Camarada Carlos Vinhal:
Envio-te em anexo, como tinha prometido, um bloco de memórias, desta vez colaterais à guerra da Guiné.
Junto também em anexo as duas fotografias que já estão inseridas nos textos, caso sejam úteis para uma melhor edição no blog.
Um abraço.
Manuel Sousa
MEMÓRIAS DE UM EX-COMBATENTE (1)
Por Manuel Luís Rodrigues Sousa, ex-Soldado do 3.º Pelotão da 2.ª Companhia (Jumbembém) do BCAÇ 4512 sediado em Farim 1973/1974.
Como introdução a este memorando de episódios colaterais à guerra da Guiné, queria aqui fazer referência a um tema tão actual na nossa sociedade, de que muito se fala, que é a “geração à rasca”.
Só para dizer que eu e os meus contemporâneos dos anos sessenta e setenta, com todas as dificuldades conhecidas da época, inclusive a obrigatoriedade de bater com os costados na guerra colonial, e comparando com as dos jovens de hoje, também pertencíamos, e de que maneira, a uma geração não menos “à rasca”.
Contudo, havia um vocábulo que toda a gente conhecia e o punha em prática e que era o antídoto para este mal: “o desenrasca”.
Então na tropa este conceito era um lema.
“O desenrasca” ( a minha recruta em Vila Real)
A 31 de Julho de 1972, apresentei-me no RI 13 em Vila Real, para frequentar a recruta.
Depois de me ser atribuído o número mecanográfico (09030772) e de ser indicada a 5.ª caserna como os meus futuros aposentos, impunha-se a atribuição de todo o fardamento.
O átrio de acesso à caserna era comum à arrecadação a cuja porta me dirigi, numa extensa fila e, chegada a minha vez, estenderam no chão um dos cobertores que me distribuíram, para onde foram atirando com todas as peças de fardamento e calçado sem qualquer critério em relação ao número dos tamanhos.
Uma vez a dotação completa, juntei as quatro pontas do cobertor, coloquei aquela trouxa às costas, que era maior do que eu, sem saber bem o que é que ia fazer a tudo aquilo, e dirigi-me para a caserna.
Fardei-me imediatamente, como nos foi ordenado, notando que as calças eram um pouco justas.
Depois de fardado foi-me dada a tarefa, juntamente com outros colegas, de varrer a caserna.
A caserna era muito grande com um corredor lateral, que dava acesso a vários compartimentos das camaratas.
Ao baixar-me para varrer sob uma das camas, as calças descoseram-se entre pernas, numa extensão de cerca de 20 centímetros.
Recorri então ao meu “kit de sobrevivência”, ao carrinho de linhas e uma agulha que a minha mãe me tinha metido na mala e sentei-me numa cama a coser as calças.
Confesso que não me estava a sair nada bem na minha aventura de iniciação ao corte e costura, porque lá em casa isto era tarefa da mãe e das irmãs.
Felizmente alguém lá ao fundo da caserna bradou:
- Quem quer trocar umas calças?
Respondi logo:
- Troco eu - tirando imediatamente a agulha e a linha das calças.
Concretizou-se rapidamente a troca e, prevendo já no que aquilo iria dar, vesti-me num ápice e regressei à tarefa da limpeza.
Volvidos alguns instantes, vem disparado corredor abaixo o tal militar com as calças na mão a vociferar, perguntando compartimento em compartimento quem lhe tinha acabado de trocar as calças, visto que não me conseguiu conhecer no meio de tanta farda verde.
Percorreu todos os compartimentos, mas como ninguém lhe respondeu, inclusivamente eu, o “criminoso”, indignado com a situação, berrou a plenos pulmões pelo corredor da caserna. “Quem foi o filho da puta que me trocou as calças”.
Foi nesta camarata que teve lugar a célebre troca das calças, as que uso nesta foto.
Quase de certeza que o militar a quem eu impingi as calças descosidas também é um dos ex-combatentes.
À pergunta que ele fez na altura estou-lhe a responder agora, 38 anos depois, embora não me identifique pelo “nome” que me chamou.
Seria interessante agora o contacto entre ambos para revivermos esse passado em que a tropa mandava desenrascar.
“Roubaram-me” a mala
Uma vez iniciada a recruta em Vila Real, à medida que os dias iam decorrendo, fui-me integrando na rotina do dia a dia.
Os meus aposentos eram na 5.ª caserna, situada entre a 4.ª e a 6.ª , ao lado da parada, gémeas umas das outras. Eram exactamente iguais.
Eu estava instalado no segundo compartimento, ao lado esquerdo do corredor, em relação à entrada, e partilhava o armário de chapa com outro militar.
Sobre as coisas do armário estava descansado, visto estar fechado a cadeado.
Quanto às que estavam na mala, que coloquei sobre o mesmo armário, não estava muito tranquilo, porque, embora também fechada à chave, estava mais vulnerável aos amigos do alheio que na tropa existiam, principalmente no inicio enquanto ninguém conhecia ninguém.
Preocupado, quando entrava na caserna, ao regressar da instrução, tinha o cuidado de olhar imediatamente para a mala, para me inteirar de que estava intacta.
Um dia entrei na caserna e reparei que a mala tinha desaparecido. Não estava sobre o armário.
Fiquei em estado de tensão com a preocupação e reparei que na caserna entraram militares que não era habitual vê-los por ali.
Deduzi logo que, provavelmente, tinha sido algum deles a furtar-me a mala.
Corri imediatamente para fora para me dirigir para a secretaria a comunicar o facto e fazer referência aos militares suspeitos.
Quando cheguei à rua, apercebi-me de que estava na caserna errada.
Estava na 6.ªcaserna.
Ufa! Que alívio!
Fiquei então mais tranquilo com o mistério desvendado e cheguei à conclusão que o único intruso na 6.ª caserna era eu.
A aventura da segunda refeição (no RI 2 em Abrantes)
Terminada a recruta no RI 13 em Vila Real, em finais de Setembro de 1972, fui transferido para o RI 2 em Abrantes, a fim de, como se dizia, tirar a Especialidade.
Dado o elevado número de militares ali concentrados, em instrução e a própria guarnição do quartel, o refeitório não comportava as refeições em simultâneo de todo o contingente, pelo que eram distribuídas por duas mesas.
Um dia, depois de ter tomado a refeição do almoço da primeira mesa, que não foi suficiente para saciar a voracidade provocada pelo esforço da instrução, um militar que integrava o meu círculo restrito de amigos sugeriu ao grupo para entrarmos na segunda mesa, para repetirmos a refeição.
Entrámos então, um grupo de quatro ou cinco, dispersos na fila que aguardava a entrada no refeitório, mas todos próximo uns dos outros.
O companheiro da sugestão era o primeiro dos “repetentes” e era uma das caras que não passava despercebida e lado nenhum, dada a sua irreverência, a que vulgarmente se chamava de “reguila”.
À porta do refeitório encontrava-se um aspirante ou um aferes, o oficial de dia, que controlava as entradas no refeitório, permitindo apenas a entrada de cada vez do número de militares para completar cada mesa.
Chegada a vez do primeiro “repetente” passar no “filtro”, reconhecido pelo oficial como intruso, ali mesmo, na nossa frente, foi esbofeteado e pontapeado e posto imediatamente na rua.
No meio da confusão, aos restantes só restava fugir para a frente.
Entrámos normalmente, com cara de sonsos, sem que ninguém nos tivesse reconhecido.
Confesso que pouco comi na segunda refeição, depois do calafrio porque passei..
Saliento a lealdade do camarada esbofeteado que não denunciou os restantes “repetentes”.
Recrimino a atitude do oficial em causa.
Não obstante a nossa atitude ter sido um acto reprovável, revelando até falta de ética, mas que com vinte anos não se tinha muito a noção disso, o mesmo oficial não deveria ter tido o despudor de desfeitear o militar daquela maneira. A aplicação de uns reforços ou de umas faxinas resolveria a situação e seria mais digno para ambas as partes.
Atenua-se, contudo, a sua atitude, também pela sua juventude, da nossa idade, também imaturo.
O embarque na metrópole e a chegada a Bissau
Ao romper da manhã do dia 6 de Dezembro de 1972 todo o Batalhão 4512 se deslocou em coluna de viaturas desde o quartel de Tomar, de onde era originário, até à estação local de Caminhos de Ferro, onde tomou um comboio especial com destino a Lisboa.
Na estação de Braço de Prata a agulha direccionou-o para a direita, passando por Campolide, Aqueduto das Águas Livres, terminando a viagem cerca das 11 horas no Cais da Rocha em Alcântara, defronte do paquete Uíge ali fundeado.
Durante a tarde decorreram ali cerimónias de despedida e, ao fim da tarde, num dia de chuva miudinha e nevoeiro, depois da emocionante despedida entre os militares e os familiares, zarpou do cais o Uíge, levando a bordo dois Batalhões, entre eles o 4512 a que eu pertencia, além de uma ou outra subunidade, rumo à Guiné.
O meu pelotão no paquete Uíge. Atrás, da esquerda para a direita, sou o 5.º
Fotografia cedida pelo ex-alferes Pedroso (a meio, de pé, de camisa clara).Volvidos seis dias após a partida depois de uma viagem um pouco tormentosa devido ao mau estado do mar, entre enjoos e consequentes descargas no mar, principalmente para quem viajou nos porões como eu, a 12 de Dezembro de 1972 aproximou-se o paquete “Uíge” do cais de Bissau, ao cair da noite, ficando ao largo até ao dia seguinte de manhã.
Como horizonte de um dos lados, bem diante dos nossos olhos, via-se a iluminação da cidade de Bissau.
No convés tentava eu sintonizar o meu pequeno receptor de rádio, à procura de alguma emissão em português, já que na Onda Média apareciam algumas estações em língua francesa.
Procurei e fixei-me numa estação de sinal mais forte, que na altura transmitia música popular africana.
Aguardei pacientemente até que, terminado o trecho musical, ouvi a voz cristalina da locutora, como acordes de cordas de violino:
- Aqui Bissau, Portugal…!
É indescritível a sensação que tive, ao ouvir a língua de Camões na emissão, sabendo que já estava em terras de África.
(Continua)
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Nota de CV:
(*) Vd. poste de 11 de Abril de 2011 > Guiné 63/74 - P8084: Blogpoesia (143): Vila do Conde é um poema (Manuel Sousa)
4 comentários:
Caro camarigo Manuel Sousa
Teria imensa piada se de facto o elemento em causa lê-se isto, relembrasse o episódio e aparecesse a reclamar do 'engano'.
Já não há como remediar o que foi feito mas certamente não deixaria de ser um factor de comemoração.
Abraço
Hélder S.
Pois é camarigo Manuel Sousa,aconteceu a quase todos independentemente do tipo de incorporação (c.g.--c.s.m. ou c.o.m.).
Comigo passou-se a mesma coisa,só que foram as botas, a única diferença é que o dito reconheceu-me.Andei uma semana com botas nº 43,eu que calço 41.
Já agora aqui vai a velha anedota.
Um dia os exércitos da NATO fizeram um concurso para saber qual era o mais valoroso, que constava em cortar a ponta do pé e ver qual era a reacção de cada representante.Quando foi a vez do "tuga" este nem pestenejou,admirados perguntaram-lhe porque é que não se queixava,ao que este respondeu: "não me queixo graças ao salazar e ao exército português,calço o 39 e deram-me o 43".
um alfa bravo
C.Martins
Caro Manuel Sousa
Acabo de ler as suas memórias de ex-combatente.
Quero dizer-lhe que comecei por ler a parte (2) da descrição, mas gostei imenso da sua forma descritiva, e vim depois ler a primeira parte.
Sente-se uma frescura de memória, que lembra os verdes 20 anos!
Os meus parabéns!
Fala como se tudo tivesse acontecido ontem, seguro, preciso!
Uma redacção estupenda, que dá gosto ler.
Um abraço fraterno
Felismina Costa
Caríssima companheira de blog. Agradeço-lhe os simpáticos elogios que me dirige.
Esforço-me, de facto, para que as minhas histórias de guerra cheguem de forma límpida, cristalina, sem "ruídos", aos leitores do blog, por forma a contagiá-los e a viverem comigo todos os episódios relatados.
Todos eles, ora publicados, já fazem parte do património de todos nós, património que seria ainda maior se todas as memórias de guerra, de tantos milhares de companheiros ex-combatentes, fossem contadas!
Despeço-me com amizade, com votos de uma feliz Páscoa.
Manuel Sousa
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