Gabriel

Anónimo disse...

Caro Murta:

Ao falares na CCaç 3400, quero perguntar-te se te lembras do Fur. João Calado que esteve de facto em Mampatá, por essa altura com um grupo que não tinha alferes. julgo que, a esse grupo pertencia também o Fur.Diogo.
Já agora aproveito para te informar que o convívio da nossa Cart. 6250 vai ocorrer em Bustos, já no próximo dia 11 de Julho (caso estejas interessado em rever o nosso pessoal)

Um abração
Carvalho de Mampatá