"Encontrei esta fotografia num Boletim Cultural da Guiné Portuguesa de 1972. Lembrei-me logo dos meninos de Missirá educados por Lânsana Soncó,lembrei-me das tábuas com os versículos do Corão que se podiam comprar ao pé de Fá Mandinga.Em Missirá e Finete tínhamos acordado que estas aulas eram complementares às do professor da primária,foi assim que os meninos tinham uma boa parte do dia preenchido"(BS).
"Os caramôs eram muito influentes no chão fula havia escolas onde se reuniam e preparavam,caso da região de Contuboel e Sonaco.Gosto muito de fotografias em estúdio, libertam a majestade do visado,a objectiva não esconde a artificialidade da atmosfera dos cenários,faz avultar o personagem, dá-lhe o corpo inteiro.Continuo a não encontrar relatos sobre as relações entre o PAIGC e as autoridades religiosas durante a guerra.Ora, eram os caramôs quem mais viajava entre a Guiné e as escolas do Senegal e Conakry...à atenção dos histotiadores" (BS).
"O que mais surpreende quando vejo bailado moderno é a herança das encenações africanas e asíáticas.No caso dos mandingas, tudo começa com uma relativa lentidão, como que para aclimatar o espectador, que participa directamente, aplaudindo e intervindo no coro.Depois,a roupagem enche o olho,toma conta dos sentidos,quando a batucada entra no frenesim, dá-se a fusão como no espectáculo total" (BS).
Fotos (e legendas): © Beja Santos (2008). Direitos reservados.
Texto do Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70) (1), enviado em 26 de Março de 2008 (Texto revisto):
Luís, Espero que tenhas vindo retemperado das férias pascalianas. Vou descansar entre sábado e 10 de Abril, antes porém pretendo fazer o segundo e último episódio na neuropsiquitria em Bissau. Depois vou distanciar-me, os últimos meses em Bambadinca não foram fáceis, sou um militar dividido, irremediavelmente dividido pelos sonhos em retomar uma nova convivência familiar e os estudos, e o sentido do dever em prol dos meus soldados, que eu tanto apreciava. Um desconforto que virá comigo até Lisboa. Já aí tens algumas imagens do HM 241, vou enviar os livros do Baptista-Bastos e do Raymond Chandler. Recebe o abraço do Mário.
Operação Macaréu à vista > Episódio XXXVII > NA NEUROPSIQUIATRIA DO HM 241
por Beja Santos (1)
(i) Arrumações no caderninho viajante, alguma correspondência
Enquanto a Cristina estuda e lê nos lugares mais frescos nas horas acaloradas, procuro pôr alguma ordem nas notas amontoadas, quer pelas leituras dos livros emprestados por D. Violete quer pelas citações retiradas das leituras feitas no Centro de Estudos da Guiné Portuguesa.
O caderninho viajante vai engordando, já penso em comprar outro, este está como se fosse uma lista telefónica das mais repolhudas, escrevo a definição de caramô, mais adiante refiro a obra “Contos do caramô, lendas e fábulas mandingas da Guiné Portuguesa”, de Viriato Augusto Tadeu, Agência Geral das Colónias, de 1945.
Tomo igualmente nota do seguinte: “Os caramôs, os agentes religiosos, vinham da Gâmbia e do Casamansa. Os do Futa Jalon só intervieram com maior constância depois da conquista do Gabu, em 1874. Os caramôs instalaram-se em Jabicunda (regulado de Gussará) e em Bijine (regulado de Badora)”. Numa nota ao lado, escrevo: perguntar o que é Chapa Bissau, quais os bairros do Cupelom, o que é o Bandim Alto.
Depois continuo, registando alguns apontamentos extraídos de um texto assinado por Aleixo Justiniano Sócrates da Costa, facultativo do ultramar, publicado em 1885 no Boletim da Sociedade de Geografia de Lisboa, assim: “São majestosos os temporais na Guiné. São medonhas aquelas convulsões da natureza, que, ali, grande em tudo, até nos horrores da tempestade, patenteia o seu imenso vigor e se expande em toda a sua altiva e orgulhosa beleza… Nuvens de densa negrura, ou de cor acobreada, reverberando baços e fulvos clarões, vão-se acastelando entre N e SE, correndo em direcção contínua ao vento que sibila o horrísono. Súbito, medonho ribombo anuncia que o trovão rompe a batalha. É o clarim da tempestade. Para logo os relâmpagos sulcarem ininterruptos a tenebrosa densidade do caos, e o eco medonho dos trovões, percutindo o espaço um após outro, abala a natureza inteira em tremenda convulsão”.
Guardei estas notas pela sua pujança romântica e pelo cromatismo sonoro da descrição. E o Dr. Sócrates da Costa surpreendeu-me também nas suas conclusões do que viu e viveu na Guiné: “Bem aproveitada, a Guiné pode tornar-se para nós um segundo Brasil: porque em nenhuma parte temos tanta facilidade de nos estendermos em território e domínio como ali. A Guiné é a chave de oiro que nos abre as portas do continente africano”.
O Dr. Sócrates da Costa, convém reconhecer, não tinha ilusões sobre o clima brutal da região e apelava para que o estabelecimento de colónias penitenciárias fosse transferido para a África Oriental, já que Cabo Verde e Guiné eram reconhecidamente insalubres para acolherem degradados, uma grande parte da sua população.
Do Dr. Sócrates da Costa passei para o registo de korá, que ouvira em Bambadinca, lembrava-me uma harpa eólica pela melodia obtida, e então escrevi o que retirara de uma monografia de António Carreira: “Instrumento com caixa de ressonância constituída por metade de um cabaço grande, coberto de pele de cabra, bem seca e esticada. Uma haste encaixada no cabaço, serve de braço. Ao longo dele estendem-se cordas de nylon que são alteadas por um cavalete de madeira, colocado na caixa de ressonância. Com korás, os jograis mandingas executam números de música de alto valor compositivo - música melodiosa, bonita e habilmente tocada”. Acrescento uma outra nota ao lado da página : “Perguntar ao comandante Teixeira da Mota onde ficava a Sociedade Agrícola do Gambiel. Apurar se o Centro de Estudos da Guiné Portuguesa possui os Anais do Club Militar Naval referentes a 1909”.
Leio e respondo depois ao Pires, enviara-me um aerograma com data de 23 de Abril. A notícia mais importante era de que a partir do passado dia 15 fora suspensa toda actividade operacional de natureza ofensiva na Guiné, o comando em Bambadinca, em alternativa, ordenara patrulhas de contacto junto das tabancas do sector, o Pel Caç Nat 52, bem como a CCaç 12, desdobrava-se pelas tabancas em autodefesa, sobretudo em Badora, Joladu e Xime.
O Pires não sabia o que é que se estava a passar com o termo dos patrulhamentos ofensivos, falava-me de dias passados em Demba Taco, Amedalai, Sansacuta ou Bricama. A seguir, e sem nenhuma explicação por parte dos nossos comandos, a guerra recomeçara e intensificara-se não com grandes flagelações ou emboscadas mortíferas, mas com minas e roubos junto das populações.
A outra notícia prendia-se com a previsível partida de alguns dos nossos soldados e a chegada de outros. Era assim a rotina: umas vezes havia emboscada na missão do sono do Bambadincazinho, outras vezes eram as patrulhas nos Nhabijões ou em Samba Silate. O Pires referia ser igualmente previsível a partida das companhias sediadas no sector L1, havia a informação da chegada de um novo batalhão lá para finais de Maio.
Na resposta, informei-o que dentro de dias iria para o hospital, coisa de pouca monta, esperava regressar a Bambadinca em meados de Maio, tinha assumido o compromisso de dar aulas aos soldados básicos da CCS, interrogava-me agora se teria sentido tal tarefa com a tropa em vias de partir. Falei-lhe das cerimónias do meu casamento e do batuque organizado por Cherno.
Noutra correspondência, informei o comandante Teixeira da Mota de que se falava de um revés político muito grande com o massacre de vários oficiais na região de Canchungo. Dava-lhe igualmente a informação do que se estava a passar no sector de Bambadinca, encontrara oficiais de Bafatá e Nova Lamego que referiam o recrudescimento da guerra em todo o Leste, o PAIGC estava dotado de moderno equipamento, controlava cada vez mais território, nós víamos em Bambadinca que o PAIGC não se atemorizava com os patrulhamentos que fazíamos no Geba. Aliás, estavam intensificados os ataques às embarcações em Ponta Varela, procurava-se minar o moral dos transportadores que se afoitavam no Geba estreito. Escrevi igualmente à minha Mãe e a Ruy Cinatti, mas a ambos omiti que iria ser internado na neuropsiquiatria, muito em breve.
(ii) A consulta e o internamento
Era um médico afável, tinha uma voz tranquila e um olhar meigo. Leu atentamente o diagnóstico do David Payne, para o fim tinha o sobrolho carregado, explicou-me que com base naquela informação eu dava sinais de um grande desgaste, que o quadro de insónias podia descambar numa desordem grave, à cautela seria internado durante uns tempos, com os tranquilizantes ou ansiolíticos em breve poderia voltar retemperado para a guerra. “Não se apoquente, é compreensível que com a enorme pressão com que tem vivido dê sinais de depressão e nervosismo. Vai repousar muito, procure não dar atenção às doenças dos outros. Entra amanhã de manhã na enfermaria, dentro de três, quatro dias voltaremos a conversar”.
Mesmo ciente da situação, a Cristina não escondeu que se sentia penalizada, achava um preço demasiado alto para este casamento. Prometeu ir visitar-me regularmente, confiava que o prazo de uma semana iria ser cumprido. E começou a falar no seu regresso, nos exames, na procura de casa, na nova vida que nos aguardava. Estava triste mas confiante.
Apresentei-me no HM 241, deram-me um pijama e alguém conduziu-me até ao primeiro cabo Morais, certamente o zelador daquele serviço. Dias mais tarde, dir-me-á à queima-roupa: “Sou maqueiro por acidente, do que gosto de fazer é proteger algumas meninas coristas do Parque Mayer”. Logo me apercebi que tinha mudado de universo, ali a hierarquia tinha outro significado, o primeiro cabo Morais cuidava de gente muito frágil, falava sem hesitações, com voz sacudida, para que percebêssemos onde estava o poder, ali quem obedecia eram os doentes, gente com horas para levantar e deitar, tomar a pica no rabo, engolir comprimidos, deambular nas proximidades, tomar banho, almoçar, voltar aos comprimidos, ter uma hora para visitar os outros doentes, receber visitas, deitar ou escrever, jantar, ingurgitar mais comprimidos, a noite e o sono anunciam-se por uma luz de azul fosco.
Entrámos numa enfermaria de três camas, foi colocado na do meio e apresentado aos meus dois colegas, o capitão Oliveira, oficial de informações, e o furriel Alves, com a especialidade de sapador. Vale talvez a pena introduzir a atmosfera em que os três perturbados iriam viver.
O capitão Oliveira era licenciado em Filologia Germânica, professor algures no Norte, entre o Porto e o Minho, homem de gestos calmos, voz igualmente branda, com grande sentido da resignação, manifestamente culto. Feitas as apresentações, equacionámos os nossos padecimentos. O que levara o capitão Oliveira até ali? Vou tentar reconstituir a sua argumentação: “Oiça, eu creio que há aqui uma tramóia muito grande. Nada justifica este internamento, tal como foi feito até é vexatório, parece que eu sou maluco, não sei lá muito bem como é que vou ser olhado quando regressar à minha unidade, onde toda a gente me respeita. Um dia pedi uma evacuação Y, veio um helicóptero, asseguro-lhe que usei dos bons modos, atravessei a pista, vinha a guiar um jeep, entreguei um aerograma para pôr no correio em Bissau, sou filho único, às vezes esqueço-me de escrever ao fim do dia, a minha mãe é diabética e tem tensão elevada, não lhe quero provocar mais sofrimento. Você não pode imaginar o charivari que esta minha atitude provocou. O tenente aviador parecia possesso, exigiu falar ao comandante, chamou-me doido, nunca tinha visto uma coisa assim, como se um filho único não tivesse direito a uma fraqueza e quisesse que a sua santa mãe recebesse notícias a tempo e horas. O comandante parecia uma besta, gritava comigo e exigiu que eu fosse ao médico.
Disseram-me dias depois que desta vez o escândalo seria abafado, o médico, um gajo simpático, pediu-me mais autocontrolo, respondi-lhe que me sentia bem, em consciência voltaria a fazer o que tinha feito, como acabei por fazer. Para você ver o que é que a puta da guerra faz às pessoas, talvez uns quinze dias depois esqueci-me de novo de escrever à minha santa mãe, repeti a evacuação Y e expliquei que para além do aerograma eu precisava de mudar de ares, trabalhava a um ritmo vertiginoso, toda a gente me pedia papéis, eram relatórios de situação, eram documentos sobre a evolução da guerrilha, a preparação de operações, tudo caía sobre mim. Ainda hoje estou para entender a desumanidade deste internamento, só porque pedi duas evacuações Y porque tenho dificuldades emocionais e sou filho de uma mulher completamente só”.
Eu não sabia o que é que havia de responder ao capitão Oliveira, sentia agora que tinha entrado numa esfera mental diferente, não me passava pela cabeça que fosse possível pedir uma evacuação Y para mandar um aerograma, ainda por cima a história era repetida, dava largas à imaginação sobre o tipo de distúrbio que sofria o capitão Oliveira. E depois daquelas duas evacuações Y entendi que não devia agravar o irracional que submergia naquela enfermaria falando no expediente a que recorreram um médico e um comandante de batalhão para eu poder ter vindo a Bissau casar-me.
Voltando-me para o furriel Alves à espera de uma narrativa menos acabrunhante, fiquei a saber que há explosões que não deformam o corpo mas corroem o espírito. Lá para os lados de Farim, o furriel Alves recebeu a incumbência de desactivar umas granadas de morteiro, falou-me também de um fornilho, desceu da viatura e na picada accionou um sistema de várias minas anti-pessoais. Sentiu que tinha subido às nuvens, aterrou chamuscado, apalpou-se e o milagre estava à vista: nem um dedo ficara fracturado, é verdade que a partir daí entrara numa agitação, nada o repousava, a ânsia de falar era enorme.
Estava ele a contar-me todas estas manifestações quando o capitão Oliveira interrompeu à bruta: “Porra, oh Alves! Cale-se uns momentos, você fala pelos cotovelos, essas minas que você pisou entraram-lhe em qualquer ponto da cabeça, você fala sem descanso, está insuportável, não percebo que medicamentos é que lhe dão, cada dia está mais agitado, você é chato, endoideceu e quer endoidecer os outros”. Pareceu-me que o capitão tinha alguma razão. Eu já tinha vestido o pijama, o Alves falava-me com a cara em cima da minha, deu-me um encontrão no ombro, penso que ele queria fazer-me entrar na sua realidade para que eu compreendesse o seu corpo em turbilhão: “Olhe, alferes, a todo o momento seguro os meus dedos, procuro um espelho para ver se está tudo no sítio, obedeço ao médico, tomo os medicamentos todos, não percebo para quê, não paro de falar, não consigo dormir, o dia é todo igual, estou sempre desperto, não me sai da cabeça aquela explosão, já não sei se desmaiei ou se vivi um sonho, estou muito contente de não ter perdido nada, mas o que estou a viver agora lembra-me o que ouvia dizer as velhas lá da minha aldeia, parece que tenho o diabo no corpo, quero constantemente falar, quero companhia, tenho raiva a quem fecha os olhos depois de tomar os comprimidos. E quando esse cabo convencido que é um doutor, que não passa de um sacanão, entra aqui aos berros para dar a injecção no rabo só me apetece estrangulá-lo”.
Pela primeira vez na vida arrependi-me de ter vindo casar a Bissau sem ter previsto que me ia meter num internamento tão estranho, sabia o que era a insónia, a ansiedade, o abatimento, sentira os efeitos do Vesperax quando viera em Janeiro tratar-me em Bissau, tivera a alegria de um dia, em casa dos Payne, ter acordado com a sensação de que houvera uma grande vitória. Agora sentia-me afundado, incapaz de cooperar com dois seres mergulhados num pesadelo, com a mente obscura, e, como iria ver mais adiante, os dois em conflito e prontos para se atacarem. Não está longe o dia em que o Alves agrida o Oliveira com uma cadeira de plástico e o Oliveira ameace o Alves com uma faca romba.
Entrou o 1º cabo Morais e restabeleceu a ordem, tonitruante. Tomei a primeira injecção, mais comprimidos de Tryptizol 25, afundei-me na almofada, ainda vi chegar uma lavadeira que trazia roupa do capitão Oliveira, este sorriu-lhe e pediu com voz ciciante que tirasse a blusa pois queria massajar-lhe os seios. Adormeci com o Alves a imprecar, chamando-lhe obsceno e falso doente.
Vou acordar trôpego e vagante, demorei tempo a perceber onde estou mas bastou nova gritaria entre o Oliveira e o Alves para tudo ficar esclarecido. O pior veio depois, quando fomos para um pequeno refeitório onde comi o primeiro frango cozido, intragável, com couves e batatas, também intragáveis. Para minha surpresa, os meus colegas de quarto acalmaram-se e consegui ler. O primeiro cabo Morais entrou a meio da tarde para informar: “Amanhã vêm primeiro as senhoras do Movimento Nacional Feminino, uma hora depois as senhoras da Cruz Vermelha. Os três vão estar deitados, com o lençol para cima, as mãos fora da cama, bem esticadas. Livrem-se de atacar as senhoras!”.
O primeiro dia na neuropsiquitria do HM 241 prosseguiu com a hora da visita aos doentes, noutras enfermarias, noutros andares. Aprendi que os doentes se comparam, se perderam uma perna deploram aqueles que perderam duas, o mesmo se dirá de uma mão ou um olho. Durante uma hora os doentes que podem cirandar vêem chegar os helicópteros com os feridos, lançam interjeições, chegam a lacrimejar quando chegam feridos chamuscados, estropiados. O que estou a aprender é que se comparam perdas e danos, ver os outros a sofrer traz lenitivo para o próprio sofrimento. Outra coisa que aprendo é andarmos à procura de patrícios, gente da proximidade: “Olha, chegou gente que caiu numa emboscada em Binar, Pirada, Buruntuma... Está lá em cima um sargento de Catió que se queimou todo quando fazia fogo com o canhão sem recuo... Vamos ver aqueles dois soldados que vieram do bloco operatório, ficaram estilhaçados, da cabeça aos pés, numa emboscada de rockets, junto do rio, perto de Gadamael...”. Procuro abstrair-me, os comprimidos fazem o seu efeito, durmo profundamente. Vai ser assim durante oito dias completos.
(iii) De Baptista-Bastos a Raymond Chandler
No meio destas andanças, li o primeiro romance de Baptista-Bastos, “O Secreto Adeus”, da colecção Novos Romancistas, da Portugália Editora. Fui aterrar na redacção do conceituado jornal “Notícias da Manhã”, Álvaro Moreira fazia crítica cinematográfica, de onde é afastado por emitir opiniões que desagradam ao proprietário do cinema. É a redacção na sua plenitude, com as pequenas notícias, a necrologia, o desporto, o noticiário internacional, as querelas entre jornalistas conservadores e vanguardistas, a alteração dos costumes que se anuncia no dealbar dos anos 60.
"Eu lia o romance de estreia de Baptista-Bastos e questionava se o livro não tinha sido apreendido à saída da tipografia: uma redacção de jornal onde disputam nacionalistas, liberais, socialistas e comunistas; gente que lê obras impossíveis de encontrar nas livrarias,obras muito «avançadas«;descrição de relações de engate óbvio e fácil; uma redacção onde se entrecruzam todas as dificuldades do regime e da sua censura; obra incómoda e de desencanto,onde desponta,do imobilismo, uma burguesia que se vai revelar determinante na década seguinte, para os destinos de Portugal..Capa de João da Câmara Leme,Colecção Novos Romancistas, Portugália Editora,1963" (BS).
É provável que este romance seja autobiográfico, sabia que Baptista-Bastos era cinéfilo, já tinha lido os seus ensaios sobre cinema, ele é igualmente jornalista, trata-se necessariamente de uma obra arrojada, todos os seus colegas vão sentir-se aqui revistos nos personagens criados para esta redacção de “O Secreto Adeus”. Álvaro Moreira é um jovem que está a perder as ilusões nos ideais, na genuinidade na vida de relação, no que pode dar às mulheres, na mentira política, no jogo do rato e do gato com a censura. É esta a sua força, denunciar e escapar à repressão da censura, é este o secreto adeus ao desencanto de um tempo em que tudo parece imóvel e vamos crescendo.
"Nº135 da Colecção Vampiro,tradução de Ruth Belger, uma capa assombrosa de Lima de Freitas.Finalmente, leio de fio a pavio uma aventura de Philip Marlowe,é mentira que este detective da Califórnia seja brutal,ignaro,pistoleiro da série negra, pelo contrário investiga com elevado sentido prático,sabe ouvir,nunca desvaloriza a real complexidade dos casos,é directo na análise dedutiva.Aqui, trata-se de um desaparecimento que Marlowe descobrirá encobrir um crime que leva a outro.Chandler é um grande mestre,nunca mais irei largar a sua preciosa companhia" (BS).
É a primeira que leio uma obra integral de Raymond Chandler, um escritor do romance policial por acidente, um intelectual que recorreu ao detective Philip Marlowe para descobrir uma receita imaginativa de decifrar o mistério e o crime sem precisão de criar regras complexas para a resolução dos problemas. Escreve bem com regras simples, é uma narrativa na primeira pessoa cheia de economia, com elevado sentido da justiça, sem subserviências.
Desta feita, no romance A Dama do Lago, Marlowe é contratado por Derace Kingsley para desencantar a sua desaparecida esposa, a infiel e imprevisível Crystal, há um mês sem paradeiro. Marlowe contacta um antigo namorado de Crystal, é envolvido fortuitamente noutra história com um vizinho desse namorado, segue para o lago Puma onde vivera o casal Kingsley. Aqui conhece Bill Chess, também ele abandonado pela sua mulher, Muriel. O corpo de Muriel vai aparecer no lago, na autópsia descobre-se que fora assassinada. Contrariando as evidências, Marlowe segue a pista do antigo namorado de Crystal, este também vai aparecer assassinado.
No desfecho final, este detective pragmático e polido revela um criminoso enraivecido que se aproveitara de outro crime, com outros objectivos. “A Dama do Lago” tem muito pouco a ver com o romance policial problema de solução mirabolante, mas, manipula com mestria as grandes linhas de análise detectivesca. Percebo o sucesso de Marlowe e o prestígio de Chandler que escapa aos enredos rebuscados de Ellery Queen ou S.S. Van Dine.
E assim vou passar uma semana na neuropsiquitria do HM 241, aqui recebo as visitas da Cristina, assisto à crescente tensão entre o capitão Oliveira e o furriel Alves. O psiquiatra, sabe-se lá se astuciosamente, dar-me-á alta dizendo que estou recuperado, dos meus desgastes, o perigos tinha passado. O tragicómico de tudo isto é que me sinto mesmo retemperado, sou forçado a interrogar-me sobre as doenças da mente, como o estado de guerra as pode precipitar, como podemos superar a dor mental, enterrar o sofrimento, regressar àquilo a que chamamos normalidade. Um dia, sem nenhuma resposta quanto ao que fui fazer na neuropsiquiatria do HM 241, levo a minha mulher ao aeroporto e parto para a última etapa da guerra.
Última, dolorosa, inesquecível.
_______
Nota de L.G.
(1) Vd. poste de 27 de Junho de 2008 > Guiné 63/74 - P2990: Operação Macaréu à Vista - II Parte (Beja Santos) (36): Um memorável batuque, em Bissau, na Mãe de Água, em honra da Cristina
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
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