Cópia de excerto do relatório do comandante da Op Mar Verde (Fonte: António Luís Marinho: Operação Mar Verde – Um documento para a história. Lisboa: Círculo de Leitores. 2006. Com a devida vénia)
1. Excertos do texto do João Tunes, de 2 de Maio de 2006: Da hora dos aventureiros:
"Em Novembro de 1970, eu estava enfiado num quartel de uma aldeia do sul da Guiné, Catió, metido numa guerra sem vitória possível e ainda menos sentido que o de soprar contra a história (...).
"22 de Novembro de 1970 e dias seguintes, foram especialmente tensos. A tempestade que carregava a rotina quarteleira era mais pesada que costume. O comando andava de sobrolho mais fechado. Tinha de haver bernarda grossa. Depois amainou. Para se voltar à rotina das morteiradas do Nino. Dia sim e dia não. E o dia 22 de Novembro de 1970 ficou-se como um dia em que até pouco se passou. Ali, em Catió. Porque não longe dali, muito se passara.
"Só mais tarde vim a saber um pouco do que se tinha passado nesse 22 de Novembro de 1970 tornado um dia particularmente tenso na rotina militar de Catió. Nesse dia, o governo português tinha executado uma operação de guerra contra outro país soberano e inimigo, invadido a sua capital com o fito de mudar-lhe o Presidente (assassinando-o) e o governo, colocando no seu lugar um governo amigo dos colonialistas, liquidando a retaguarda do PAIGC (em que se incluía o assassinato de Amílcar Cabral e dos restantes altos dirigentes) e libertando os militares portugueses que tinham sido capturados pela guerrilha. Foi a operação Mar Verde, arquitectada e executada por Alpoim Calvão, aprovada por Spínola e por Marcelo Caetano, neutralizadas que haviam sido as vozes discordantes do Ministro do Ultramar, Silva e Cunha, e do Ministro dos Negócios Estrangeiros, Rui Patrício.
"Na noção adquirida da impossibilidade de ganhar a guerra na Guiné, era a aventura do tudo ou nada. E, como se a guerra tivesse solução numa noitada num casino, restava a aventura. Era a hora dos aventureiros" (...).
2. Texto do Manuel Mata, ex-1º cabo apontador de Carros de Combate M 47, do Esquadrão de Reconhecimento Fox 2640 (Bafatá, 1969/71)
Caro Luís Graça,
Quanto ao apelo do Camarada João Tunes - Onde estavas a 22 de Novembro de 1970? (1) -,envio a minha modesta participação.
Um Abraço
Manuel Mata
22 De Novembro de 1970
A vida no Esqadrão decorria com toda a normalidade que era habitual, no dia-a-dia da unidade em Bafatá, não fossem as notícias que ouvi, cerca das 6 horas da manhã na rádio de Conacri, onde anunciavam com alguma ansiedade a invasão da República da Guiné e apelava aos Boinas Verdes para virem em seu auxilio, pois estavam a ser invadidos por tropas colonialistas Portuguesas.
Fiquei estupefacto e comecei a falar com a rapaziada do Esquadrão, mas todos iam ficando pensativos sem nada se conseguir relacionar. Perguntou-se ao Manuel, um ex- turra a trabalhar na padaria do Esquadrão, como padeiro, se tinha conhecimento de alguma coisa. Resposta negativa, como era óbvio. Mas para nós, ele sabia e sabia fazer muito bem o seu jogo entre as partes envolvidas, o mesmo se passou com os restantes trabalhadores guineenses do Esquadrão o Braima e o Samba.
Já isso não se verificou com o Teófilo e o seu amigo, sobrevivente do desterro e residente em Bafatá (2), que comentaram:
- Pura intromissão, na vida de um país vizinho, só de um Governo Fascista e Colonialista como o Português, tem que ser derrubado!.
As notícias continuaram na rádio, ficamos a saber da entrega de um dos grupos, da libertação dos nossos prisioneiros, da destruição da pista de aviação, de muitos mortos, mas nada de muito concreto. Como era fácil adivinhar, foi um momento de muita alegria ao saber-se que haviam libertado os nossos prisioneiros.
Como nada mais se sabia, pedi a familiares e amigos na metrópole que estivessem atentos às notícias e que me enviassem a prestigiada revista da altura, a Vida Mundial. Semanas mais tarde lá chegou, com uma reportagem da entrevista, na televisão, com um dos prisioneiros, mas nada de grande luz sobre a situação da invasão à República da Guiné-Conacri.
Ansiei ao longo dos anos pela verdade, como certamente todos nós, finalmente, o livro de António Luís Marinho "Operação Mar Verde", nos veio clarificar toda a preparação maquiavélica da Operação.
A escolta Piche – Buruntuma
Esta escolta efectuada pelo 3º Pelotão do Esq Rec Fox 2640, destacado em Piche [na região de Gabu], dias antes do 22 de Novembro, teve como objectivo levar militares africanos e alguns civis desconhecidos na área, embora se tenha falado em homens da 1ª Companhia de Comandos Africanos. Teriam seguido para Conacri, hipótese levantada e comentada pelos homens do 3º Pelotão depois do conhecimento da invasão.
A destruição da revista "Vida Mundial"
Um dos meus passatempos, na Guiné, era ler, ouvir e gravar música subversiva para os amigos que me pediam, principalmente, Zeca Afonso, Adriano Correia de Oliveira e tantos outros, que me chegavam da Metrópole, por intermédio de um estudante universitário de Coimbra, irmão do 1º Cabo Antunes (já falecido).
O comandante lá foi informado deste meu hobby. Então para me manter ocupado, andou durante algumas semanas, todos os dias, cerca das 10 horas da manhã a visitar, a arrecadação de material de guerra e aquartelamento. Entrava mudo e saía calado, deitava o material das prateleiras para o chão. Eu voltava a colocar o material nos devidos lugares, e assim foram decorrendo os dias. Já com alguma preocupação, falei com o 2º Comandante, prometeu ir ver o que se passava, disse-me depois:
- Termina com as gravações senão vais parar a Piche!
Claro, continuei mas fora de horas... Terminada a comissão, com receio que algo pudesse acontecer, visto estar já referenciado, pedi a um amigo insuspeito que me trouxesse todo o material subversivo, onde tinha as gravações, livros, incluindo a Vida Mundial.
Este amigo, o 1º Cabo Machuqueira, como não fui na semana seguinte, da passagem à disponibilidade, levantar o referido equipamento, e com medo da PIDE/DGS, queimou todo o material, que lhe confiei.
Manuel Mata
_________
Nota de L.G.
(1) Vd post de 4 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCXXXII: Onde é que vocês estavam em 22 de Novembro de 1970 ? (João Tunes)
(...) "Terminei há pouco a leitura do livro de um jornalista da SIC sobre a famosa operação Mar Verde (22 de Novembro de 1970). Haverá camaradas que nela participaram. Outros, caso meu, viveram-no na tensão da espera do resultado (eu estava em Catió nessa altura). Terá sido também o teu caso e de outros muitos camaradas.
"Recomendo a leitura do livro (Operação Mar Verde - um documento para a história, de António Luís Marinho, Editora Temas & Debates). Pela minha parte, não tendo gostado nada do culto prestado a Alpoim Calvão, acho que é obra que ajuda a explicar-nos como estávamos ali e como, nos altos comandos, éramos comandados.
"Seja qual for a opinião que se tenha sobre o Mar Verde, o certo é que se tratou da cartada maior e mais arriscada na guerra em que estivemos metidos. A minha opinião pessoalíssima está no meu blogue, Água Lisa (6) ."(...).
(2) Vd post de 26 de Março de 2006 > Guiné 63/74 - DCLIV: Bafatá: o Café do Teófilo, o desterrado
(...) "Contou-me que tinha sido desterrado para a Guiné no inicío dos anos trinta, num grupo de 40 elementos dos quais restavam três à data, estando ele e um outro em Bafatá de quem não me recordo o nome - sei que tinha uma taberna na Tabanca entre a casa dele e o Hospital (pessoa com que, de resto, privei algumas vezes, para ouvir os programas em Português da BBC de Londres).
"Sei que o Sr. Teófilo tinha vindo à Metrópole apenas duas vezes, tinha uma estima profunda pelos Guineenses, pois foi esse povo maravilhoso que o tratou de inúmeras doenças, e só assim conseguiu sobreviver" (...).
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
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