quarta-feira, 9 de julho de 2008

Guiné 63/74 - P3039: Poemário do José Manuel (20): Mãe, se eu não regressar, lembra-te do meu sorriso...

Guiné > Região de Tombali > Mampatá > CART 6250 (1972/74) > "Em Nhacubá... tendas de campanha, bidons de alcatrão, máquinas de engenharia, calor, muito pó e solidariedade"....

Foto, poemas e legendas: © José Manuel (2008). Direitos reservados.

1. Mensagem, com data de 28 de Abril de 2008, remetida pelo o José Manuel Lopes (*):

Camarada Luís: Enviei até agora 62 poemas que tinha guardados (**). Algures em casa de minha avó, na Régua, onde vivi até me casar em 83, devo ter mais alguns junto às coisas que trouxe da Guiné. Me lembro que numa altura, perturbado, sem saber o que fazia, destrui parte do que trouxe. Tudo que conseguir recuperar enviarei para o nosso Blogue, por agora pouco mais tenho para enviar, pois algumas coisas são muito pessoais e outras podem ferir a sensibilidade de terceiros.

Um abraço
jose manuel


2. Comentário de L.G.:

Publicam-se hoje mais dois poemas do Josema, dos tais 62 que foram salvos do fogo da lareira: voltam a aparecer, como temas recorrentes e fortes da poesia do José Manuel Lopes, a figura da mãe, a infância, o Rio Douro, a paisagem única do Douro com os seus vinhedos, a morte, a saudade, o desejo do regresso, as mães que choram em silêncio pelos filhos ausentes, longe, na guerra...

É um registo, intimista, que só pode enobrecer o nosso camarada duriense e cuja divulgação nos honra a todos. É um privilégio o nosso blogue poder publicar este tipo de documentos, 34 anos depois do fim da guerra. Que seja também um estímulo e um exemplo para aqueles de nós que guardam, no velho baú do sótão, papéis amarelecidos pelo tempo, com os seus versos do tempo de guerra, e que por pudor, ou por excessivo sentido autocrítico ou por simples esquecimento não os divulgam... Este blogue serve justamente para isso: para dar à luz do dia o testemunho, emocionado, da nossa passagem pelas terras da Guiné, em tempo de guerra... Não fazemos juízos de valor (muito menos literários) sobre o que publicamos. Basta-nos a autenticidade dos documentos, e a vontade de comunicarmos uns com os outros... Infelizmente não temos todo o tempo do mundo: grande parte das memórias da guerra da Guiné vão morrer connosco... Por isso, camarada, não deixes que sejam os outros a contar a tua história por ti... Em verso, em prosa, em imagem... LG


Um sorriso...mãe

Mãe
se não regressar
lembra-te do meu sorriso
aquele sorriso malandro
a mendigar o perdão
para me não castigares
por ter faltado às aulas
para ir p'ró rio nadar
oh
como era bom nadar
da fraga do cavalo saltar
o Douro atravessar
e as uvas apanhar
e depois
chegar a casa
com um sorriso para te dar.

Mampatá 1973
josema


Até ao nosso regresso...

Porque choram as mães?
mártires de coração partido
desta guerra sem sentido
porque choram elas?
heroínas anónimas
sem louvores
nem medalhas
eternamente esquecidas
choram porque sofrem
choram porque temem
as notícias do correio de amanhã
choram enquanto aguardam
o regresso desejado.

Mampatá
Natal de 1972
josema
_____________

Notas de L.G.:

(*) Sobre o autor, vd. poste de 27 de Fevereiro de 2008 >Guiné 63/74 - P2585: Blogpoesia (8): Viagem sem regresso (José Manuel, Fur Mil Op Esp, CART 6250, Mampatá, 1972/74)


(**)Vd. poemas já publicados (Inicialmente, do poste 1 ao 7, foram publicados vários poemas, em cada poste) (***):


1 de Julho de 2008 > Guiné 63/74 - P3010: Poemário do José Manuel (19): Aqueles assobios por cima das nossas cabeças...

22 de Junho de 2008 > Guiné 63/74 - P2973: Poemário do José Manuel (18): Não se morre só uma vez...

15 de Junho de 2008 > Guiné 63/74 - P2946: Poemário do José Manuel (17): A Companhia dos Unidos

2 de Junho de 2008 > Guiné 63/74 - P2911: Poemário do José Manuel (16): Saudades do Douro e do Marão...

25 de Maio de 2008 >Guiné 63/74 - P2884: Poemário do José Manuel (15): Dois anos e alguns meses

17 de Maio de 2008 > Guiné 63/74 - P2852: Poemário do José Manuel (14): É tempo de regressar às minhas parras coloridas...

15 de Maio de 2008 > Guiné 63/74 - P2844: Poemário do José Manuel (13): A matança do porco, o Douro, os amigos de infância, os jogos da bola no largo da igreja...

9 de Maio de 2008 > Guiné 63/74 - P2824: Poemário do José Manuel (12): Ao Zé Teixeira: De sangue e morte é a picada...

2 de Maio de 2008 > Guiné 63/74 - P2806: Poemário do José Manuel (11): Até um dia, Trindade, até um dia, Fragata

24 de Abril de 2008 > Guiné 63/74 - P2794: Poemário do José Manuel (10): Ao Albuquerque, morto numa mina antipessoal em Abril de 1973

19 de Abril de 2008 > Guiné 63/74 - P2776: Poemário do José Manuel (9): Nós e os outros, as duas faces da guerra

14 de Abril de 2008 > Guiné 63/74 - P2757: Poemário do José Manuel (8): Nhacobá, 1973: Naquela picada havia a morte

(***) Vd. os sete primeiros postes:

3 de Março de 2008 > Guiné 63/74 - P2608: Poemário do José Manuel (1): Salancaur, 1973: Pior que o inimigo é a rotina...

Pior
que o inimigo
é a rotina
quando os olhos já não vêem
quando o corpo já não sente (...)

9 de Março de 2008 >Guiné 63/74 - P2619: Poemário do José Manuel (2): Que anjo me protegeu ? E o teu, adormeceu ?

Uma vida quanto vale?
na mira da minha arma
só há vultos
sem sentido
corpos sem alma
consciências amordaçadas
na outra mira
estou eu? (...)

O nascer de um bruto

Já não sei rezar
já não acredito
já não sei amar
só sei que grito (...)

13 de Março de 2008 > Guiné 63/74 - P2630: Poemário do José Manuel (3): Pica na mão à procura delas..., tac, tac, tac, tac, tac, TOC!!!

Estradas amarelas
corpos cobertos de pó
pica na mão à procura delas
o polegar ferrado no pau
tac, tac, tac, tac, tac, tac (...)

Tenho saudades
do amor que não se compra
daquele que se sente
o tal
que vem de dentro (...)

19 de Março de 2008 > Guiné 63/74 - P2665: Poemário do José Manuel (4): No carreiro de Uane... todos os sentidos / são poucos / escaparão com vida ? / não ficarão loucos ?


A escuridão
pode não ser o fim
se após a noite
vier o dia (...)

Pensar que amar é doré não amaramar
é dominar
a violência
que há em nós (...)

-Sabes?Sonhei
que as coisas boas
não acabaram (...)

Seria bom pronunciarnuma doce ilusão
um até sempre (...)

Quero sonhar
e não consigo
viver um mundo
que não tenho
nem encontro (...)

Gostava de vos falar
dos esquecidos
dos heróis que a história
não narra (...)

Olhos semi cerrados
querendo ver
para além das árvores (...)

28 de Março de 2008 > Guiné 63/74 - P2694: Poemário do José Manuel (5): Não é o Douro, nem o Tejo, é o Corubal... Nem tudo é mau afinal.... Há o Carvalho, há o Rosa...(...)

Calor, cansaço, suor
saudades de tudo
e de um rio... (...)

Ouve-se um violão
numa noite de luar
tocado pelo Gastão
p'ra algo comemorar
cantigas de Zeca Afonso (...)

As brincadeiras loucasacabam por ter sentido
se as alegrias são poucas
neste cantinho perdido (...)

Guernica!
pintura
visão, mensagem, recado?
para quem e porquê? (...)

Quantas batalhas e guerrasgeradas pela ambição?
quantos pior que feras
mataram o seu irmão? (...)

O calor húmido nos envolve
abraça-nos a escuridão
e a noite se faz dia
c’o ribombar do trovão (...)

Neste imenso sofrerpensar Nele ajuda
mas Ele parece não ouvir (...)

Um ruído vem do céu
e há cabeças no ar
hoje é dia de correio
há novas para chegar (...)

Quero irmas não sei onde
tudo me parece um delírio
sem sentido nem razão
neste mundo desumano (...)

5 de Abril de 2008 Guiné 63/74 - P2723: Poemário do José Manuel (6): Napalm, que pões branca a negra pele, quem te inventou ?

10 de Abril de 2008 > Guiné 63/74 - P2739: Poemário do José Manuel (7): Recuso dizer uma oração ao Deus que te abandonou...

(...)

Recuso dizer uma oraçãoao Deus que te abandonou
não sei se é do nó
que me aperta a garganta
ou da revolta que brota do meu peito
só sei que não consigo
desculpa... (...)

Escuta mãe
espero como nunca um conselho
mas não consigo ouvir a tua voz
aguardo um aviso
um sussurro de alguém
e só me responde o silêncio
como é duro estar só (...)

Este pó que nos seca a garganta
este calor húmido que sufoca
esta terra vermelha
que se cola ao corpo
estes estranhos odores (...)

Não quero os dias todos iguais
nem águas da mesma cor
pois a vida não é sóalegrias e beleza
e ainda muito menos
só a dor e a tristeza (...)

Como eram belas
as miúdas que conheci
as amigas as amantesas
de amores realizados (...)

1 comentário:

Anónimo disse...

Obrigado ao Luis Graça e ao Josema.
Assim, anotando o P3039 9 Jul Poemas vai-se lá...descontrai-se ou entra a "calmaria"...
Há outras formas e eu sugeri isso mesmo.
Um abraço do TM