quinta-feira, 2 de abril de 2009

Guiné 63/74 - P4126: Bandos... A frase, no mínimo infeliz, de um general (7): Os Bravos da Tropa Macaca (Eduardo Magalhães Ribeiro)

1. Mensagem de Eduardo Magalhães Ribeiro, ex-Fur Mil de Operações Especiais, CCS do BCAÇ 4612/74, Cumuré, Mansoa e Brá (1974), com data de 30 de Março de 2009:

Boa noite Amigos,
Quero a presentar-vos as minhas desculpas por 2 erros:
- enviei-vos inadvertidamente o mail anterior "Para:", e,
- o texto foi muito incompleto faltando-lhe os útlimos parágrafos, o que completo agora.
Obrigado a todos com um abraço amigo do M.R.


Os Bravos da Tropa Macaca

Além do que o Jorge Canhão muito bem descreveu no post: Guiné 63/74 - P4089: Bandos... A frase, no mínino infeliz, de um general (1): O nosso direito à indignação (Luís Graça / Mário Pinto / Jorge Canhão), há coisas que eu jamais esqueci e que acho conveniente contar agora, enquanto não me esqueço, fundamentalmente para elucidar as pessoas que se interessam, ou possam a qualquer momento vir a interessar, sobre aquilo que foi designado como S.M.O. (Serviço Militar Obrigatório), especialmente no período 1973/1974 de que eu sou testemunha viva, sem derrapagens nem distorções de qualquer tipo, confinado à lealdade e verdade dos factos.
Falo por experiência própria e prática do dia a dia, com a memória bem fresca, como se tivesse sido ontem, pois tendo pertencido a uma tropa de elite; Operações Especiais/RANGER, apenas convivi 100% com especiais durante 3 meses, tendo prestado o restante tempo com a tropa normal, designava pelo pessoal, na gíria dos quartéis, como tropa macaca ou fandanga.

Todos nós sabíamos que salvo raríssimas excepções (não interessa aqui os motivos destas excepções), mais mês menos mês, íamos parar ao Ultramar, com maior ou menor dose de sorte e, em consequência, com maior ou menor intervenção operacional nas 3 frentes de guerra.
Uma coisa eu sabia quando me apresentei no R.I.5 para a recruta, é que quem queria sentir-se minimamente preparado para a guerra, tinha que passar pelas tropas especiais, entre elas os RANGERS, pelo que achei melhor voluntariar-me para o C.I.O.E. e, após as provas da praxe, segui para Lamego.
Meus amigos, digo-vos que apesar da extrema dureza, psíquica e física, que a especialidade RANGER continha, a alimentação (salvo durante as chamadas provas de resistência à fome) era do mais alto nível, fazendo inveja aos melhores restaurantes do país. Mais vos digo que no C.I.O.E. quer o Comandante de Instrução, quer os instrutores, quer os instruendos e cadetes comiam no mesmo refeitório da mesma comida.
As munições de todos os calibres eram ao desbarato, e só para terem uma ideia (se bem me recordo), dizia-se em Penude (quartel de instrução), que cada RANGER só em munições custava, em 1973, ao Estado português cerca de 130 contos (moeda antiga).
Assim, pessimamente habituado após concluir a especialidade, fui destacado como 1º Cabo Miliciano para o R.I.16 onde fui mobilizado para a Guiné, tendo recebido guia de marcha para Tomar - RI15 -, e foi nesta unidade que começou a minha constatação/visão/assimilação/choque pessoal da realidade, que era a vida na generalidade dos quartéis.

Fui chamado para prestar instrução na 1ª C.ia de Instrução - 3º pelotão -, cujo alferes Alcides sofreu, logo nos primeiros dias, um esgotamento cerebral, ficando a instrução à responsabilidade dos dois 1º Cabos Milicianos; eu e o Marinho - Atirador de infantaria.
As ordens que o capitão nos deu eram claras, treinar o pessoal o melhor possível e transmitir-lhes o espírito RANGER, essencialmente nas componentes vitais – preparação física e disciplina de técnica de combate.
Ora como eu estava bem preparado fisicamente comecei a exigir aos soldados grandes esforços, quer nas marchas forçadas, quer nos crosses, nas acções de simulação de técnica de combate, nas técnicas de defesa pessoal, etc.
A minha desconfiança de que algo não estava bem naquele pelotão, foi surgindo ao ouvir alguns lamentos dos soldados, que iam desabafando aqui a ali, que o rancho era mau e intragável e, pior ainda, quando comecei a constatar que mesmo os mais fortes mostravam evidentes sinais de fraqueza espelhados num anormal estado de cansaço, que aos poucos vinha aumentando os já de si degradados sentimentos de desalento e desmotivação.

Reparem bem que estou a falar do ano de 1973, ano este em que as notícias chegadas aos quartéis eram, mais ou menos palavra, assim: anteontem morreram 3 em combate na Guiné, ontem faleceram 2 em Moçambique, hoje 1 em Angola e só este mês já morreram ao todo 60 camaradas nossos no Ultramar.
A confirmação de que os rumores da incomestível qualidade do rancho, eram pura verdade tive-a uns dias depois, quando fui escalado para mais um serviço de sargento de dia à companhia.
Decorria o almoço dos praças, quando dei uma volta pelo refeitório e fui convidado pelo pessoal a juntar-me a eles, o que eu fiz como é lógico, tendo ficado revoltado, angustiado e agoniado.
Se até aqui já os cenários eram pouco tranquilizantes, mais grave a coisa se tornou quando passada uma semana fomos dar tiro. Uma boa parte dos soldados começou logo por dizer que na recruta apenas haviam dado 10 (dez estão a ler bem) tiros e outros um carregador (20 tiros).
As instruções que tínhamos era que cada soldado podia disparar 1 carregador e os que demonstrassem menor aptidão mais um carregador adicional, para melhorarem a pontaria.
Um dado adquirido, como mais tarde vim a confirmar alarmado, era que a quase totalidade daqueles homens estava destinada ao Batalhão 4612/74, que estava mobilizado para a Guiné.

Agora quero registar aqui, pelo que acabei de descrever e pelo que já foi dito pelo Jorge Canhão, um ex- Combatente que eu muito estimo e admiro por várias razões, valha o que valer este meu depoimento, os maiores elogios à sacrificada desgraçada tropa normal, macaca ou fandanga, que após receberem tais recrutas e especialidades seguiam para as frentes de guerra e cumpriam, como podiam e sabiam sabe Deus em que circunstâncias, cabalmente as suas missões.

A pergunta que se impõe é: - O que é que seria dos operacionais, sem os homens que na retaguarda lhes asseguravam o indispensável e permanente fornecimento de equipamentos de toda a ordem, alimentação, munições, combustíveis, etc.?
Propositadamente, não me vou referir a outra componente que muito influía no comportamento dos batalhões, companhias, pelotões, etc. que dia respeito aos modos irresponsáveis e incompetentes como muitos eram comandados, em alguns casos ridícula e incrivelmente, porque muita gente haverá que o faça melhor do que eu.
Por tudo isto, a minha opinião é que um tropa macaca ou fandanga na verdadeira acepção das palavras, é todo aquele que não se respeita a si próprio seja porque motivo for, e, ou, não respeita os outros proferindo adjectivação insultuosa, desclassificativa e, ou, pejorativa.

Assim, poderíamos perdoar a qualquer outra pessoa que tivesse proferido aquelas, no mínimo infelizes, palavras Sr. General Almeida Bruno, chamando-lhe simplesmente mal-intencionado, burro, néscio ou ignorante.
Mas não! Tais palavras que o Jorge Canhão nos descreveu textualmente, foram mesmo ditas tranquila e compassadamente pelo Sr. General.
Sr. General, eu e muitos de nós ex-Combatentes tínhamo-lo na nossa conta de brilhante militar, competente e amigo do soldado.

Não quero acreditar sinceramente que nos enganou a todos, os que o admirávamos durante estes últimos 35 anos que passaram sobre a conclusão da guerra, e como não acredito só lhe peço que nos diga, clara e francamente, o que se passa com o senhor!
É que as palavras que proferiu no programa televisivo denota, no mínimo, ou um já grande esquecimento e, ou, distorção/deturpação da realidade de então.
O Sr. não acha que já bastam os anti-patriotas, os traidores, os desertores e outras corjas afins, para hostilizarem e rebaixarem os ex-Combatentes?
Se o Sr. Marechal António Spínola fosse vivo, imagine como que é que ele reagiria ao ouvir o Sr. a chamar bandos aos seus homens - dos diversos batalhões e companhias, milícias, etc. -, que ele superiormente comandou?
Já reparou que com esta brincadeira que ficou gravada em filme, o que é mais grave, pois poderá passar sempre que as TV.s o entenderem, o Sr. ofendeu não só milhares de ex-Combatentes vivos, como a memória de inúmeros mortos em combate e inúmeros deficientes da guerra?

Sou Vice-Presidente da Delegação do Porto da Associação Portuguesa de Veteranos de Guerra (40.000 associados), Vice-Presidente da Assembleia Geral da Liga dos Amigos do Museu Militar do Porto e Membro dos Corpos Directivos da Associação de Operações Especiais (1500 associados), lidando por isso com centenas/milhares de ex-Combatentes de todas as especialidades, que contactam e conversam entre si com o maior respeito e admiração, convivem e trocam experiências e ideias nos diversos seminários e colóquios a que tenho assistido em diversos pontos do país, ao longo destes últimos 35 anos, e nunca ouvi nada sequer parecido com a blasfémia que o Sr. proferiu.

Até aqui falei sempre no presente do indicativo, o que o podia levar a pensar que: - É mais um gajo que me quer chatear, mas tenho que acrescentar, que mais umas boas dezenas de outros RANGERS e outros ex-Combatentes amigos, com quem eu conversei e, ou, me telefonaram, que se sentem ofendidos e indignados com as suas declarações.

Magalhães Ribeiro
Ex-Fur. Milº Op.Esp./RANGER
C.C.S. do B.Caç. 4612/74
Cumeré/Mansoa/Brá

(Título da responsabilidade do editor)
__________

Notas de CV:

Vd. último poste de Magalhães Ribeiro de 29 de Março de 2009 > Guiné 63/74 - P4095: O trauma da notícia da mobilização (5): Quatro depoimentos (Magalhães Ribeiro)

Vd. último poste da série de 30 de Março de 2009 > Guiné 63/74 - P4110: Bandos... A frase, no mínimo infeliz, de um general (6): 'No melhor pano cai a nódoa' (Amílcar Mendes / Pereira da Costa)

2 comentários:

Luís Graça disse...

Pois é, meu caro Ranger, e amigo Eduardo, e camarada de Guiné, pira de Mansoa... Uma palavra só... pode matar mais do que mil balas. Por isso todos temos de ter muita contenção verbal , no blogue e fora do blogue...

Trinta e cinco anos depois do fim da guerra, ainda estamos a contabilizar 'baixas... Vamos continuar a ter até à extinção do último homem que passou pela Guiné, mortos e feridos...Mortos e feridos na sua dignidade, memória auto-estima...

Há, de facto, palavras que matam que nem balas, sr. general!

LG

Anónimo disse...

Magalhães Ribeiro:
Concordante com o que escreves ou em quase tudo.
Igualmente com o comentário supra do LG.
Copio e colo dois pequenos parágrafos,
por serem determinantes e, possivelmente,me levarem a escrever sobre este "assunto".Se o fizer, não o posso dissociar de um mail enviado aos Editores. Nesse escrito refiro igualmente as palavras proferidas pelo Capitão CMDT da Companhia de Madina.
1-"Por tudo isto, a minha opinião é que um tropa macaca ou fandanga na verdadeira acepção das palavras, é todo aquele que não se respeita a si próprio seja porque motivo for, e, ou, não respeita os outros proferindo adjectivação insultuosa, desclassificativa e, ou, pejorativa."
2-"Se o Sr. Marechal António Spínola fosse vivo, imagine como que é que ele reagiria ao ouvir o Sr. a chamar bandos aos seus homens - dos diversos batalhões e companhias, milícias, etc. -, que ele superiormente comandou?"
São estas as frases.Eu fui militar em tropa normal. Só.
Tenho agora afazeres e atraso vários escritos, que gostava de escrever, para o blogue ou para membros dele. A ver vamos. Ob pelo texto e Abraços do Torcato