Vigésimo primeiro episódio da série "Libertando-me" do nosso camarada Tony Borié, ex-1.º Cabo Operador Cripto do CMD AGR 16, Mansoa, 1964/66.
Glória, Lola, a Ruça (2)
Hoje andamos de bicicleta, passámos pela praia, não
vimos a Glória, a quem também chamavam “Lola” e, às
vezes, “Ruça”, mas vamos continuar com a sua história, cá
vai.
Os anos foram passando, a Glória, que também era a
“Lola” e às vezes a “Ruça”, frequentou a escola primária
de Castanheira do Vouga, vindo fazer o exame de
segundo grau na escola de Águeda, onde obteve a
classificação de quinze valores, já estava crescida,
começou a ficar com uns peitos saídos, umas ancas
largas, as pernas altas, as feições da cara modificaram-se,
os lábios carnudos e rosados, o cabelo comprido com
as tais madeixas louras, os vestidos já lhe eram curtos,
quase toda a sua roupa lhe era curta, estava uma
rapariga bonita.
Os rapazes na aldeia diziam:
- A “Ruça”, está boa como milho!
O pai Aniceto, quando ouvia isto, corria com um pau atrás
dos rapazes, dizendo:
- “Ruça”, é a burra da tua mãe!
Quase todos os rapazes andavam de olho nela, ela não
prestava atenção a nenhum, excepto ao Jorge, filho do
ferreiro. O Jorge era mais velho do que ela uns meses,
era um rapaz franzino, um pouco envergonhado, não
convivia muito com os outros rapazes, pois ajudava o pai,
o senhor Silvestre, na forja e, mais tarde, era ele que fazia
as contas da oficina de ferreiro, eram só dois filhos, ele e
uma irmã mais nova que tinha vindo mais tarde.
Andou na escola com a Glória, ficava triste e, às vezes,
até se envolvia com os outros rapazes, quando estes lhe
chamavam “Ruça”. Não se importava muito que lhe
chamassem “Lola”, até gostava, mas “Ruça”, isso não,
ficava com alguma fúria e, quando se envolvia com
alguém, perdia sempre, acabava por andar sempre com
marcas na cara e no corpo, era por isso que não convivia
com muitos dos rapazes da sua idade.
Quando se aproximava da Glória, ficava um pouco
embaraçado, mas assim que começasse a falar com ela,
todo o receio desaparecia, sentia-se muito bem na
companhia dela, e ele percebia que a Glória também
largava tudo para estar com ele. Iam-se vendo um ao
outro, até que certo dia, ela lhe disse:
- Oh Jorge, nós gostamos tanto um do outro, temos que
começar a namorar.
Ele, nem a deixou acabar de falar, disse, com o ar mais
feliz do mundo:
- Oh Glória, pois tu, já és a minha namorada há muitos
anos, não sei se já percebeste, pois eu sinto muitos
ciúmes quando algum rapaz olha para ti.
Ela, com ar também feliz, dá-lhe um beijo na face, o que o
fez corar. Passaram a ser namorados, a partir dessa
altura, aprenderam um com o outro todos os segredos do
amor. Tanto o pai Aniceto, como o senhor Silvestre, viram
este namoro com bons olhos, só a mãe Madalena, é que
ficou um pouco furiosa, pois via que ia perder a “mãe” dos
seus filhos. Não perdia oportunidade para a repreender, e
às vezes até a ameaçava com pancada se ela perdia
tempo a falar com o Jorge e, deste modo, alguma tarefa
ficava para trás, noutras palavras, fazia-lhe a vida
negra.
Os irmãos, alguns já tinham saído da escola,
continuavam a ver na Glória, a sua mãe, chamavam-lhe
“Lola”, portanto ajudavam-na, e diziam-lhe:
- Oh “Lola”, vai namorar, que nós fazemos todas as tuas
tarefas.
A Glória ficava algumas horas na conversa com o Jorge,
o Aniceto e a Madalena, talvez preocupados, com a lida
da lavoura, em arranjar o dinheiro para todas as
despesas, mais o compromisso do pagamento aos
senhores donos das terras que eles cultivavam, não
reparavam que a Glória, já crescida, precisava de roupa
nova e melhor. Como era a única rapariga na família, pois
o último irmão também nasceu rapaz, era a que vestia
diferente, alguma roupa que crescia da mãe, uns
vestiditos de chita, umas camisolitas e uns sapatitos de
lona, comprados na feira, que ao sábado se realizava na
vila de Águeda, lá ia andando, ninguém reparava, que
como a roupa lhe ia ficando mais curta, mais sobressaíam
as virtudes que o criador lhe tinha dado, em outras
palavras, quanto menos roupa tinha, mais jeitosa era à
vista de todos.
Mas os pais tinham mais com que se preocupar, a Glória
estava em casa para trabalhar e tomar conta dos irmãos,
era como se fosse um objecto da casa, daquele sistema
implantado desde sempre. O senhor Silvestre,
preocupado com o futuro do seu filho Jorge, certo dia
vem à fala com o Aniceto e diz-lhe:
Oh Aniceto, temos que casar os garotos. O meu Jorge
já está próximo da idade de ir “às sortes”, queria ver se o
livrava da tropa, pois se for militar vai acabar na guerra
do ultramar, e isso nunca vai acontecer, pelo menos
enquanto eu for vivo.
Toda a gente no lugar sabia que o senhor Silvestre era
“do contra”, não gostava do regime, uma certa vez até foi
interrogado pela polícia do estado. Ele, como sabia as
dificuldades do filho Jorge, franzino, pouco corajoso, mas
com alguma inteligência, pois sabia de números, até lhe
tratava das contas da oficina, na companhia da Glória iria
ser outro homem.
A Glória era trabalhadeira, habituada a sacrifícios, criou
os irmãos, vestia qualquer roupa, respondia aos rapazes
da aldeia, quando lhe atiravam algum piropo mais
atrevido, dizia:
- Vai dizer isso à tua irmã, cabrão!
A Glória era assim, desenvolta, activa e habituada a
andar descalça, a acudir aos pedidos e choros dos
irmãos, enfim habituada a sofrer. Tinha sido criada no
meio de dificuldades, ela nem sabia o outro lado bom da
vida, tudo isto era normal para ela.
Na aldeia dizia-se:
- A “Ruça” vai ser uma mulher de armas!
O senhor Silvestre, pai do Jorge, também era um homem
de trabalho, tinha algumas economias, tinha na ideia
casar o filho e mandá-lo para fora do país, para fugir ao
serviço militar, tinha alguns contactos e conhecimentos na
vila, dos “amigos do contra”. A ideia era casar o filho, e
com a desculpa da “lua de mel”, metê-los num avião para
o México, mais propriamente para a colónia de férias de
Acapulco. Daí, com os seus contactos, iriam atravessar a
fronteira, clandestinos, para o outro lado, ou seja para os
Estados Unidos. Este plano já tinha funcionado com
algumas famílias “do contra”, portanto também iria
funcionar com o seu filho Jorge e a sua futura esposa
Glória, a quem também chamavam “Lola” e, às vezes,
“Ruça”.
(Continua)
Tony Borie, Junho de 2015.
____________
Nota do editor
Último poste da série de 7 de junho de 2015 > Guiné 63/74 - P14710: Libertando-me (Tony Borié) (20): Glória, a quem chamavam Lola e às vezes Ruça (1)
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