1. Mensagem de Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 14 de Abril de 2011:
Queridos amigos,
O testemunho de Aristides Pereira é irrecusável.
Diferente do de Luís Cabral (este mais intimista e deslumbrado pelo talento inesgotável do irmão), Aristides procura nesta narrativa encontrar os dados irrefutáveis da principal consigna do PAIGC da época (uma luta, um partido, dois países).
Como o tempo veio ensinar a consigna assentava numa vontade indomável de um líder de elevado gabarito que sonhara com uma utopia irrealizável. A história é como a natureza, encarrega-se de pôr tudo no seu lugar, baralha-se e volta-se ao princípio. Pode perceber-se como essa consigna arrastou vagas de azedume e quezília, separando povos e deixando a Guiné sem projecto.
Um abraço do
Mário
O testemunho de Aristides Pereira (1)
Beja Santos
“O Meu Testemunho, uma luta, um partido, dois países”, por Aristides Pereira, Editorial Notícias, 2003, é um dos documentos fundamentais para entender tudo quanto se passou na Guiné, desde a génese da luta armada até aos acontecimentos que conduziram à ruptura entre cabo-verdianos e guineenses, em 1980. Aristides Pereira não precisa de apresentações, ninguém ignora o papel capital que desempenhou desde a fundação do PAIGC até ao topo na hierarquia política. Trabalhou sempre ao lado de Amílcar Cabral, em Conacri, será ele o novo líder do PAIGC na Guiné-Bissau declarada independente, em Setembro de 1973. Foi eleito Presidente da República de Cabo Verde, em 1975, 1981 e1986, a par de ter sido secretário-geral do PAIGV.
Que importância pode ser atribuída a esta obra? Dirigente colocado em posição privilegiada, homem modesto, que não se reconhece nem como escritor nem sequer como escrevinhador, vem testemunhar, como ele escreve como uma forma de pagar a dívida com todos aqueles que se entregaram totalmente à luta. É um livro de cerca de 1000 páginas, o seu testemunho com bastantes adjuvantes de diferentes colaborações, chega às 280, o restante material é composto por entrevistas conduzidas por Leopoldo Amado, muitas delas de inegável importância, tal como o acervo documental com que finaliza o volume, com algumas peças históricas incontornáveis. Dada a natureza de tão farto material, compreensivelmente haverá que seccionar os diferentes conteúdos. Pois vamos começar pelo testemunho de Aristides Pereira e de alguns outros participantes seus convidados.
Primeiro, a apresentação do sistema colonial português. É uma apresentação com claro rigor histórico, ninguém desconhece que a presença dos portugueses na actual Guiné-Bissau, no período que antecede a conferência de Berlim, é tímida e circunscrita a algumas praças-fortes. O sistema administrativo só se irá estruturar na I República, a Guiné, nesse período passa a ser um importante fornecedor de óleos e oleaginosas. Em pinceladas grossas, chega-se ao Acto Colonial de 1930, à Carta Orgânica do Império Colonial Português e à Reforma Administrativa Ultramarina, ambas de 1933. Recorda-se o estatuto do indigenato e a concepção civilizadora do salazarismo, atribuindo-se à fundação da Liga Guineense (1910) uma importância significativa na reivindicação em se melhorarem as condições escolares na região. O que era escusado era o autor recorrer a uma expressão puramente demagógica quando diz “Mas o que importa sublinhar é a coesão e a tenacidade com que os guineenses resistiram a 4 séculos de presença portuguesa e a cerca de 60 anos de colonização efectiva. Esta resistência foi uma espécie de luta de libertação nacional avant la lettre, que demonstrou que o povo da Guiné não se submeteu à dominação estrangeira e que se mobilizou para a luta logo que se reuniram as condições favoráveis para a conquista da independência”. Coesão foi coisa que nunca existiu e qualquer semelhança entre a resistência étnica e a luta de libertação nacional é uma imagem de mau gosto, uma derrisão histórica.
Segundo, socorrendo-se de um contributo alheio (António Correia e Silva e Zelinda Cohen) Aristides Pereira e quem com ele colaborou neste livro nem entendem o que se escreve sobre “a génese do movimento dito protonacionalista em Cabo Verde”. Se alguma dúvida subsistisse quanto ao inconciliável da unidade Guiné e Cabo Verde este texto deixa tudo esclarecido. O Cabo Verde que aqui vem documentado só se aproxima da Guiné através de alguns negócios, caso da Companhia do Comércio de Cacheu e a Companhia Grão-Pará e Maranhão. Cabo Verde possui uma elite colonial, gente culta, jornais, instituições que funcionam, um bispo, uma rede de ensino público, um crioulo autónomo, um funcionalismo público autónomo. É inegável que o fenómeno histórico cabo-verdiano reivindicava a plena cidadania portuguesa, não se encontra um dado sequer de história comum entre a gente “das ilhas” e do continente africano. É facto que a Guiné dependeu até ao último quartel do século XIX de um governador sediado em Cabo Verde; é facto que veio muita população de Cabo Verde para a Guiné e desta para Cabo Verde, mas não se encontra qualquer plausibilidade para o argumento da história comum (nutriente fundamental para o slogan “uma luta, um partido, dois países”). E o documento destes dois colaboradores deixa devidamente esclarecido que a unidade reclamada por Amílcar Cabral e pelo PAIGC da luta (para consumo interno e internacional) não passou de um fantasma. Com as consequências que todos nós conhecemos.
Terceiro, segue-se o testemunho de Aristides Pereira que veio de Cabo Verde para Bissau em 1948, como operador dos CTT. Descreve a cidade da época e a sua vida em Bafatá em cuja estação dos correios foi colocado. De regresso a Bissau, em 1951, estabelece relações com a Dr.ª Sofia Pomba Guerra (uma comunista forçada a viver ali) e com Abílio Duarte, Fernando Fortes e outros pequenos funcionários. O nacionalismo na Guiné é despertado pelas independências das colónias vizinhas. Surgiram logo depois da II Guerra Mundial organizações e grupúsculos de curta vida, alguns estudantes africanos em Portugal criaram em 1951 o Centro de Estudos Africanos como uma alternativa à passividade política em que se vivia na Casa dos Estudantes do Império. Aristides Pereira relata depois a criação de movimentos de contestação e o aparecimento de Amílcar Cabral na Guiné, em 1952. São dados inquestionáveis, aparecem registados em muitas outras publicações, tal como a fundação PAI, o aparecimento do MLG (Movimento de Libertação da Guiné). Saltando para o despertar do nacionalismo em Cabo Verde, a narrativa também nada traz de novo, de há muito que está identificado o Grupo de 3º Ciclo do Liceu de São Vicente de onde sairão quadros para o PAIGC.
Quarto, o autor aborda a problemática da unidade Guiné e Cabo Verde, pede mesmo um texto “científico” a dois estudiosos (Manuel Duarte e Renato Cardoso, é uma prosa entediante onde, sempre numa atmosfera de voluntarismo se procura contestar as diferenças abissais das duas culturas, das duas histórias, dos preconceitos e ressentimentos que, em banho lustral, aparecem limados e transformados em laços especiais e indissolúveis. Aliás, a prosa dos dois colaboradores de Aristides Pereira a este respeito é tortuosa e cabalística, como se exemplifica: “A necessidade histórica da materialização da unidade é condicionada pelo facto, primordial, de que a opção da unidade (no sentido dinâmico de unidade e objectivos) põe-se, justamente, em relação a realidades individualizadas, não idênticas: realidades com semelhanças e também com diferenças. Daí que, se é manifestamente infundado contestar o princípio da unidade dos povos da Guiné e Cabo Verde, com argumentos extraídos de suas (reais ou imaginárias) diferenças, naturais ou culturais, a formação jurídica-política da unidade das duas nações deve ser antecedida do processo de materialização da unidade de existência de ambos os povos. Unidade vivida, em que se atinjam as convergências concretas e formas de superiores de cooperação e comunhão, através de novas relações de complementaridade intercâmbio, através de reestruturação e ajustamento finalístico de semelhanças e diferenças”.
Retira-se este parágrafo de um texto absolutamente esotérico, em como se dá como provado que a unidade era um facto histórico inescapável. Pior do que tudo, Aristides vem seguidamente sentenciar: “Quando ouvimos os detractores do princípio básico do PAIGC, a unidade da Guiné e Cabo Verde, afirmarem que este princípio era utópico e inatingível ficamos atónitos com essas posições, sempre fundadas no racismo e em certos complexos (de superioridade ou inferioridade) criados e fomentados pelo sistema colonial”.
A seguir, destacar-se-á a luta clandestina na Guiné, iremos até à batalha do Como e ao congresso de Cassacá, um percurso onde Aristides Pereira também irá discorrer sobre a luta político-diplomática do PAIGC.
(Continua)
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Nota de CV:
Vd. último poste da série de 15 de Abril de 2011 > Guiné 63/74 - P8108: Notas de leitura (229): Visão - África, 30 anos depois, reportagem de Pedro Rosa Mendes (Mário Beja Santos)
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
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3 comentários:
Boa análise. Aristides Pereira, apesar de ter chegado a PR de Cabo Verde e de fazer gala no seu ar de grande "sage" africano, foi sempre uma peça relativamente menor da engrenagem do PAIGC e da luta armada em particular. Tenta, agora, como sempre, justificar o injustificável. Há que dizê-lo de uma vez por todas a pretensa unidade Guiné-Cabo Verde, apenas servia os interesses dos cabo-verdeanos e garantia-lhes um lugar relativamente cómodo à sombra das mangueiras da Guiné. O 14 de Novembro de 1980 põe termo definitivo a essa utopia estapafúrdia, sem pés nem cabeça. É interessante ler a correspondência, verdadeiramente patética, dessa época, entre Aristides e "Nino" Vieira. É também extraordinário como essa situação, política e constitucionalmente, aberrante tenha durado tanto tempo (pelo menos 6 anos, sem contabilizar os anos de luta - em que o guineense combatia e o cabo-verdeano dava ordens).
Sr. Consul Francisco da Silva,
A mesma frontalidade que caracterizou a sua passagem pelo consulado de New Bedford a vir ao de cima: Pontos nos is.
Das elites cabo-verdeanas e guineenses sabemos o sentido da luta.
O que pensava o guerrilheiro que combatia? Lutava em nome do PAIGC ou da Guiné
Porque sabemos que muitos deles foram sequestrados quando muito jovens e endoutrinados à causa do partido.
Cumprimentos,
José Câmara
Obrigado pelas suas palavras. Tento ver a Guiné-Bissau, com duas perspectivas diferentes: como combatente (pois por lá passei nos anos idos de 68-70) e depois como diplomata (onde fui uma testemunha da guerra civil de 98-99). Conto dentro em breve publicar um livro de memórias onde relato as duas situações e com algumas revelações que poderão surpreender muita gente. Como a de tantos camaradas de armas e não só. Guiné está indelevelmente gravada na minha memória.
Cumprimentos amigos
Francisco Henriques da Silva
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