terça-feira, 3 de março de 2009

Guiné 63/74 - P3972: Blogoterapia (93): O que é difícil é ficar calado (José Brás)

1. Mensagem de 20 de Fevereiro de 2009 de José Brás, ex-Fur Mil da CCAÇ 1622, Aldeia Formosa e Mejo, 1966/68, autor do romance "Vindimas no Capim", que lhe valeu o Prémio de Revelação de Ficção de 1986, da Associação Portuguesa de Escritores e do Instituto Português do Livro e da Leitura.





O QUE É DIFÍCIL É FICAR CALADO

SE NA CALADA DA NOITE EU ME DANO
(*)

Diz-se…
Diz-se.

…que nestas coisas da vida não se deve misturar alhos com bugalhos.

Diz-se, e dito assim, sobre coisas tão comezinhas como aquelas, ninguém estranha que se digam.

Entretanto, é legítimo perguntar se é disso que se fala aqui na Tabanca Grande?

De alhos e de bugalhos? Simplesmente alhos e bugalhos?

Não me parece.

Se fosse (o que não é) , porquê, então, os criadores do blogue gastariam tempo e paciência na sua criação e manutenção, aturando as manhas de cada um, as queixas, os relatos de dores e alegrias, as fotografias de macaco ao colo, em vez de irem ao futebol, ou, ainda mais cómodo, ficarem a assistir na bancada do sofá? Umas cervejitas, umas ervilhanas (sabem o que é?), um nome feio ao árbitro (também se chamam nomes ao árbitro a partir do sofá).

Não me parece. Citando Catrieiro (que vocês não conhecem porque nunca fiz apresentações), citando o Catrieiro… “desculpem lá, a minha palavra honrada” mas a mim não me parece.

São gente de boa formação académica e humana. Viveram o suficiente para se darem ao luxo de espreitar por cima do muro, os colegas em correrias, nas bolanhas da Guiné, nos corredores da morte, nas oficinas e fábricas da cintura industrial, nos campos, nos gabinetes dos figurões que tramam (e nos tramam) a brincadeira em que jogamos todos.

Sabem que o mundo é muito vasto e que na sua vastidão esconde ainda grandes diferenças entre as gentes que o habitam, e tão pequeno que pode resumir-se numa ânsia única e universal que é o desejo da felicidade.

E quem sabe tudo isto, de saber metódico, sistematizado e profundo, não iria perder tempo apenas para que uns tantos, outros, viessem aqui mostrar a sua fotografia na porta d’armas da Amura, no ar condicionado de Bissau, na fornalha das matas do Tombali, “olhem p´ra mim que também lá estive”.

Não! Não acredito.

Criaram-na, sim, na ressaca de uma jornada complicada para si e para os vizinhos, como opção consciente das muitas necessidades que dela restou, em si próprios e nos camaradas, claras, camufladas ou simplesmente ignoradas, contudo, extremadamente emocionadas e emocionantes.

Não ignoravam que ao criar esta janela, por ela entraria a pluralidade das opiniões que se construíram numa experiência tão complexa como uma guerra travada em terras que o sistema dizia ser solo pátrio, contra gente que não concordando com isso, dava a vida pelo sonho em que acreditava.

É complicado, isto.

É complicado porquê?

É complicado porque, se tinham razão os que afirmavam que ali era Portugal, que ali havíamos chegado quinhentos anos antes, em sacrifícios, em dores, em mortes, em glórias, então, era uma guerra civil que travávamos, e o que fazíamos era matar a vizinhos, a irmãos, a filhos e netos.

Se era falsa a ideia de uma pátria com vários povos, então era uma guerra de repressão contra gente sonhadora e libertária a quem nem odiávamos.

Num caso ou noutro, ninguém deixaria de pagar a factura nem a fractura.

Vamos lá ver!

Nessa guerra houve de tudo, como em todas as guerras, aliás.

Houve gente que já embarcava com dúvidas, houve gente que partia com certezas.

Dúvidas e certezas sobre muitas coisa que lhe haviam ensinado, crescendo, fazendo-se homem, cidadãos, cristãos quase todos.

Fazendo-se soldados.

Houve gente que, embarcando com dúvidas ou com certezas, confirmou lá, umas e outras, ou mudou de opinião, ou delas se encheu lá, atolado no tarrafo, encolhido atrás do baga-baga, imaginando Lisboa à noite, ou a aldeia de onde não havia saído nunca.

E nessas dúvidas e certezas, no terreno, matando, porque sempre mata quem dispara (noutros ou em si próprio), os comportamentos foram também muitos e diversos. Heroísmos e cobardias coabitaram nos “p’rós e contras”, às vezes saindo de onde menos se esperava, fossem soldados, oficiais milicianos ou do quadro, apenas porque humanos.

Sobre a nossa tropa de quadrícula nem quero falar porque toda a gente a sabia mal preparada do ponto de vista militar e, pior ainda, do ponto de vista cultural. Com excepções, claro.

Nas flagelações que sofríamos, nas emboscadas que fazíamos ou suportávamos, desatado o fogachal, o desejo maior era de meter “os c…..” no chão e disparar a esmo, apenas para se reconfortarem a si próprios, mais do que para dar combate ordenado ao inimigo.

Tropa fandanga que, sendo-o, ainda assim foi herói. Na fome, nos medos, nos sacrifícios, na coragem de aguentar a esperança do regresso e de fugir p’rá França e, tantas vezes, no acto de enfrentar a morte com galhardia, fosse em nome da tal Pátria, fosse para salvar um amigo, fosse apenas porque era isso que deles se esperava.

O mesmo não podia dizer-se das tropas especiais, comandos, fuzileiros, paraquedistas, gente preparada, com disciplina de fogo, aceitando o combate como um papel decorado e normal, capazes de aguentar, mesmo em situações difíceis. Heróis, de outro tipo, alguns, sem deixarem de se igualar aos outros nas dores, nos medos e nas dúvidas.

Mesmo os oficiais do quadro.

A par dos que se afirmaram pela coragem física (foram muitos e aceito-os assim, ainda que não concorde com eles em termos culturais/ideológicos), além desses, vi também alguns de exemplo bem deplorável e decepcionante, negando bravatas e loas badaladas entre a escola militar e o embarque.

Um vi eu em Buba, gravemente ferido apenas porque bloqueou debaixo de fogo de canhão sem recuo, no meio de nada, a dois passos dos abrigo, salvo pela acção (heróica) de um soldado, mais tarde condecorado por bravura (o oficial, claro).

Hoje, à distância de mais de trinta anos, tudo isto se baralhou e se deu de novo.

Quanto a mim, entre as várias perspectivas com que se pode analisar um dado tão complexo como uma guerra destas, duas se destacam.

Primeiro (ou segundo?), objectiva e material. Em termos puramente militares, meios humanos e materiais, formação, motivação, estratégia, táctica, como eram e como se comportaram dos dois lados os ditos inimigos.

Segundo (ou primeiro), subjectivo e imaterial. Em termos sociais, culturais e ideológicos, quem tinha a razão, ou pelo menos a razão maior.

Não quer dizer que não se possam misturar as duas perspectivas numa mesma análise. Afinal foi mesmo isso que fizeram aquele militares, capitães, majores e mesmo alguns de maiores galões, que sabiam não ser nossa a razão maior, e que ainda que fosse, não sendo possível ganhar no terreno, era necessário substituir as armas pela mesa de negociações. Ainda assim, tendo consciência clara sobre a realidade, se empenhavam na guerra, arriscavam a sua vida e a dos seus comandados, no objectivo de deixarem o poder de Lisboa mais confortável para a possibilidade de negociações.

- Há aqueles que querem fazer a análise puramente militar.

- Há os outros que querem a análise apenas à luz da história e da lógica civilizacional.

Quanto a mim, de novo, os primeiros têm a análise mais dificultada porque muitas vezes a fazem ainda à luz dos compêndios militares que assimilaram na sua educação, compêndios não “entenderam” nunca que tal guerra será sempre difícil de travar com êxito absoluto, quer dizer, com uma vitória clara. Mesmo quando for de vitória tal luta, o que se faz é adiar a solução tendo como certo que nova guerra eclodirá logo a seguir.

Os segundos estão mais comodamente instalados na evolução da história, vendo cumprir-se, finalmente, a razão que se construíra dentro de si e consigo, em relação ao domínio que a sua terra exercia sobre outros povos e outras terras a milhares de quilómetros geográficos e em descontinuidade territorial e cultural.
Não faz sentido argumentar tipo brincadeira de rapaz pequeno “o meu canhão é maior que o teu, eu mexo no teu nariz e tu não mexes no meu”, que tem saído bastas vezes no blogue, da responsabilidade de sapateiros a subirem acima das chinelas.

Claro, sem prejuízo de excelentes e bem colocadas análises militares realizadas por gente preparada e séria, coisa que felizmente também se tem lido e considerado maioritariamente, ainda que não se encaixem muito bem tais análises nas diferenças que exibem.

A meu ver, não faz sentido continuar a afirmar que “perdemos em Guileje e ganhámos em Guidage e em Gadamael”

Como já perguntei antes, pergunto de novo.

Ganhámos o quê?

Afinal estamos a falar de guerra!

E fazer a guerra, fazer tal guerra, não é a mesma coisa que jogar a matraquilhos, meter mais bolas que o adversário, gritar ganhei e… beberem-se uns copos a seguir.

Nem somar medalhas de ouro nos jogos olímpicos, superando-se a si próprio, mais que a adversários.

Fazer a guerra é encurralar gente, é matar gente, esventrá-los, roubar-lhe a terra, as pernas, os filhos, o sonho, a luz dos olhos e o futuro.

E, a maior das loucuras, fazermo-nos isso tudo, também, a nós próprios.

Invocar a legitimidade de quinhentos anos, as glórias passadas, os heróis e os mártires não me parece grande achado, e menos legítimo me parece ainda, invocar valores cristãos e a defesa da civilização ocidental.

Da nossa identidade como portugueses fazem parte, sim senhor, tais glórias e seria estultícia sugerir que quem esteve e está com a revolta desses povos e contra as mortes de irmãos brancos e pretos, é apenas parte de um sintoma de uma tal doença psicológica e moral colectivas que fazem com que este povo caminhe de cabeça baixa.

De cabeça baixa, já agora, caminhámos sempre ao longo da história, apesar das tais glórias, heroísmos e santidades.

As descobertas (ou os descobrimentos), quer dizer, as viagens marítimas dos portugueses do século XV e XVI, pela sua grandiosidade, pelo espantoso contributo que deram ao desenvolvimento do mundo, o único que realmente demos como povo, são hoje património da humanidade.

Gente grande tivemos então, e na sequência, homens da ciência, da cultura e… da guerra, que nos pasmam ainda hoje.

Quase todos foram perseguidos pelo poder instalado nas sombras das igrejas e muitos acabaram mesmo nas fogueiras porque queriam explicar pela matemática, pela cartografia, pelas “humanidades” o que só a Deus (como diziam os interesses da “companhia”) cabia explicar.

Camões!

Pois, já cá faltava Luís. Pode estranhar-se é que não venha aí, também, o Fernando, e se não vem é, provavelmente, porque não “esteve lá”.

Camões foi dos maiores vultos intelectuais da história deste País.

Cantou as glórias dos conquistadores, sim (e também as cantaria eu se soubesse cantar).

Mas também as denunciou quando viu submeter povos à bruta, traindo acordos, massacrando, saqueando, colonizando as terras e as gentes.

com hũa armada grossa, que ajuntara
o vizo-rei de Goa, nos partimos
com toda a gente d’armas que se achara,
e com pouco trabalho destruímos
a gente no curvo arco exercitada;
com mortes, com incêndios os punimos
.”

Denunciou ganâncias e ladroeiras dos poderosos...

E ponde na cobiça um freio duro,
E na ambição também, que indignamente
Tomais mil vezes, e no torpe e escuro
Vício da tirania infame e urgente;
Porque essas honras vãs, esse ouro puro,
Verdadeiro valor não dão à gente.
Milhor é merecê-los sem os ter,
Que possui-los sem os merecer
.”
.....................................................

Este (o ouro) rende munidas fortalezas,
Faz tredores e falsos os amigos;
Este, a mais nobre faz fazer vilezas.
E entrega capitães aos inimigos
;”


Denunciou a fome e a miséria do povo no contraste com a ostentação da corte…

Vestido o Gama vai ao modo hispano
Mas francesa era a roupa que vestia
De cetim da Dalmática Veneza
….”
.........................................................

Vê que aqueles que devem à pobreza
Amor divino, e ao povo caridade,
Amam somente mandos e riqueza,
Simulando justiça e integridade;
Da feia tirania e da aspereza
Fazem direito e vã severidade;
Leis em favor do rei se estabelecem,
As em favor do povo só perecem
".

Ninguém antes dele, neste rectângulo da beira-mar, e poucos depois, entenderam tão bem a multiplicidade das culturas e das aspirações humanas respirando sobre a terra que acabávamos de aumentar.

E está visto que ainda hoje, muitas vezes, se entende Camões apenas para o que dá jeito, esquecendo que:

Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades
muda-se o ser, muda-se a confiança;
Todo o mundo é composto de mudança,
Tomando sempre novas qualidades


A meu ver, não entendendo que muita gente queira apenas análises na perspectiva militar e dos antigos feitos de portugueses, acentuando tal análise com desabafos do tipo “sou um incompreendido, este país está doente…”, não é senão voltar, sempre, ainda que no sub-consciente, à velha dictomia do Portugal progressista (1383, Descobertas, Camões, Damião de Góis, Pedro Nunes…) e o Portugal feudal, do Portugal do “Santo Ofício”.

Muita gente importante diz que a desgraça portuguesa foram as descobertas, afastando o País do desenvolvimento do resto da Europa.

Eu prefiro a senda do pensamento de José Saramago na “Jangada de Pedra”. Com as Descobertas demos um enorme contributo para as profundas mudanças do mundo, rachando a terra, separando a Península do resto da Europa, aproximando-a dos povos de África e da América, “casando” com as nativas, fazendo mulatos, abrindo vendas nos confins do mato, recriando lá a nosso forma de vida, sujando as mãos na terra e também em sangues.

Contudo, descobrindo, abrindo caminhos novos, porque partíamos já presos do nosso próprio atraso, nunca fomos capazes de aproveitar em favor próprio, os sacrifícios e as glórias, deixando para outros tal proveito, voltando a atracar a jangada ao cais de partida, dividida, divididos, sempre com um pé cá e outro lá.
Portanto…

É isso que me contém a análise à Guiné nos limitados preceitos desse humanismo que igualiza o homem na diversidade das suas crenças, no seu direito à terra onde nasceu, na sua liberdade, no sonho que o leva a enfrentar enormes perigos para reclamar tais direitos.

E entendendo isso, assumindo isso, desejando mesmo isso, não é possível acreditar que do ponto de vista puramente militar se pudesse ganhar a guerra.

Não é possível acreditar que ocupando Gadembel e Ponte Balana se acabava com a passagem dos guerrilheiros do PAIGC, numa mata densa onde outros corredores poderiam sempre ser abertos a duzentos ou trezentos metros do primeiro e no mesmo dia do seu fechamento, porque a vontade dos homens do outro lado era maior.

Será que o Comandante Chefe não sabia disto?

Será que a sua inegável coragem e disponibilidade para assumir o risco físico era só isso, e nada mais que isso?

Ou, ao contrário, sabendo-o, garantia com tais medidas, ou o tal tempo para os políticos, o seu “curriculun vitae” para os voos com que sonharia, ou as duas coisas em simultâneo?

Num caso ou no outro… ou nos três, à conta dos seus rapazes (mortos).

Pai
Afasta de mim este cálice
(*)

Montemor-o-Novo,
02.02.09

(*)Chico Buarque


2. Comentário de CV:

As minhas desculpas ao camarada José Brás por ter retido tanto tempo este brilhante texto. Poderia tê-lo incluído na série "A guerra estava militarmente perdida?", mas achei que a série Blogoterapia, era a mais adequada. Afinal o José Brás não alimenta qualquer das facções, a do sim ou a do não, antes nos leva a reflectir sobre a guerra e como cada um dos intervenientes a viu e viveu.
__________

Nota de CV:

Vd. último poste da série de 21 de Fevereiro de 2009 > Guiné 63/74 - P3922: Blogoterapia (92): A guerra nunca acaba para aqueles que se bateram em combate (Luís Borrega)

5 comentários:

Luígi disse...

Magnifico!!!
Luis de Sousa

Anónimo disse...

"Não faltará,de resto,se o book
chegar a ver a luz do Sol,quem
pretenda ver-se retratado aqui e
ali,uns com surpresa,alguns com
saudade,imaginem,outros com raivas,
outros mesmo com certo orgulho"
Filipe Bento in Vindimas no Capim

Hoje,como há vinte anos atrás,José
Brás/Filipe Bento dá-nos páginas
cheias de força.

Abraço
P.Santiago

Anónimo disse...

Texto de grande qualidade de estimulante leitura.Que óptimos alhos e bugalhos.
Tens que escreveres mais (Vindimas no Capim)
Um abraço
Colaço

Anónimo disse...

Amigo Zé Brás, mesmo que só tenha saído agora, este texto é uma bênção, não perde em nada porque é intemporal, quer dizer, exige reflexão e coloca imensas questões com as quais os membros da Tabanca se podem interrogar e opinar e pode ajudar a dar ainda mais "substância" a este espaço de intervenção que é o nosso Blogue.
Hélder Sousa

Anónimo disse...

Pois...
O Zé Brás escreve muito bem e com muita força.
E consegue escrever como furriel miliciano, participante na guerra, mas ao mesmo tempo transmite o ponto de vista dos que "fugiram" para França ou para a Dinamarca.
Por vezes, até parece que os seus escritos chegam do lado de lá da fronteira, ali em frente a Guileje.
Mas tem mais. Apresentando-se assim "fardado", aqui na Tabanca, os sapateiros que andam a subir além da chinela, por certo vão fugir, assustados.
É que a guerra ainda não acabou.
A guerra, essa danada, renasce a cada esquina da vida.
Em Bissau ou em qualquer Tabanca.
Na outra tive que participar, mas hoje, nestas guerras, adoro estar na bancada.

Manuel Amaro