quarta-feira, 20 de abril de 2011

Guiné 63/74 - P8139: Contraponto (Alberto Branquinho) (29): Teatro do Regresso - 4.º Acto - Missa de Corpos Presentes

1. Mensagem do nosso camarada Alberto Branquinho (ex-Alf Mil de Op Esp da CART 1689, , Catió, Cabedu, Gandembel e Canquelifá, 1967/69), com data de 17 de Abril de 2011:

Caro Camarigo Carlos Vinhal
Este Acto nº. 4 do Teatro do Regresso não é parte ficção e parte real. Aconteceu.

Durante os dias em que a minha Companhia esteve em Bissau esperando o embarque para regresso, o meu Pelotão foi escalado para esse "serviço". (Habituados a "muita coisa", mesmo assim, ao chegar lá, as urnas pequenas impressionavam-nos).
As palavras que o padre me dirigiu no final é que poderão não ter sido exactamente aquelas.
Tivemos que treinar a salva de tiros (sem bala na câmara) e a posição de "funeral arma" que já estava mais que esquecida.

Um abraço
Alberto Branquinho


Guiné-Bissau > Igreja de Santa Luzia
Foto Google


CONTRAPONTO (29)

TEATRO DO REGRESSO
(Peça em vários actos)

4º. Acto - Missa de Corpos Presentes

Cenário:

Abril de 1969.
Pequena igreja situada do lado direito da estrada Bissau – Santa Luzia/QG.
Pela porta aberta entrevêem-se três urnas grandes e duas pequenas, em frente ao altar; o padre, devidamente paramentado, celebra missa de corpo presente, por alma dos falecidos.
Um alferes assiste à celebração em pé.


Personagens principais:

O padre, paramentado, que celebra a missa.
O alferes miliciano, fardado, que assiste à celebração.


Acção:

A missa está a acabar.
O padre, entre o murmúrio de palavras em surdina, asperge água benta, com o hissope, repetidas vezes, sobre as urnas, fazendo o sinal da cruz.

Fora da igreja, uma viatura militar começa a movimentar-se, em marcha-atrás, no sentido da porta da igreja, mas os movimentos são bruscos e desastrados. O padre precipita-se para junto da porta e, com o hissope, faz-lhe sinais para curvar à esquerda, à direita, corrigindo-lhe os movimentos. Finalmente, a viatura encosta correctamente à porta da igreja.

O padre regressa ao altar para, de seguida, voltar para junto da porta.

As urnas começam a ser carregadas na viatura.
A pequena força no exterior, formada do lado direito da igreja, faz a salva militar, disparando sucessivos tiros para o ar.
Uns quantos garotos espreitam às esquinas e às portas das casas e barracas, entre curiosos e assustados.
O padre, ainda paramentado, assiste, dentro da igreja, ao carregamento das urnas, tendo a seu lado o alferes.
Ouve-se a ordem:

- Funeral – ARMA !!!

Pouco depois a viatura iria iniciar a marcha, acompanhada pela pequena escolta.

O alferes despedia-se do padre, quando este lhe prendeu a mão, sustendo a despedida e disse-lhe, olhando-o nos olhos:

- Estes rapazes regressam a casa como carga aérea e, às vezes, em… pedaços. Mas outros… nem sequer… regressam.

(CAI O PANO)
____________

Nota de CV:

Vd. último poste da série de 11 de Abril de 2011 > Guiné 63/74 - P8083: Contraponto (Alberto Branquinho) (28): Teatro do Regresso - 3.º Acto

6 comentários:

José Marcelino Martins disse...

"- Estes rapazes regressam a casa como carga aérea e, às vezes, em… pedaços. Mas outros… nem sequer… regressam."

Outros regressaram inteiros, porque as "dores de alma" não são visiveis, para acabar muitas vezes de forma inglória, porque tiveram a OUSADIA de ofeecer um cigarro a um jovem (?) que tem idade para ser seu neto.

Que mais irá acontecer?

Antº Rosinha disse...

Este pequeno post, para mim, é do mais simbólico que já li sobre a guerra do ultramar.

Pena que um post como este já não possa ser lido nem interpretado pelas actuais gerações

Já não há mais motivação para para qualquer "luta", muito menos para ler coisas "que já não lhe diz nada"

Os rumos actuais já não são em "caravelas", nem motivadores.

Este pequeno post, para mim, é do mais simbólico que já li sobre a guerra do ultramar.

Nem Lobo Antunes, alérgico a África, nem escritores apologistas do Ultramar, me deram a ler umas linhas que retratassem o esforço de um país, por uma causa, que justa ou não, foi de uma enorme nobreza.

Há pouco tempo vi na Televisão um funeral inglês de um soldado do afeganistão acompanhado por uma pequena guarda de honra e por meia dúzia de familiares e o reverendo.

Não vi uma lágrima nem "cantores de intervenção".

Luis ou Carlos Vinhal, se forem ao Google Earth retirem a igreja referida pelo A. Branquinho que se encontra junto à rua Sta Luzia quando se vai para o antigo QG.

Colocavam no post, que ele merece.

A foto da capela está bonita.

Cesar Dias disse...

Alberto Branquinho

Realmente depois de uma comissão , só faltava esse serviço para a dose ser completa. Isto faz-me pensar que tive sorte na minha ida á Guiné, pois não regressei como carga aérea.
Um abraço, bem hajas
César Dias

Anónimo disse...

José Martins

Não conheço essa história (ao que parece trágica) causada(?) pela oferta de um cigarro. É caso recente?
Alberto Branquinho

manuelmaia disse...

Caro Alberto Branquinho,


Nunca com tao poucas palavras se disse tanto e tao bem.
Parabens
manuelmaia

José Marcelino Martins disse...

Caro Branquinho e demais Tertulianos!

O que referi é recente. Aconteceu nos últimos dias, em Braga, com um universitário (agressor-liberto) e um homem de 60 anos (agredido-falecido).

Como sou sensivel aos problemas que surgem com aqueles que, ao nosso lado (ainda que a milhares de quilometros de distância, somo são as distâncias em África) e em todos oa snos da braza, chocou-me de sobremaneira.

Na realidade todos as gerações são "rascas", são "arrasca" e "sacrificadas".

Mas aquela que nasceu nos anos finais de 30 e na década de 40, "apanharam" uma guerra mundial, trabalharam para ajudar a familia e fizeram uma guerra.

Trocaram as armas pelo "arado" aqui simbolizando os instrumentos de trabalho, e ajudaram a (re)construir um país que, na "hora da velhice" ainda lhes pede mais sacrificios.

Haja dignidade e respeito!