Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
segunda-feira, 2 de janeiro de 2006
Guiné 63/74 - P395: O meu diário (José Teixeira, CCAÇ 2381) (4): Aldeia Formosa, Agosto de 1968
Guiné > Empada > 1969 > Desdobrável de propaganda, distribuído pelas NT, com apelo do Comando Chefe das Forças Armadas da Guiné Portuguesa para o IN e para a população sob o seu controlo se apresentarem às autoridades portuguesas.
© José Teixeira (2005)
Transcrição:
Legenda da imagem de cima:
"Faz como eles. Eles eram população que terrorista guardava no mato e que fugiu. Foge também e apresenta-te à autoridade civil ou à tropa que dá ajuda, comida, mezinho, paz e liberdade".
Legenda da imagem de baixo:
"Faz como eles. Eles são terroristas arrependidos. Apresenta-te também à tropa. Também terás paz, comida, mezinho e liberdade. Se levar arma, tropa dá prémio. Bandeira portuguesa é bandeira de nós todos! Autoridade Portuguesa ajuda toda a gente! Tropa dá protecção. Apresenta-te com esta guia"
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Continuação da publicação do diário que o José Teixeira, 1º cabo enfermeiro da CCAÇ 2381, foi escrevendo durante a sua comissão na Guiné (1968/70). É um notável documento humano onde também vêm ao de cima as dúvidas e a angústia do cristão. Nesse Agosto de 1968, em Aldeia Formosa (hoje, Quebo), o 1º Cabo Enfermeiro Teixeira escreve, dilacerado pelo absurdo daquela guerra: "Ainda não dei um tiro. A minha missão é curar. Jamais darei um tiro nesta guerra. Matar não, nunca. Vou tentar passar esta guerra sem fogo".
O meu diário (cont.)
Aldeia Formosa, 1 de Agosto 1968
É dia de correio, mas pelos vistos o avião já não vem. Ontem aterraram dois Dakotas com páras e espera-se outro hoje. Mau sinal. Ou me engano muito ou em breve vamos ter "manga de chocolate".
No dia de S. João, enquanto me divertia em Ingoré nas marchas improvisadas do S. João, o pessoal da Companhia 2382 viu arder tudo o que trouxeram da Metrópole, aqui ao lado em Contabane, num ataque inimigo. Felizmente só tiveram 4 feridos. Que rico S. João !
Aldeia Formosa, 2 de Agosto 1968
A guerra é triste... Na estrada da Xamarra ia-se dando mais um drama. Vinte e sete abrigos de três homens e dois fornilhos a serem montados, eram a espera para a Secção que vem todos os dias a Aldeia buscar víveres. Quatro milícias passaram perto e avistando o IN abriram fogo. Três acabaram as munições e fugiram, o quarto, sozinho pôs o IN em fuga. Não fora os milícias e nesse dia a Secção podia ser apanhada à mão.
Pouco tempo antes o IN tinha tentado a sorte no mesmo local. Dizem que um nativo de 12 anos ao ver um branco com farda diferente da do nosso exército lhe apontou a Mauser e matou-o. Era um cubano que junto com outros tinha uma emboscada montada. O miúdo tentou avisar Xamarra e conseguiu-o, mesmo depois de ter apanhado um tiro de raspão no nariz.
Crianças na guerra, será possível ? Que futuro para esta gente que cresce no ódio, na guerra ?.
Aldeia Formosa, 4 de Agosto 1968
Ontem foi comemorado pelo IN o V Aniversário da implantação da luta pela independência da Guiné. No sector de Buba a festa começou cerca das 22 horas com um ataque a Mampatá com quatro canhões sem recuo e terminou às 3.30 horas em Aldeia Formosa (1).
Às 22 horas iniciaram em Mampatá. Às 22.30 acordaram Aldeia Formosa com algumas morteiradas e continuaram em Gandembel, Guilege e Buba. Às 24 h recomeçaram em Aldeia Formosa com pequenos intervalos até as 3.30 h.,não fazendo feridos.
Hoje o Senhor concedeu-me a graça de ouvir a missa pela telefonia. Sinto-me outro, mais [?]... Hoje é dia de correio. Para completar esta boa disposição é preciso que venhas também até mim com a tua confiança.
Ouvi o Spínola dar as boas vindas à tropa vinda da Metrópole. Segundo ele, o tempo de Comissão é de 21 meses.
Buba, 8 de Agosto de 1968
A Guerra e . . . a minha "paz"
Avisto a Selva,
Do outro lado, o mar...
Corpos negros,
Corpos brancos.
Almas assassinas
Que destroem, matam.
Não sabem amar.
Quando entro na guerra,
Esqueço quem sou.
Deram-me uma arma
Tenho que lutar...
Que coisa terrível !
Marca espíritos,
Destrói sentimentos,
Origina ódios.
Mais que tudo isto,
Ensina a matar !...
Mas se eu matar
E a "pátria" o afirma,
Em defesa dos "inocentes"
Buscando a "paz",
Porquê este remorso
Se quero somente amar !?
Aldeia Formosa, 9 de Agosto de 1968
Cheguei à uma da madrugada de Buba. Tinha partido para baixo em coluna no dia 6. Desta vez o IN não apareceu. Fomos e voltámos pela estrada de Nhala.
Estava com medo desta coluna, depois do que aconteceu na última, mas o Senhor protegeu-me, a mim e aos meus colegas de aventura.
Um pelotão de milícia de Aldeia Formosa foi bater a zona de Mampatá, para confundir o IN e sofreu dois mortos e três feridos. Trouxe orelhas de vários IN, mortos durante o combate. É horrível, Senhor... dois mortos e três feridos e... orelhas de vários IN mortos. Alguns, foi a sangue frio, segundo dizem, depois de serem descobertos com ferimentos que os impediam de fugir. Tudo isto é guerra, enquanto uns estavam na rectaguarda feridos, outros, autênticas feras, procuravam IN, irmãos de raça, para os assassinarem.
Os homens não ouvem a voz de Deus, abafam a tua voz com o matraquear das armas. Matar pessoas, porquê ? ... E aquele corte de orelhas, vitorioso !?... Como se fosse um animal ! E se fosse, quem deu ao homem tal direito ?!...
Que faço eu nesta guerra ?... Curo uns e procuro matar outros para salvar a pele? Que culpa tenho eu que os homens não se amem ?!... Me queiram matar sem eu lhes fazer mal nenhum ?!...
Ainda não dei um tiro. A minha missão é curar. Jamais darei um tiro nesta guerra. Matar não, nunca. Vou tentar passar esta guerra sem fogo.
____
Nota de L.G.
(1) Em Aldeia Formosa vivia 0 Cherno Rachid, a autoridade máxima do Islão na Guiné. Eis po esc´revoi do Diário de um Tuga, Bbamdainca, 10 de Janeiro de 1970:
"De etnia futa-fula, vive em Aldeia Formosa [Quebo], rodeado duma auréola de lenda e santidade: a sua simples presença, asseguram os meus soldados, faz malograr qualquer ataque dos guerrilheiros àquela povoação onde aliás esta sedeado urn batalhão, e os seus mezinhos (amuletos ou talismãs) imunizam os homens-grandes, quer dizer, aqueles que praticam os preceitos do Alcorão, contra as balas do inimigo".
Vd. post de 15 de Junho de 2005 > Guiné 69/71 - LVII: O Cherno Rachid, de Aldeia Formosa (aliás,Quebo)
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