sexta-feira, 10 de novembro de 2017

Guiné 61/74 - P17956: Notas de leitura (1013): Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (8) (Mário Beja Santos)

BNU em Bolama, em toda a sua pompa


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 20 de Setembro de 2017:

Queridos amigos,
Caminhamos para os últimos anos da I República, na Guiné, a despeito de inúmeras dificuldades económicas e financeiras, aparece um surto empresarial, praticamente tudo cairá na água.
Velez Caroço é uma figura invulgar na governação, terá os seus incondicionais e detratores, as desavenças entre Republicanos a tal obriga. Mas os relatórios que saem de Bolama, não escondendo que existe um grane apreço pelo trabalho do governador, que pugna por rasgar estradas e pôr ordem na administração, revelam inúmeras mazelas, uma delas passa pela agricultura.
É neste contexto, quando todos falam que já se vive em pacificação que eclode uma revolta na ilha de Canhambaque, como veremos no próximo texto.

Um abraço do
Mário


Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (8)[1]

Beja Santos

Em 1923, a Companhia de Fomento Nacional dá os seus primeiros passos em Aldeia do Cuor, a informação é prestada num longo ofício dirigido ao gerente do BNU em Bissau. Vejamos como o administrador da firma localiza o empreendimento:
“O rio Geba banha numa extensão de 18.436 metros, devido às suas sinuosidades, a frente dos terrenos de exploração, sendo os mesmos atravessados na sua maior largura pelo rio Gambiel e o seu afluente Mansomine, constituindo estes cursos de água uma grande riqueza, mais o primeiro é navegável como é sabido e o segundo é suscetível de ser em parte por em embarcações de menor calado, concorrendo para facilitar a exploração podendo ao mesmo tempo, como já sucede, fornecer-lhes água para irrigação. São ainda os mesmos terrenos atravessados numa extensão aproximadamente de 20 quilómetros por uma estrada aberta pela circunscrição a qual está ligada à sede de Aldeia do Cuor por um ramal de 7. Os terrenos da conceção são na maioria constituídos pelas chamadas ‘terras altas’ cobertas de vegetação arbórea e arbustivas, entre as quais encontramos árvores produtoras de excelentes madeiras, como o mogno, o pau de sangue, a manconia e o pau conta, etc, e um quinto aproximadamente da sua extensão por planícies extensas, bordejando os cursos de água, designados pelo nome de ‘lalas’ cobertas quase que exclusivamente por vegetação herbácea. Estas planícies põem-se pois facilmente em cultura, sendo nelas que se cultiva o arroz e a cana-sacarina e possivelmente outros produtos como a mancarra, procedendo-se a obras de defesa e drenagem”. 
Descreve as instalações da empresa em Aldeia do Cuor, bem como o importantíssimo material agrícola, daí a necessidade de serralheiros, ferreiros, carpinteiros e pedreiros. Fica-se igualmente a saber que em 1922 a parte cultivada atingira mais de 115 hectares. A propósito das construções, escrevia com a ponta de orgulho que estavam ali muitas centenas de metros quadrados de alvenaria, muitos metros cúbicos de madeiramentos e milhares de telhas, estavam ali muitas centenas de contos. Havia igualmente duas pontes lançadas sobre o rio Gambiel que permitiam a sua travessia por todos os mecanismos de lavoura e transporte.
Multiplicavam-se empreendimentos como este. Noutros relatórios de Bolama para Lisboa far-se-ão apreciações negativas da generalidade destas empresas, caíam na insolvência, por gestão errática, por desinvestimento e algo mais.


O Governador Velez Caroço vai procurar pôr ordem na administração e na orgânica do governo. Pretende que se abram estradas que sejam mais do que caminhos de pé posto, apela aos administradores para que se desenvolvam estradas macadamizadas, pontões e pontos de alvenaria; reorganiza a força militar na Guiné, estendem-se pelo território as comunicações radiotelegráficas e o serviço postal; recebe e visita autoridades gentílicas, não hesitará numa campanha militar nas ilhas Bijagós, enfim, é um governador a vários título modelar.

Os relatórios do BNU neste período não deixam de espelhar, de algum modo, a nova realidade. Ocorrem aumentos nos vencimentos dos funcionários públicos, o gerente refere que o governo lutava com falta de fundos e contraiu um empréstimo em cerca de mil contos, previa-se uma melhoria da situação depois de cobrar o imposto de palhota. As recriminações continuam:
“Ainda sobre aumentos de vencimentos, vamos relatar sucintamente um incidente que define bem o caráter da maioria do funcionalismo público desta Província, muito especialmente dos de Bolama: 
Em 4 de Setembro (de 1923), poucos dias depois da posse do novo diretor dos serviços de Fazenda Alfredo de Rosário Rodrigues, foi este suspenso por não querer, ou não poder, cumprir uma ordem do Encarregado do Governo, transmitida por intermédio do seu factótum, José Luís da Luz, Secretário Interino, respeitante ao abono de 15% sobre os ordenados poucos antes aumentados dos funcionários, que aquele garantia, e garante, ser ilegal, enquanto não for sancionado pelo governo central, ou autorizado pela auditoria fiscal.
A tal ponto chegou o procedimento daqueles senhores que apuparam-no, já depois de suspenso! A nosso ver isto constitui uma violência escusada por quanto bastaria aguardar a solução de Lisboa, ou o parecer da referida auditoria. O governo adquiriu por 500 contos a propriedade urbana e rústica da Empresa Comercial de Bijagós, destinada a instalação das oficinas navais, tribunal civil e residência de funcionários.
É nossa opinião que esta compra foi desastrosa porque, até à data, só tem servido para habitação de poucos funcionários, e para isso foram necessárias importantes reparações, e quanto à instalação das oficinas só muito mais tarde ela será posta em execução ou talvez nunca. Acerca de conduta de certos funcionários públicos, continuamos mantendo o que dele dissemos no nosso anterior relatório”. 
No relatório de 1924 também não se escondem algumas críticas à governação de Velez Caroço: 
“O governo da província, com o pretexto de organizar o regulamento para as Caixas de Crédito Agrícola até hoje nada fez em favor da agricultura. A colheita da mancarra, feita pelo gentio, foi neste ano bastante desenvolvida, mas a sua qualidade vai piorando de ano para ano devido à falta de cuidado e insuficiência de meios técnicos com que essa cultura é feita. Por espírito de ganância e por ignorância, toda a mancarra que este ano daqui foi exportada ia misturando com enorme quantidade de terra e outras impurezas, o que produziu um péssimo efeito nos mercados onde foi vendida”.

É neste período que se tomam medidas para que o BNU em Bissau tenha casa própria. Em Maio de 1922 adquirira-se um prédio cujo rés-do-chão estava destinado a escritórios e o primeiro andar à habitação do gerente. Dizia-se que o estado de conservação era mau. Em 1925, de acordo com uma certidão da Repartição de Fazenda do Concelho de Bissau fica-se a saber que no novo bairro da cidade há uma casa em alvenaria e três pequenas dependências isoladas, bem como dois barracões de madeira. Nesse mesmo ano surge o primeiro Anuário da Província da Guiné, devido em três partes: na primeira, faz-se uma síntese do que é a província, as suas vias de comunicação, como se viaja pelo território, o que é a administração e os serviços públicos; na segunda parte, apresenta-se a agricultura e a pecuária, o comércio e as indústrias, a fauna e a flora; na terceira parte aborda-se o clima, faz-se uma súmula da história militar, o ensino e as religiões, indicam-se as circunscrições civis bem como usos e costumes indígenas. Sobre esta última questão, vale a pena mencionar a descrição do anuário acerca das etnias existentes na Guiné.


Pelo que ali se escreve, o tipo de raça dominante é o negro e o negroide e o hamita cruzado. Quase todos praticam a tatuagem, as mulheres nos lábios e os homens no rosto. Devido a esta prática absurda vêm-se mulheres verdadeiramente cativantes prejudicadas pela deformação dos beiços. O Fula usa lavar-se, mas nem todos empregam o sabão, por ser crença entre eles que tal emprego faz diminuir a virilidade. Os Mandingas têm boa índole, são atraídos pelo comércio e pela agricultura. Têm duas castas: a dos ferreiros e a dos sapateiros. A autoridade religiosa dos Mandingas denomina-se almarne (presume tratar-se de uma confusão, a palavra própria é almani), ele é ao mesmo tempo conselheiro político e goza de muito prestígio. É curioso como se transmitem entre eles as heranças: por morte do pai herdam os irmãos, começando pelo mais novo que tenha família. Os filhos e as mulheres fazem parte do legado e neste caso elas ficam sendo pertença do herdeiro. Os Felupes são bem constituídos, sadios e resistentes. Quando novos e solteiros, usam várias contas nas pernas e diversas penas na cabeça. Quanto a trabalhar, não se matam muito, apenas produzem o suficiente para comer e pagar o seu imposto. Os Papéis são muito vivos e espertos. Têm um costume interessante: deformar os dentes, tornando-os pontiagudos. Apreciam o álcool e o vinho de palma. Os Manjacos são considerados como uma divisão dos Papéis. Náuticos por temperamento, são os que mais contingente fornecem para o pessoal de embarcações. Os Banhuns (Brames ou Mancanhas) não creem na alma mas acreditam na transmigração. Alguns deles disfarçam-se pelas horas mortas da noite em hienas e onças para exercerem pequenas vinganças. E referindo-se aos Balantas diz que quando nascem gémeos um é abandonado junto qualquer montículo de bagabaga e lá morre, tomando a mãe conta do outro. A mulher Balanta é, em geral, infiel ao marido, o que não admira, visto este ser normalmente muito mais velho do que ela. Os Beafadas são entusiastas pelos batuques. É a mulher que trabalha. Os Cassangas são considerados uma espécie de Beafadas. Os Nalus quando atingem a idade de 18 anos podem casar e terão tantas mulheres quantas forem as irmãs que tiverem. Os Bijagós são os únicos indígenas que não praticam a circuncisão. São bons nadadores. Alimentam-se de macacos, ratos, jiboias, cães ou outros bichos domésticos. As suas casas, em regra, são caiadas com barro branco, algumas delas têm vários desenhos informes, feitos com barro vermelho e amarelo.


Era neste arremedo de antropologia e etnologia que se apresentava para o grande público o mosaico étnico guineense.

(Continua)
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Notas do editor:

[1] - Poste anterior de 3 de novembro de 2017 > Guiné 61/74 - P17928: Notas de leitura (1010): Os Cronistas Desconhecidos do Canal do Geba: O BNU da Guiné (7) (Mário Beja Santos)

Último poste da série de 8 de novembro de 2017 > Guiné 61/74 - P17949: Notas de leitura (1012): "A Antepenúltima Caravela", de Emanuel Filipe, inserido na obra “Os Anos da Guerra, 1961/1975, Os portugueses em África, Crónica, Ficção e História”, organização de João de Melo, colaboração de Joaquim Vieira, Círculo de Leitores e Publicações Dom Quixote, 1988 (Abel Santos)

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