Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Bambadinca > 1971 > A viatura Unimog 411 em que perdeu vida o Sol Cond Autor Manuel Almeida Soares, da CCAÇ 12 à saída do reordemento e destacamento de Nhabições, às 11h25 do dia 13 de Janeiro de 1971... O que restou da viatura (foto) foi rebocado para Bambadinca, sede do BART 2917 (1970/72), a que a CCAÇ 12 estava afecta como subunidade de intervenção.
Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Estrada de Bambadinca - Mansambo - Xitole > 1969 > Efeitos da explosão de outra mina anticarro...
Fotos: © Humberto Reis (2006). Direitos reservados
Diário de um tuga (Luís Graça) (1):
Nhabijões, 13 de Janeiro de 1971.
E de súbito uma explosão. O sol dos trópicos desintegra-se. O céu torna-se bronze incandescente. O mamute de três toneladas dá um urro de morte ao ser projectado sob a lava do vulcão. E depois, silêncio...
Era uma hora e meia da tarde quando o meu relógio parou, na estrada de Nhabijões-Bambadinca…
A viatura vai despenhar-se num abismo imaginário. Volatizar-se como uma aeronave ao reentrar na atmosfera. Sou projectado ao lado do condutor, batendo violentamente com a cabeça na chapa do tejadilho e depois com a testa e os joelhos na parte da frente. Consigo equilibrar-me mas não vejo nada. Há uma espessa nuvem de pó que me envolve, exalando um forte cheiro a enxofre. Ainda consigo pensar: o ar está rarefeito e eu vou sufocar dentro desta maldita cabina.
Foi então que se produziu uma espécie de curto-circuito no meu cérebro, como se eu tivesse sido electrocutado. Fiquei rigidamente colado ao assento, a G3 estranhamente entrelaçada nas minhas pernas, e a vaga sensação de que a massa encefálica me tinha saltado da caixa craniana. O olhar vidrado de quem mergulhou nas profundezas da terra. O gélido terror de quem vai entrar num mundo desconhecido.
Nunca saberei ao certo quantos segundos se passaram, mas houve um solução de continuidade (essa fracção de tempo em que a consciência esteve bloqueada) até compreender que a velha GMC tinha accionada... uma mina.
Outra mina, meu Deus!, e instintivamente agarro-me àquela carcaça de mamute, mal refeito da surpresa de estar vivo.
Quando salto para o chão, o que se me depara como espectáculo são os destroços duma batalha: há corpos por todo o lado, juntamente com espingardas, cantis, quicos, canos de bazuca e de morteiro, granadas, bocados de chapa e de borracha, numa profusão indescritível. Corpos que gemem, que gritam, ou que talvez já sejam cadáveres.
Mortos! Tudo mortos, mi furiele! – grita-me o Umaru [, aqui na foto comigo,] , o puto, como lhe chamamos (e o que é ele, de resto, senão uma criança violentada pela guerra que aos dezasseis ou dezassete anos trocou a mauser das milícias pelo morteiro 60 de uma companhia de carne para canhão!?), os braços abertos, o pânico estampado no seu belo rosto de efebo, fula, filho de régulo. Era a primeira vez porventura que o via sem o seu inseparável pequeno cachimbo, que ele, fumador inveterado, usava para lhe dar o ar sério de homem grande.
O primeiro ferido que reconheço é o transmissões, todo encolhido junto à viatura destruída, numa atitude instintiva de defesa, e sob forte estado de choque. Abeiro-me depois do comandante da 1ª secção, meu companheiro de quarto, o Marques, mas ele já não reage à minha voz nem às bofetadas que lhe dou no rosto.
Aparentemente não tem qualquer fractura exposta mas de um dos ouvidos corre-lhe um fio de sangue. Procuro desesperadamente os sinais de que ainda está vivo: a sua respiração é cada vez mais fraca e não é sem um calafrio que tacteio este pulso que se me escapa.
Trágica ironia, a de mais este banal episódio de guerra: minutos antes, ao subirmos para a viatura, de regresso a Bambadinca, eu havia disputado amigavelmente o 'lugar do morto', com o Marques [ aqui na foto comigo]:
- Vais tu, vou eu, vais tu, vou eu!...
Acabei por ir eu ao lado do condutor. Mas daquela vez, e para sorte minha, a mina rebentaria sob um dos rodados duplos traseiros da GMC, embora do meu lado. O condutor tinha acabado de fazer a inversão de marcha, para regressarmos ao quartel.
Outra puta de mina, meu Deus! - que fora não detectada
pelos nossos picadores, accionada na berma da estrada,
às portas do reordenamento de Nhabijões, a escassos
metros da anterior.
Estávamos de piquete, quando duas horas antes uma viatura nossa , que ia buscar, a Bambadincao almoço para o pessoal afecto aos trabalhos de reordenamento, accionara uma mina. O nosso condutor, o Soares, teve morte imediata. Pobre do Soares, aos 20 meses de comissão...
O Furriel Fernandes, meu camarada da CCAÇ 12 (foto à esquerda, ao lado do Levezinho), ficou gravemente ferido. O alferes sapador Moreira e outro militar da CCS do BART 2917 ficaram também feridos… O Moreira, ao que parece, com gravidade. (Foto, à direita, em cima)
Mas só agora reparo no velho Tenon, no Ussumane, no Sherifo, mesmo ao meu lado, a meus pés, sem darem acordo de si. E ainda no Quecuta, no Cherno e no Samba, nosso bazuqueiro, arrastando-se penosamente sobre os membros superiores, como lagartos cortados ao meio.
As duas secções que seguiam atrás, na GMC, tinham sido literalmente projectadas pela vulcão de trotil, como se fossem cachos de bananas. Se o rebentamente da mina fosse seguido de emboscada, então seria um massacre. Eu era o único que tinha uma arma na mão, sem bala na câmara, como de costume, mas desta vez provavelmente inoperacional, devido ao choque sofrido… E, de facto, não deixo de sentir um arrepio ao imaginar-me sob a mira certeira dos RPG e o matraquear das costureirinhas e das Kalash.
Felizmente, tínhamos acabado de fazer o reconhecimento das imediações, detectando o trilho dos elementos da guerrilha que, durante a noite, tinham vindo pôr as minas assassinas… Esse trilho, mais fresco, acabava por confundir-se com os trilhos usados pela população de Nhabijões que, como é sabido, não morre de amores por nós… Por outro lado, o sítio, descapinado, não seria o mais indicado para montar uma emboscada...
É possível, entretanto, que haja mais minas pela estrada fora, mas não posso perder nem mais um segundo. Ainda hesito em mandar picar ou não o terreno, mais alguns metros em redor, mas não posso perder tempo, para logo seguir , de imediato, para o heliporto de Bambadinca com os feridos mais graves. Foram pedidas várias evacuações Ypsilon, via rádio.
Mais até do que a solidariedade entre camaradas de guerra e a minha amizade pelo Marques, o que me parece mover, correr feito louco, com os feridos a gritar pela picada fora, é talvez o sentimento do absurdo da morte, do absurdo desta guerra, a raiva contra esta guerra...
É uma corrida louca, esta, na fronteira incerta que separa a vida da morte na estrada de Nhabijões, no primeiro Unimog que me apareceu à mão, e que leva um carregamento de feridos. Três deles estão em estado de coma e têm como destino outro inferno: o hospital de Bissau, a incerteza do desfecho da luta entre a vida e a morte aos vinte e poucos anos (***)...
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Notas de L.G.:
(*) Já publicado, na I Série do blogue, sob outro título: 2 de Dezembro 2005 >
Guiné 63/74 - CCCXXIX: E de súbito uma explosão (Luís Graça)
Vd. também postes de:
23 de Setembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCV: 1 morto e 6 feridos graves aos 20 meses (CCAÇ 12, Janeiro de 1971) (Luís Graça)
6 de Março de 2009 > Guiné 63/74 - P3989: Agenda cultural (2): O pintor Manuel Botelho expõe no Porto e homenageia o malogrado Sold Cond Soares, da CCAÇ 12 (Beja Santos)
(**) O Luís Moreira é hoje membro da nossa tertúlia. Era então alferes miliciano sapador da CCS do BART 2817. Depois de recuperado ficou no BENG, em Bissau. Vim a reencontrá-lo como professor de matemática do ensino secundário. Já deve estar hoje reformado.
(***) O Marques sofreu politraumatismos que o puseram à beira da morte. Saído do coma, ao fim de duas semanas e meia, tinha uma perna gangrenada... A sua recuperação foi lenta e difícil, tendo conhecido o longo calvário dos hospitais militares (Bissau e depois Lisboa). É hoje mais um DFA (deficiente das forças armadas), além de bem sucedido comerciante na cidade de Cascais, já reformado. Infelizmente, não é membro da nossa Tabanca Grande. O Manuel Almeida Soares, por sua vez, está sepultado na sua terra, Oliveira de Azeméis. Não tenho, infelizmente, nenhuma foto dele. Dos meus camaradas guineenses da CCAÇ 12, também gravemente feridos nesta mina, perdi o rasto...
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
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2 comentários:
Fiquei parado no tempo, Fiquei quieto a relembrar o "relâmpago" que nos cega. Fui até ao 28 de Junho e a raiva de pensar que a visão se fora. A raiva que ainda sinto e, quando me falam docemente;quando me falam em napalm ou bombardeamentos; quando falam do que não sentiram... digo Meu Caro Luís Graça, para comigo bardamerda e...não digo mais...seria falta de educação aqui escrever palavrões. Pois! Para poente de Mansambo era uma ZLIFA. De quando em vez a aviação vinha e era um espectáculo. Eu adorava.A Malta até batia palmas. Não sei que tipo de bombas eram. Não me interessava. Queria era que acertassem fortemente no alvo.Pena não ser com mais frequência...sou um estupor, ou coisa pior, por ter pensado assim ou ainda penso? BÁ...
Sempre usei bala na câmara, excepto quando levava dilagrama. Isso para segurança minha.
Um abraço e um obrigado pelo pelo belo texto Torcato da 2339 Mansambo
Sobre este assunto, lembrei-me que escrevi no meu diário:
....“Existe quem não acredite no destino, mas só quem vive horas como esta, que eu e muitos vivemos, poderá pensar e acreditar na força do destino! Pois é, mais uma vez o destino actuou e por sinal num rapaz da minha companhia. Chamava-se Soares, era casado e tinha um filho de dois anos que era como é natural, todo o seu enlevo. Lembro-me que por vezes, nas nossas horas de ócio e à sombra amiga da caserna, falávamos sobre os mais diversos assuntos e ele como todos nós, comentava os seus planos futuros e risonhos, para quando chegasse à metrópole, todo ele se ria quando falava no seu “Gérinho”. Rogério é o nome do seu filho. Sim, foi hoje, dia 15 de Janeiro de 1971 que ele faleceu. Amanhã chegará o telegrama aos seus familiares anunciando o triste acontecimento. Que vai ser desses infelizes? “....
....“Findo esta narrativa, triste é certo, mas que servirá para que quando mais tarde alguém a leia, dê valor ao que sofremos aqui. Valerá a pena?”
Um abraço
GG
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