Texto de João Tunes:
Caro camarada Luís,
Que o sol do sul de Itália não te deu para a preguiça, nota-se à légua. Era de esperar - tu deves ter nascido frenético, multifacetado e prolixo. Assim te conserves. E se permites o egoísmo que julgo partilhado pelos restantes tertulianos, ainda bem por nosso benefício e do blogue que animas e nos anima, metendo-nos a memória em estado vivo. É que, se vieste de Nápoles e da Sicília sem vontade de abrir a janela para uma nesga de aragem de fresco e deitares-te como direito a persistente descanso, então estamos bem aviados e melhor encomendados - temos blogue para dar e durar, pois temos comandante sem sono nem repouso.
Terminei há pouco a leitura do livro de um jornalista da SIC sobre a famosa operação Mar Verde (22 de Novembro de 1970). Haverá camaradas que nela participaram. Outros, caso meu, viveram-no na tensão da espera do resultado (eu estava em Catió nessa altura). Terá sido também o teu caso e de outros muitos camaradas.
Recomendo a leitura do livro (Operação Mar Verde - um documento para a história, de António Luís Marinho, Editora Temas & Debates). Pela minha parte, não tendo gostado nada do culto prestado a Alpoim Calvão, acho que é obra que ajuda a explicar-nos como estávamos ali e como, nos altos comandos, éramos comandados.
Seja qual for a opinião que se tenha sobre o Mar Verde, o certo é que se tratou da cartada maior e mais arriscada na guerra em que estivemos metidos. A minha opinião pessoalíssima está no meu blogue, Água Lisa (6).
Talvez fosse interessante conhecermos como cada um de nós, os que lá estávamos em 22 de Novembro de 1970, vivemos a tensão desse dia e seguintes. O que achas. Luís, da sugestão como desafio aos camaradas tertulianos?
Entretanto, transcrevo o meu depoimento:
Não poucas vezes, o desespero e a derrota anunciada levam à aventura empurrada pela audácia do tudo ou nada. Em Novembro de 1970, eu estava enfiado num quartel de uma aldeia do sul da Guiné, Catió, metido numa guerra sem vitória possível e ainda menos sentido que o de soprar contra a história.
Ainda pior que essa falta de sentido, uma vontade estúpida de Portugal querer marcar com um mata e morre o posfácio da gesta colonial que lhe ficara no gosto, nos gastos e nos ganhos desde que as caravelas quinhentistas se fizeram ao mar. Não estava ali a fazer nada, excepto aguentar e poder voltar para junto de mulher e filha, procurar emprego e fazer vida. Metido em posição meramente defensiva, numa ilha-quartel em território controlado pelo PAIGC, levando no toutiço, dia sim e dia não, para que Nino Vieira gastasse as suas fartas munições de morteiros. Mas estava. Ali, em Catió. Perto da fronteira com a Guiné-Conacry.
22 de Novembro de 1970 e dias seguintes, foram especialmente tensos. A tempestade que carregava a rotina quarteleira era mais pesada que costume. O comando andava de sobrolho mais fechado. Tinha de haver bernarda grossa. Depois amainou. Para se voltar à rotina das morteiradas do Nino. Dia sim e dia não. E o dia 22 de Novembro de 1970 ficou-se como um dia em que até pouco se passou. Ali, em Catió. Porque não longe dali, muito se passara.
Só mais tarde vim a saber um pouco do que se tinha passado nesse 22 de Novembro de 1970, tornado um dia particularmente tenso na rotina militar de Catió. Nesse dia, o governo português tinha executado uma operação de guerra contra outro país soberano e inimigo, invadido a sua capital com o fito de mudar-lhe o Presidente (assassinando-o) e o governo, colocando no seu lugar um governo, amigo dos colonialistas, liquidando a retaguarda do PAIGC (em que se incluía o assassinato de Amílcar Cabral e dos restantes altos dirigentes) e libertando os militares portugueses que tinham sido capturados pela guerrilha.
Foi a operação Mar Verde, arquitectada e executada por Alpoim Calvão, aprovada por Spínola e por Marcelo Caetano, neutralizadas que haviam sido as vozes discordantes do Ministro do Ultramar, Silva e Cunha, e do Ministro dos Negócios Estrangeiros, Rui Patrício. Na noção adquirida da impossibilidade de ganhar a guerra na Guiné, era a aventura do tudo ou nada. E, como se a guerra tivesse solução numa noitada num casino, restava a aventura. Era a hora dos aventureiros. E assim, a hora de Spínola. Sobretudo de Calvão. Também de Marcelo, incapaz de governar um projecto ingovernável. Borrado com a Guiné, à rasca com Moçambique, não querendo perder Angola.
Só assim se entendendo que o mais louco e ambicioso dos aventureiros centuriões entre os militares portugueses, irmanado com a PIDE, tenha conseguido levar o governo português e as Forças Armadas à suprema aventura de querer ganhar a guerra na Guiné pela conquista de um país vizinho e independente. Como se a solução para o colonialismo português fosse transformar toda a África num continente neo-colonial, dando um pontapé na história.
Mataram que fartaram, destruíram bastante, trouxeram os prisioneiros militares portugueses de volta. Mas foram ao campo de aviação para estoirar a frota aérea guineense e os aviões não estavam lá, quiseram calar a emissora e não deram com ela, procuraram Amílcar Cabral para o assassinarem e este estava há dez dias no estrangeiro, o Presidente Sekou Touré que devia ser assassinado também não foi encontrado, um tenente e o seu pelotão (22 homens) desertou e entregou-se às autoridades guineenses e denunciou a operação, registaram-se várias baixas entre mortos e feridos.
A operação terminou numa fuga a toda a pressa, em debandada organizada, com medo da retaliação da aviação. No seguimento, um enorme basqueiro internacional que ainda isolou mais o governo português. Sekou Touré reforçou o mando e o apoio ao PAIGC. E o PAIGC intensificou o apoio internacional e o poderio das operações militares. Em balanço: um fiasco. O fiasco de uma aventura. A aventura do desespero. Na hora dos aventureiros. Na pior das horas, quando o governo governa através da loucura dos aventureiros sem escrúpulos.
Com a distância do tempo, a aventura da operação Mar Verde vai sendo melhor conhecida. E não deixa de ter relevo conhecer-se esse pedaço de história recente em que Portugal se meteu num enorme assado, de onde saiu humilhado, quando o seu governo decidiu invadir militarmente outro país soberano e independente.
Um livro recentemente editado do jornalista António Luís Marinho (1), pese embora a atracção panegírica de encantamento para com a figura de Alpoim Calvão, o maior aventureiro centurião do império, é bem elucidativo desta fase da nossa história recente, em que a loucura também fazia (mau) governo.
Um abraço para ti e outros tantos para todos os estimados camaradas tertulianos.
João Tunes
___________________
Nota do autor (JT):
(1) Operação Mar Verde - um documento para a história, António Luís Marinho, Editora Temas & Debates.
Comentário de L.G.
Reforço o repto lançado pelo nosso querido amigo e camarada João Tunes: digam-lá onde é que vocês estavam em 22 de Novembro de 1970, o que é que fizeram nesse dia e seguintes, o que é (não) sabiam da Operação Mar Verde, qual o vosso sentimento a relação a militares e camaradas como o Alpoim Galvão...
Quanto aos elogios à minha pessoa... no coments! Limito-me a agradecer a generosidade do João. A minha obrigação (assumida por mim) é manter vivo e actuante o nosso blogue... O que se tem vindo a conseguir, umas vezes pior, outras melhor...
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
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1 comentário:
No dia 22 de Novembro de 1970 estava no 1º dia completo na Metrópole depois de ter passado 25 meses, 10 dias e não sei quantas horas na Guiné. Tinha portanto chegado no dia 21, salvo erro, na derradeira viagem do CARVALHO ARAUJO. Foram 9 dias de viagem para esquecer, à excepção daquela meia dúzia de horas que passamos no Funchal uma vez que o nosso velho barquito lá tinha ido meter água e nafta que também não havia na Guiné. Foram nove dias do pior. Água não havia nem no bar mesmo vendida. Só cerveja, coca-cola e bolachas baunilha.Ninguém tomou banho naqueles dias. Até o prato que nos deram à chegada ao barco, era lavado com água do mar. Mas passemos à frente.Porém, o desembarque em Conakri não foi para mim surpresa. Antes de sair de Bissau no dia 12, já sabia que isso acontecer, mais dia menos dia. E não soube disso no quartel mas sim na 5ª Rep onde tudo se falava e muita coisa se sabia.
Até à próxima...
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