1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 27 de Outubro de 2017:
Queridos amigos,
Este prodigioso escritor, de 86 anos de idade, continua a publicar obra assombrosas.
Para gente da nossa idade, é um estímulo, um incentivo a manter os neurónios em movimento.
John le Carré é consensualmente reconhecido como um grão-mestre da literatura sobre a Guerra Fria e a espionagem que lhe foi inerente. Com a queda do muro de Berlim, reconverteu-se admiravelmente e todas as suas obras posteriores passaram a espelhar a nossa contemporaneidade: o crime financeiro na globalização; o tráfico de armas e de droga; os escândalos da indústria farmacêutica; as manipulações à volta do terror provocado pelo fundamentalismo islâmico, etc.
Temos agora este admirável retorno à Guerra Fria, urge recuperar todo quanto se passou durante a operação Bambúrrio, curiosamente a trama central do prodigioso romance "O Espião que Saiu do Frio".
Não percam esta obra-prima absoluta.
Um abraço do
Mário
Um Legado de Espiões, obra-prima absoluta de John le Carré
Beja Santos
Para usufruir os melhore sabores deste incontornável romance, sugiro ao leitor que leia ou releia três livros importantíssimos de John le Carré: "O Espião que Saiu do Frio", "A Toupeira" e "A Gente de Smiley". Com estes três romances de qualidade excecional encena-se a atmosfera envolvente deste (novamente) indispensável "Um Legado de Espiões", por John le Carré, Publicações Dom Quixote, 2017.
Não basta dizer que é John le Carré no seu melhor, é um portentoso regresso às experiências da Guerra Fria, ao ilusionismo das informações muitas vezes cozinhadas por agentes duplos ou traidores, é um ressuscitar de um mundo onde os ingleses já não são jogadores no plano mundial, estão hoje transformados numa potência secundária, é esta a amarga mensagem que sela um encontro entre velhos espiões possuidores de segredos tenebrosos, no termo de uma viagem labiríntica, alucinante.
A escrita possui esse dom de nos agarrar no primeiro parágrafo e de nos retirar o fôlego, entramos no tufão de uma narrativa obsidiante, deste modo:
“O que se segue é o relato verídico, tanto quanto me é possível fazê-lo, do meu papel na operação de embuste britânica que teve o nome de código Bambúrrio, montada contra o Serviço de Informações da Alemanha de Leste (Stasi) em finais da década de 1950 e princípios da de 1960 e da qual resultou a morte do melhor agente secreto britânico com que alguma vez trabalhei e da mulher inocente pela qual deu a vida”. E para se perceber a dureza do interrogatório a que um velho espião vai ser submetido por uns garotos da nova escola, quem faz um relato tem um importante esclarecimento prévio a fazer: “Um oficial de informações profissional não é mais imune aos sentimentos humanos do que o resto da humanidade. O que lhe importa é a medida em que é capaz de os reprimir, que era em tempo real, quer, no meu caso, cinquenta anos a fio”. O agente chama-se Peter Guillam, foi discípulo dileto de George Smiley, nos Serviços Secretos britânicos, também conhecidos por Circus. Goza num total anonimato a sua reforma na costa Sul da Bretanha quando é discretamente convocado pelo seu antigo serviço a Londres. Vamos regressar à Guerra Fria, em grande tormenta.
O autor desvela com alguma antecedência a jigajoga e os elementos constitutivos de um interrogatório: “Em qualquer interrogatório a negação é o ponto de viragem. Pouco importam as delicadezas que tenham havido antes. A partir do momento da negação, as coisas nunca mais voltam a ser iguais. Ao nível do polícia secreto, a negação é suscetível de provocar uma imediata retaliação, tanto mais que o polícia secreto mediano é mais estúpido do que o seu sujeito. O interrogador sofisticado, em contrapartida, ao levar com a porta na cara, não tenta imediatamente forçá-la a pontapé. Prefere reorganizar-se e avançar sobre o alvo a partir de um ângulo diferente”. Voltamos ao mundo do Circus, recorda-se a “toupeira”, Bill Haydon, o homem que mandou para a morte muitos espiões ocidentais. Ressuscita-se a atividade de Alec Leamas, a personagem principal de "O Espião que Saiu do Frio". Aquele interrogatório é uma teia de aranha que se monta e desmonta, reaparecem velhas operações, havia desconfiança de que existia uma toupeira num posto elevado de decisão do Circus, George Smiley cria um mecanismo protetor onde ele só conversa com os seus fiéis. Vêm à baila as razões de fundo deste interrogatório: os filhos das principais vítimas da operação Bambúrrio reclamam uma reparação pesada, os serviços secretos querem apurar responsabilidades, daí este assombroso regresso ao passado. Peter Guillam percorre esconderijos, conversa com gente da velha guarda, quer ter acesso a documentos, o leitor emaranha-se nesses antiquíssimos relatórios, há um agente alemão oriental de nome Karl Riemeck que tem acesso a informações secretíssimas de todo o bloco comunista, são-lhe entregues através de Tulipa, nome de código da secretária de um manda-chuva da Stasi, em dado momento é necessário tirar Tulipa da Alemanha Oriental, Peter Guillam conduz operação, é um dos momentos mais primorosos do romance esta deserção e exfiltração da subfonte Tulipa.
Tulipa não irá acabar bem, um espião de alto coturno, Mundt provocará a sua morte, descoberto aceitará transformar-se num estranhíssimo agente duplo, um dia será chamado a Moscovo e desaparece. A operação Bambúrrio foi um somatório de equívocos, para cada um a sua versão.
Entrámos num fase superior do ilusionismo, Peter Guillam já conversou com o filho de Alec Leamas, desapareceram relatórios, ninguém sabe quem fala verdade e diz mentiras, ressuscita-se o processo do julgamento de Alec Leamas na RDA e como Mundt ganhou poder. Peter Guillam interroga-se permanentemente porque estes novatos não ouviram em primeiro lugar o chefe de operação, George Smiley, não obtém respostas conclusivas.
Peter Guillam viera da Bretanha já com um esquema montado para desaparecer, em caso de necessidade. E desaparece sub-repticiamente, com passaporte falso, procura um velho agente, Jim Prideaux, que lhe dá o contacto de Smiley, na Suíça. Haverá um frente a frente pacato, antes uma penosa reflexão: “Bem, agora vamos ao ajuste de contas, por fim. Agora vamos a respostas diretas a perguntas difíceis como: você, George, propôs-se conscientemente suprimir a humanidade que há em mim, ou também eu fui um dano colateral? Como: e quanto à sua humanidade e por que razão é que ela teve sempre de estar em segundo plano em relação a uma causa mais elevada e mais abstrata que eu já não consigo identificar? Ou, dito de outra maneira: de quanto do nosso sentimento humano podemos prescindir em nome da liberdade antes de deixarmos de nos sentir humanos ou livres?”.
Nesse encontro sereno de velhos espiões, George Smiley compromete-se a divulgar os papéis da operação Bambúrrio. Um final de desilusão, em que se questiona o que os espiões fizeram por Inglaterra: “Mas a Inglaterra de quem? Qual Inglaterra? Eu sou europeu Peter. Se eu tinha uma missão, se alguma vez tive consciência de alguma para além da nossa questão com o inimigo, era para com a Europa. Se eu era desumano, era desumano pela Europa. Se tinha um ideal inatingível, era o de conduzir a Europa das suas trevas a uma nova era da razão. Ainda tenho”.
Vale a pena enfatizar: uma obra-prima absoluta.
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Nota do editor
Último poste da série de 6 de fevereiro de 2014 > Guiné 63/74 - P12686: Bibliografia (39): Um pouco mais do meu livro "Bissaulónia" (Mario Serra de Oliveira)
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
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