segunda-feira, 15 de junho de 2015

Guiné 63/74 - P14747: Notas de leitura (728): “Olhos de Caçador”, de António Brito, Porto Editora, 2014 (3) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 17 de Julho de 2014:

Queridos amigos,
Como em todas as histórias dos Fernãos Mendes Pinto, a comissão de Zé Fraga é um entrançado do hílare e do patético, da bazófia e do ato destemido, da suprema doação à canalhice extrema.  
“Olhos de Caçador” avulta pelo seu poder poliédrico, a sua capacidade em tratar magistralmente os extremos, tratando-os, por vezes como oposições redibitórias. Como Fernão Mendes Pinto, Zé Fraga regressará altamente condecorado e depois será esquecido, e terá o pendor de se destruir, ou quase. Se a boa literatura é uma história bem contada, mesmo que se confabule de excessos e de situações ditas inverosímeis, este livro está entre as obras obrigatórias da literatura da guerra colonial.

Um abraço do
Mário


Olhos de Caçador: Livro soberbo, o poliedro das brutalidades da guerra (3)

Beja Santos

“Olhos de Caçador”, de António Brito, Porto Editora 2014, é a história de uma peregrinação. Na esteira de narrativas empolgantes de quem andou a espiolhar pelo Império, temos aqui a história de um homem que preza a sua liberdade, que teima em ser rebelde e tem os seus códigos de honra. Atirado para Moçambique, terá manifestações de grande valentia, solidariedade, passará por vicissitudes extraordinárias. Incluindo o horrendo da guerra. Neste momento Zé Fraga está no Posto 36, foi castigado pelo Galo Doido, alcunha do capitão Vinhais, entre eles há um ódio que cresce ao rubro. Zé Fraga já comeu carne humana e agora anda em patrulhamentos, é preciso intimidar os frelimos. Numa dessas incursões, apanham um machambeiro que se vê forçado a levar a tropa até uma base da guerrilha. As coisas correm mal: morre guia e um dos soldados. Zé Fraga procura vingar-se:
“Deixei um presente escondido debaixo do cadáver do guia: uma granada descavilhada pronta a rebentar quando o primeiro camarada lhe mexesse. Sempre gostei de fazer surpresas, de oferecer presentes. Sou um mãos-largas. Quando voltámos a passar pela represa, entalei outra granada dentro do cântaro da água. Alguém ia ficar com uma grande dor de cabeça”.

No regresso, descobrem que os guerrilheiros cercam o Posto 36. E reagem:
“- Fraga, se há um preto na árvore, os outros devem estar perto – concluiu o alferes. 
- O mais certo é estarem junto da mesma árvore, aguardando as informações do vigia – disse-lhe eu. 
- A iniciativa é nossa – respondeu o Azedo. – Fraga, precisamos dos gajos vivos. Necessitamos de informações. 
- Os que estão no chão, talvez. O que está na árvore, duvido. 
- Que se foda o que está na árvore. Rebenta-se com o gajo. 
- Quem é o melhor atirador? – perguntei-lhe. 
- É o Velhinho, porquê? 
- Ponha-o a vigiar a árvore. Se o turra se mexer, o Velhinho que acabe com o cabrão. Nós cercamos os que estão no chão. 

Com o Velhinho a visar o preto empoleirado nos ramos, caminhámos curvados, dissimulados no capim. O turra na árvore estava de costas para nós, a olhar extasiado para o aquartelamento. Se continuasse assim e se não se voltasse, não daria pela nossa aproximação. Ainda não tinha a certeza onde estariam os outros, por isso fiz sinal ao Azedo para aguardar, enquanto eu avançava um pouco mais. Gatinhei uns metros, até que os vi, sentados no chão, quatro cabeças escuras espreitando através das árvores. A sua atenção estava concentrada na algazarra dos soldados dentro do aquartelamento. Fascinados por espreitarem a tropa colonialista, como diziam na propaganda, não me viram chegar, seguido do alferes e do resto da patrulha. Devem ter escutado o restolhar nas folhas, porque se viraram quando lhes caímos em cima, as armas prontas a trespassá-los, aos berros, para os intimidar e espantar o nosso próprio receio. No meio da gritaria, ouvi dois tiros vindos lá de trás, e um vulto a cair da árvore como um cocô maduro. Fiel à fama de caçador, o Velhinho acabar de abater a sua presa”.

Mas nem tudo era bravura no Posto 36, Zé Fraga cedo se apercebeu que havia para ali muita farsa: falsas patrulhas; relatórios mentirosos, um chorrilho de aldrabices para contentar Nampula. Devem-se a Brito descrições espantosas de perfis militares, é o caso do disfuncional Rosca Moída que tinha um atraso mental, por isso nunca tivera uma arma distribuída, para o manter ocupado, o tenente colocara-o a apanhar as folhas que caiam das árvores. Quando haviam flagelações e toda a gente recolhia aos bunkers, o Rosca fazia o contrário, corria para o meio do acampamento aos gritos. “Nunca se chegou a saber como o Rosca teve acesso às munições mas, por volta da hora do almoço, quando o cozinheiro mexia o panelão com a colher de pau e alguns esfomeados já rondavam de marmita na mão, o Rosca aproximou-se e atirou para a fogueira um punhado de balas. A princípio ninguém se apercebeu do que ele tinha feito, mas, quando as munições começaram a rebentar e as balas a silvar em todas as direções como de fogo-de-artifício em arraial popular, é que compreendeu o gesto louco do Rosca. Quem podia corria e saltava às cambalhotas, mordendo o pó para fugir daquele desvario. A primeira vítima foi o panelão do almoço, o guisado jorrando em esguichos gordos sobre a fogueira. Depois foi o cozinheiro, atingido nas nádegas anafadas por uma das balas que atravessou a panela. Com a fogueira a cagar chumbo em vez de fagulhas, quatro dos esfomeados da marmita apanharam a sua dose de chumbo. Tombaram na poeira, contorcendo-se aos gritos de ‘acudam’ e ‘chamem o enfermeiro’. O único que se safou foi o Rosca, que, à distância segura, apontava o pau e gritava ‘pum, pum, pum’.

O enfermeiro é confrontado com fraquezas humanas. O do Posto 36 atravessava um crise de paludismo, foi necessário chamar o de Magolé, de alcunha o Peida Grande, o que faz e descobre é assim descrito:
“O Peida Grande passou os dias a cuidar das mazelas dos doentes e a tratar dos ferimentos dos mais azarados. Cozeu os golpes, limpou o pus das infeções, mudou pensos, distribuiu antibióticos, meteu halazona na água inquinada, injetou soro nos desidratados, obrigou os teimosos a engolir pastilhas de sal para compensar os excessos de sudação, extirpou matacanhas debaixo das unhas, queimou micoses das virilhas com tintura de iodo, obrigou os porcalhões a tomar duche debaixo de um regador suspenso com um pau.

O Peida Grande tornou um tipo popular. As recomendações que fez, os cuidados de saúde que impôs e os hábitos de higiene que introduziu no Posto 36 elevaram a moral da guarnição. Até ao dia em que o tenente escolheu os soldados para a patrulha seguinte. Dos dez escolhidos, metade apareceu na tenda da enfermaria com golpes nas pernas, braços e pés. Queixavam-se de dores que os impedia de caminhar ou de mover os braços. O Peida Grande examinou os ferimentos, apalpou-se e cheirou-os, depois olhou para os cinco, demoradamente. Saiu sem responder. Foi falar com o tenente, contando-lhe que o grupo escolhido para a patrulha se tinha automutilado fazendo golpes nos pés, nas pernas e nos braços; que tinham esfregado os ferimentos com sal e tinham urinado em cima para acelerar a infeção”.

O regresso a Magolé é quase dantesco, trata-se de uma coluna constituída por um amontoado de desvalidos e sofredores, com várias urnas às costas, há um ataque de abelhas, o único alívio encontrado eram umas fumaças de suruma pela noite fora. Em Magolé o Galo Doido que torturara barbaramente vários prisioneiros, fora denunciado pelo alferes Perdigoto, que irá testemunhar contra o capitão em Nampula. O padre Tomé incita Zé Fraga a ajudá-lo a arranjar mantimentos e medicamentos para as populações. É nisto que vai entrar e cena um rei da malandrice que dá pelo nome de Mãozinhas, um ladrão habilidoso, também fadado para outros negócios escuros. Zé Fraga precisa de vitaminas, antibióticos, comprimidos para espantar a malária e vai pagar em erva ao Mãozinhas.

(Continua)
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Nota do editor

Último poste da série de 12 de junho de 2015 > Guiné 63/74 - P14737: Notas de leitura (727): “Olhos de Caçador”, de António Brito, Porto Editora, 2014 (2) (Mário Beja Santos)

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