1. Mensagem de Rui Silva, ex-Fur Mil da CCAÇ 816, Bissorã, Olossato, Mansoa, 1965/67, com data de 23 de Abril de 2009:
Caros camarigos (gosto desta palavra) Luís, Vinhal e Briote:
Recebam um grande abraço + votos de muita saúde extensivos a todos os ex-combatentes da Guiné, ainda mais para aqueles que de algum modo ainda sofrem de sequelas daquela maldita guerra.
Envio-vos mais um episódio das “minhas memórias” que, se julgarem apropriado, publiquem no nosso Blogue.
Rui Silva
A Companhia (816) segura por franqueletes
21 de Abril de1966
Das minhas memórias “Páginas Negras com salpicos cor-de-rosa”
...Na operação seguinte fomos a Maqué.
Maqué, outrora (antes da guerra) uma pequena povoação situada em pleno Oio, ficava na estrada que ligava Bissorã a Olossato sensivelmente a meio do percurso e um pouco depois da carreira de tiro (os velhinhos da 643 - Bissorã - e os da 566 -Olossato - assim chamavam aquele ponto da estrada de balcada comprida e marginado de denso e alto capim e com muitas palmeiras à mistura). E quem se lembra do gigante Poilão (diziam ser o maior da Guiné) mesmo ali à entrada do carreiro para Maqué e mesmo na berma da estrada Bissorã - Olossato? A sua raiz dava bancos para muita gente se sentar e descansar após mais uma odisseia batalhada no embrenhado mato por ali perto. Era a espera das viaturas. Muita laranja e cajú por ali também. Mais à frente, a ponte sobre um sub-afluente do rio Cacheu que quando destruída pelo inimigo obrigava-nos a trabalhos redobrados que era a fazer o transbordo dos abastecimentos à mão (e às costas) de uma coluna-auto para a outra. Algures ali perto, bem metida no mato e do lado Norte, ficava a casa-de-mato de Maqué. O inimigo por ali perto, respirávamo-lo.
Posso agora dizê-lo, que Maqué foi, verdadeiramente, a única casa-de-mato na área da nossa jurisdição, que nunca conseguimos descobrir ou identificá-la como tal. Tínhamos informações quanto a efectivo, armamento e outras características, mas nunca soubemos onde se instalava efectivamente o refúgio inimigo. Ao que se sabia eles usavam a táctica de mudar o lugar de refúgio com frequência para assim iludir a tropa. Eles também tinham as suas tácticas…
Por outro lado, nunca tínhamos apanhado ninguém que conhecesse essa casa-de-mato,e que nos viesse a servir de guia ou, se apanhamos, nunca se conseguiu saber, quer a bem quer a mal. Chegamos a fazer lá operações com guias de Olossato que conheciam mais ou menos a zona, operações feitas um pouco à sorte a ver se o acaso nos proporcionaria o descobrimento do refúgio terrorista de Maqué.
Nesta operação, a que me venho a referir, estávamos a 21 de Abril de 1966 e a noite estava muito escura e com total ausência de luar. Prenúncio do tempo de chuvas que estavam para chegar?
Sei que a obscuridade era total e a mata era bastante densa pois a Companhia progrediu em corta-mato, daí…
Também se deu a história de, a páginas tantas, atravessarmos um largo e relativamente fundo charco e na altura ouvir um ruído animalesco que um dos indígenas, carregador de granadas, que logo pareceu mudar de cor (preto-claro?) do grupo, admitiu ser um crocodilo. Com razão ou não, o charco nunca mais acabava para os que lá iam dentro na altura. Para quem andava numa vida de assustado o susto até nem foi muito.
Então naquela saída cada um prendeu um franquelete – pequena correia do equipamento de mochila - com cerca de meio metro de comprimento, ao nosso cinto, e atrás nas costas. Assim para que ninguém se perdesse, cada um segurava, bem entrelaçada na mão, a ponta livre do franquelete do que o precedia na coluna, e portanto esta ia toda ligada como se todos se segurassem à mesma corda. Coisa caricata e então, se vista de avião…
Se o da frente andava mais depressa obrigava naturalmente o de trás a acompanhá-lo na corrida, pois, como este entrelaçava a mão no franquelete daquele, tinha forçosamente de andar mais depressa também, o que obrigava, necessariamente, ao que o seguia a fazer o mesmo e assim sucessivamente. Acontecia, às vezes, para desespero nosso, que uma pessoa se via puxado para a frente e para trás ao mesmo tempo, e deste jeito parecia que o corpo ia dividir-se com tal força dos 2 lados opostos e o infeliz do pressionado, desesperado, a não querer largar de forma alguma a ponta do franquelete a que se agarrava (era o estar agarrado à vida, pensávamos nós). Ninguém obviamente queria perder o contacto. Eram os da frente a andarem por vezes mais depressa e os de trás a verem-se em dificuldades para acompanhá-los. A gente sabia que pequenos esticões à frente os de trás tinham bem que acelerar. Era uma soma dos valores. Isto acontecia sempre no mato quer fosse de dia ou de noite. Então, claro, quanto mais atrás se desse a esticadela, maior era a confusão. No entanto era a melhor maneira de nos precavermos quanto a uma cisão da coluna, que numa noite de rara escuridão, daria origem a que alguém se perdesse, o que seria um grande problema e o que já tinha acontecido - lembrar operação Biambi quando ainda estávamos em Bissorã -.
Desta feita, e como até aí tinha acontecido, esta ida a Maqué também não resultou em algo, e eles, que por certo deram conta da nossa presença, não se fizeram aparecer. Limitamo-nos a destruir e a queimar as palhotas suspeitas que iam aparecendo ao caminho e que deixavam vestígios de recém-abandonadas o que era indicativo de serem habitadas por pessoal comprometido com os turras senão mesmo turras. Mas de casa-de-mato pareciam pouco. Ficavam então por ali ao abandono, tal era a pressa do pessoal turra em sumir-se, diversos animais de criação doméstica, nomeadamente, galinhas, porcos, cabritos, etc., etc., o costume, que a malta, principalmente os carecidos indígenas, tratava logo de apanhar. Então era o que verdadeiramente se ganhava ao fim e ao cabo. A carência dos ocasionais predadores e estes atrás das assustadas e também ocasionais presas provocavam correrias em zig-zag com peripécias que davam para rir a bom rir. Depois era ver os indígenas de tacha arreganhada e com o troféu debaixo do braço ou puxado por uma improvisada corda, eles que não davam o tempo e o dispêndio físico por mal empregados. Eram os premiados daquela operação.
Bom, toda esta narrativa não contém nada de especial a não ser o insólito da Companhia progredir ligada ininterruptamente por franqueletes, e de Maqué ter ficado atravessado no goto do pessoal da 816 pois nunca descobrimos a verdadeira casa-de-mato de Maqué, ao contrário dos fortes refúgios de Morés, Iracunda, Cansambo, Joboiá, Missirá e tantos outros ali à nossa volta e na área da nossa operacionalidade que a Companhia sempre enfrentou e combateu com destemor.
__________
(*) Vd. postes de:
31 de Outubro de 2008 > Guiné 63/74 - P3383: Páginas Negras com Salpicos Cor-de-Rosa (Rui Silva) (1): A terrível estrada do K3: 1 de Agosto de 1965, o Dia Mais Longo
e
27 de Janeiro de 2009 > Guiné 63/74 - P3806: Páginas Negras com Salpicos Cor-de-Rosa (Rui Silva) (2): Golpe-de-mão a Morés
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
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2 comentários:
Caro Rui,
Gostei e confirmei.
Só para uma informação que é possível te agrade, da tua 816, fez parte o Luciano Mourão, agora Presidente da Junta de Freguesia do Estoril, que ajudou a por "Pami na Dondo" em livro.
Um abraço,
Mário Fitas
Caro Mário Fitas:
Agradeço a tua apreciaçoão.
Apraz-me saber que o Luciano Mourão tem um importante cargo autárquico na bonita e importante freguesia do Estoril.
Se puderes diz-lhe que a 816 vai ter no próximo dia 9 (Maio) a sua festa anual na Estalagem do Zende em Esposende.
Um abraço para ti e para ele
Rui Silva
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