1. Mensagem do nosso camarada Manuel Reis (ex-Alf Mil da CCAV 8350, (Guileje, Gadamael, Cumeré, Quinhamel, Cumbijã e Colibuia, 1972/74), com data de hoje, 17 de Maio de 2016, subordinada ao tema, O nosso blogue como fonte de informação:
O BLOGUE E A SUA IMPORTÂNCIA
Caros Editores
Amigos e camaradas,
Há
perto de um mês, um professor de História da Escola Secundária de
Moncorvo, Armando Gonçalves, solicitou ao Blogue a sua colaboração para
que pudesse concluir a sua pesquisa sobre as condições que envolveram a
morte do Alf Mil Lourenço da CCAV 8350, falecido na Guiné em 5 de Março de 197373
(1).
Este caso englobava-se num projecto mais amplo, respeitante a todos os
ex-combatentes de Moncorvo, falecidos nas ex-províncias ultramarinas e
nascidos no concelho de Moncorvo. Como se depreende a sua tarefa não
foi fácil. O conhecimento das datas de nascimento, filiação,
localização dos cemitérios onde se encontram os corpos e a localização
de familiares ainda vivos exigiu muito tempo e perspicácia ao Armando.
Os locais e as circunstâncias em que morreram foram talvez o trabalho
mais complicado. A singela homenagem aos ex-combatentes mortos
ser-lhes-à prestada com a colaboração da Câmara Municipal, em data
oportuna.
Quero deixar aqui duas notas:
O
meu apreço e gratidão pela dedicação do Armando a ex-combatentes,
nossos camaradas e amigos. Não basta dizer que houve uma guerra e como em
todas as guerras há mortos, feridos e estropiados. É redutora esta
visão. Há algo mais para além disso.
O meu apreço pela
pronta, rápida e eficaz colaboração do Blogue, que acabou por me envolver neste processo e me sensibilizou para avançar na localização
da campa do Alf. Lourenço e da da sua família.
Em
pouco tempo se reuniram a maior parte dos elementos que o nosso amigo
Armando precisava com a ajuda preciosa do Alf. Gonçalves, outro dos
Alferes da CCAV 8350, que vive em Almada e não via há
imensos anos. Localizámos a campa do Alf. Lourenço e dois dos seus
primos ainda vivos.
Prestar uma singela
homenagem, junto da campa do Lourenço, no Monte da Caparica, conversar
com o Gonçalves e conhecer uma prima do Lourenço era uma razão forte
para me deslocar ao Monte da Caparica, o que fiz logo que se deparou uma
oportunidade. Foi um encontro emotivo e gratificante.
Durante
o almoço recordámos vários amigos, várias situações e alguns episódios.
Recordámos a morte dramática do Alf. Branco, em Gadamael, que foi
substituir o Alf. Lourenço e que poucas horas permaneceu entre nós.
Guiné > Região de Tombali > Gadamael > Vista aérea de
Gadamael Porto nos finais do ano de 1971.
Foto: © António
Carlos Morais da Silva, Coronel Art Ref.
Assisti, revoltado, na vala, à sua partida para o patrulhamento, desnecessário e sem sentido. Já não o vi regressar.
Ainda
hoje dói ao reviver o filme deste episódio. Não é minha intenção
responsabilizar ou julgar alguém, o meu relato é factual.
No dia 31 de
Maio de 1973 o Coronel Durão ordena-me para fazer um patrulhamento a
Ganturé, da parte da tarde. A meio do percurso, perto das 15 horas,
rebenta o ataque do PAIGC e ouvem-se as granadas a sibilar por cima das
nossas cabeças. Chego ao local e constato que estou a 100 metros de uma boca
de fogo do PAIGC. Solicito o regresso ao aquartelamento, conforme
combinado, mas é-me negado, e só no dia seguinte de manhã regresso sem
autorização superior, por não me ter sido possível estabelecer qualquer
contacto, via rádio, com Gadamael. Entro no aquartelamento pelas 11 horas da
manhã do dia 1 de Junho.
No aquartelamento sou
informado pelo Alf. Seabra de toda a situação. Houve imensos mortos e
feridos e não restavam mais de 30 homens, dispersos nas valas. Tinha
havido uma fuga desordenada no dia 1 de manhã. Uns conseguiram chegar a
Cacine e outros refugiaram-se nas imediações do aquartelamento, onde se
sentiam mais seguros do que dentro do aquartelamento. E ainda outros que
morriam na travessia do rio.
No dia 1 de Junho,
da parte da tarde, o abrigo das transmissões é atingido e são feridos
os dois comandantes de Companhia, que acabam por ser evacuados pelos
fuzileiros estacionados em Cacine. Poucas horas depois chegam os dois
novos Comandantes de Companhia e o Alf. Branco, em substituição do Alf.
Lourenço. O novo Comandante da CCAV 8350 teve connosco uma breve
conversa, para se inteirar da situação. No dia 2 de Junho ordena um
patrulhamento ao Alf. Branco para a zona do antigo heliporto localizado
nas imediações do cais. O Alf. Branco não tem homens e caso os tivesse
não os conhecia e percorre, vala a vala, a perguntar quem pertencia ao
4.º grupo. Não encontrou ninguém.
Acabou por
sair no dia 3, sob pressão do Comandante de Companhia, com 11 homens,
voluntários e mal armados. Perante o desespero do Alf. Branco, ainda
cheguei a saltar da vala para os acompanhar, mas a protecção divina e
percepção da minha inutilidade, aconselhou-me a não o fazer. Mal entrou
na mata o pequeno grupo foi fortemente atacado pelos militares do PAIGC,
instalados em valas, em missão de protecção avançada aos camaradas
estrategicamente colocados no cimo das árvores, para orientar o fogo.
Isto acontece a menos de 100 metros do arame fardado. Registaram-se 5 mortos e
1 ferido grave, sendo recolhidos pela Companhia de Paraquedistas 122,
recém-chegados.
No ar pairava um misto de dor e
revolta. A noite era de breu, alguns comentários ecoaram e o Comandante
de Companhia acabou por exercer algumas represálias sobre mim e sobre o
capitão Catarino, ex-adjunto do Major Coutinho e Lima, que também tinha
presenciado a saída do reduzido grupo de combate.
Gadamael
foi mau demais e só não se transformou num enorme cemitério, devido ao
apoio relativamente rápido das três Companhias de Paraquedistas que a
partir do dia 3 de Junho passaram a operar em rotatividade.
Recordo algumas palavras escritas na altura.
GADAMAEL-PORTO EU TE AMO, EU TE ODEIO
Na vala recordo os dias alegres da infância,
os tempos da boémia coimbrã e a ti, Catarina.
Chove, troveja.
Não, não é um trovão, alerta o João.
Deito-me na vala, o mundo parece desabar.
Outra saída, outra e mais outra....
Ouço gemidos.
O João calara-se para sempre.
É manhã. Ai o café quente de Bissau!....
Os rebentamentos não param.
Abdulai, nosso guia de Guileje,
chora os nossos mortos com palavras sentidas e comoventes.
Na vala refilo,
protesto com palavras obscenas contra tudo e contra todos.
Abdulai, o nosso guia, o nosso amigo,
morreu.
Um abraço amigo,
Manuel Reis
____________
Notas do editor
(1) Mensagem de Armando Gonçalves com data de 22 de Março de 2016:
Assunto: Victor Paulo Vasconcelos Lourenço
Boa noite,
Sou professor da Escola Dr. Ramiro Salgado de Torre de Moncorvo.
Uma das iniciativas para o 25 de Abril na nossa escola é lembrar os soldados mortos no Ultramar.
Tenho procurado na Internet informação de todos os nossos conterrâneos caídos, pelo facto encontrei o vosso Blogue e o texto de Hélder Sousa,
Fur Mil Transmissões TSF (Piche e Bissau e 1970/72) sobre o Alferes Victor Paulo Vasconcelos Lourenço que muito me sensibilizou.
Naturalmente, gostaria de apresentar este texto à comunidade, pois poucos conhecerão este episódio. Além de que seria uma homenagem devida.
Por este motivo procuro que o autor do texto Hélder Sousa possa compartilhá-lo connosco, com a devida autorização.
Grato pela atenção que possam dar ao exposto,
Atenciosamente,
Armando Manuel Lopes Gonçalves.
Último poste da série de 25 de março de 2016
Guiné 63/74 - P15900: O nosso blogue como fonte de informação e conhecimento (36): quantos quilómetros terá feito, em 9 dias, o valente soldado José António Almeida Rodrigues, na sua fuga, desde o local onde era mantido em cativeiro, na região do Boé, até ao seu porto de salvação, no Saltinho?