quarta-feira, 23 de fevereiro de 2011

Guiné 63/74 – P7849: Estórias de Mansambo II (Torcato Mendonça, CART 2339) (25): Amuleto

1. Mensagem de Torcato Mendonça* (ex-Alf Mil da CART 2339 (Mansambo, 1968/69), com data de 21 de Fevereiro de 2011:

Meu Caro Carlos Vinhal
O Silêncio dizem ser de ouro. Vale muito e se o ouro tem subido de cotação.

Certo, certo é que nada tenho dito. Não me apetece necessito de um viagra para contadores de "estórias". Também estive engripado. Mais gripado do que en.

Assim fui vendo as novas modas. Um ou outro comentário. Mesmo assim deve arrepiar ...será? Creio que não.

Ouvia o Benfica ao longe, som de fundo, bonito o som e arrumei umas letras... e por que não um dos meus amuletos??? Pois, meu caro Carlos aí vai, e eu te ofereço a estória deste amuleto. Está ali. Um dia mostro-te. É bonita.

O escrito é teu, é vosso, e dele farão o que entenderem.

Um abraço do Torcato (se recebeste e disseres OK, agradeço)
Torcato Mendonça


2.º GCOMB/CART 2339

ESTÓRIAS DE MANSAMBO II - 25

AMULETO

Soou, quase como um clarim, a voz estridente e ríspida do Furriel, ainda a manhã dormia.

- Está a levantar… está a levantar.

Tudo ainda era silêncio, todos se entregavam nos braços de Morfeu.
Ele não, ele já estava levantado, barbeado, aprumado, pronto. Até o quico estava impecavelmente colocado.

- Está a levantar…fod…

Olhou-o a um só olho. Manteve o outro de reserva, fechado e a resguardar-se, ainda, das lâmpadas alimentadas aos soluços pelos “Lister”.
Que tipo este. Uma máquina, sempre pronto e sem falhas. A continuar assim ainda vai a Sargento. Era isso. O tipo tinha ares de Sargento. Mas dos porreiros, claro.

Abriu então os olhos, aconchegou o material nos calções e espreguiçou-se urrando. Só depois, ainda devagar, se foi levantando.

Todas as gentes do abrigo se aprontavam rápidas, gestos mecânicos, conversas brejeiras, risos jovens, corpos a deixarem a nudez e a sentirem o desconforto dos camuflados duros e envelhecidos. A seguir vinham cinturões e cartucheiras, granadas e outro material. Curiosamente, à medida que se aprontavam, a alegria ia desaparecendo. Iam endurecendo as faces jovens de meninos soldados.

Aprontou-se ele, mais rápido agora, dando um olhar final pelo material preparado de véspera e, agarrando nas armas e no bornal, saiu.

Enquanto comia, ouvia o Capitão. Recebia ordens, papeis, e tomava uma ou outra nota. A rotina habitual.

- Quanto tempo tem disto?

- Eu? Para aí ano e meio, sei lá. Tenho tempo demais, tempo demais.

Saiu e dirigiu-se à coluna já pronta. Um simples menear de cabeça e tudo estava a andar. A pé claro. A pé até perto de Samba Juli, cerca de uma dúzia de quilómetros picando cuidadosamente a estrada, dura e seca naquela época do ano. Não facilitavam nada, nem ele nem os outros. Mantinham as rotinas habituais e a máxima “o suor poupa sangue”.

O olhar a tentar tudo ver, tudo sentir que dessa rotina fugisse.
Iam devagar, um quilómetro e mais outro, a picada de Candamã para a direita.

- Não vamos por Candamã?

-Não.

- Então ainda hoje vamos a Bafatá.

- Se der tempo, se der tempo. Vão vocês e voltam logo. Logo se vê.

O Pontão do Almami aparece e os cuidados redobram. A subida suave, a zona à volta da estrada desmatada. Abre o campo de tiro ao IN ou facilita a manobra das NT? Uma dúvida que se manteve e controversa.

A frente da coluna faz uma paragem breve. O cão, Geba, farejou algo. Picam mais forte e segue a coluna. Redobram os cuidados, ouvidos mais atentos, olhares a entrarem mata adentro.

De repente tudo pára. São décimas ou milésimas de segundo, são o breve instante, a paragem de tudo, o inexplicável, a separação entre a vida e a morte.

De repente tudo parece desabar, acaba o silêncio e tudo explode em sons de morte, de loucura, sons de rebentamentos, tiros, granadas, gritos, berros e a violência extrema está presente. Todos sabem o que fazer, como fazer e, quais autómatos, reagem na explosão máxima, na máxima força.

- O rádio, o rádio….

- Estamos a embrulhar a seguir ao Pontão. Quebec x a Quebec Y varre tudo com os 10.5. O 81 na picada de  Candamã. Deviam estar lá. Fogo nesta merda toda.

E o som lindo dos 10,5 e 81 ouvem-se e outro som aparece vindo das garganta daqueles homens. Riem e reagem mais forte, com mais alegria.
Lindo, lindo aquele som e chegam os camaradas vindos do aquartelamento.
Os sons vão perdendo força, a alegria está presente pela ausência de feridos e o rescaldo começa a ser feito por quem veio do aquartelamento.

Emboscada curta, vinte minutos talvez.

Encosta-se a uma árvore e ouve as explicações, o pedido de reforço de granadas e os preparativos de nova partida.

- Olhe aí. Os tipos acertaram em cheio na árvore. Olhe aí. Dia de sorte.

Viu os orifícios das balas. Uma, curiosamente mais saída. Puxou da “Zézinha”, a faca de mato, e extraiu a bala quase intacta. Mirou e remirou. Será de que arma?

- Da sorte. Da sorte que você teve.

- Merda. Merda para a sorte.

Guardou a bala no bolso e a coluna seguiu.

Vinte anos depois, menos. Talvez muito menos mandou-a banhar em prata e colocar uma argola na parte mais grossa.

Desde aquele dia acompanhou-o sempre. Virou amuleto.

Está aqui a olhar-me ou sou eu que para ela olho. Certo é que ainda consigo sorrir, talvez com menos alegria do que outrora.
Seria impossível e faltavam os sons.

Fica só a “sodade, sodade… da Cesária Évora…
__________

Notas de CV:

(*) Vd. poste de 26 de Dezembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7505: Blogoterapia (170): A Casa da Praia (Torcato Mendonça)

Vd. último poste da série de 2 de Novembro de 2010 > Guiné 63/74 – P7214: Estórias de Mansambo II (Torcato Mendonça, CART 2339) (24): Cabrais

9 comentários:

Anónimo disse...

Pelo menos para as estórias não precisas de viagra.Bem..para as estórias...
Conheci Mansambo,como ponto de partida de várias operações.Na
primeira, talvez em julho de 1969,que deve ser do teu tempo,passámos lá a noite e toda a gente se desenrascou, arranjando um poiso para uma dormida breve.Só este Alfero,então periquitissimo,que não conhecia ninguém ,ficou para ali
abandonado..Valeu-lhe o Cabo Rocha do seu Pelotão,que o convidou para a cama que ocupava..Assim Alferes e Cabo passaram a noite juntos..
Há uns anos tive oportunidade de falar com a mulher do Rocha e comecei logo a conversa dizendo-"No tempo em que eu dormia com o seu marido.."

Abraço

Jorge Cabral

Anónimo disse...

Ao Torcato,para dizer que,ás vezes,concordo com a tal "sodade,sodade"!Principalmente dos amigos que por lá andaram. Ao Jorge Cabral,pelo seu comentário que,por momentos,conseguiu aquecer os 29 negativos, hoje, na Lapónia. O sincero convite para mais uma dormidela exótica(atencäo! está escrito exótica e näo...erótica!),por aqui, "entre-renas" bem quentinhas! Um grande abraco.

Anónimo disse...

Gostei Torcato!

Gostei porque me emociona, ainda hoje me emociona, reviver, rever, cenas dessas, não pelo gosto(adrenalina)da violência e do dramatismo, que a guerra, aquela guerra, afinal todas as guerras, nos obrigaram a conhecer e a partilhar.E é exactamente esta vertente, a da partilha,das emoções, da solidariedade, do companheirismo, com os n/camaradas/irmãos de então e de sempre,(a prova disso é a existência e vitalidade deste Blogue)e até com os n/IN? de então,companheiros de agora, apenas um pouco mais desafortunados que nós, dado as terríveis condições de vida actuais na Guiné-Bissau.As nossas não serão, actualmente, as melhores, longe disso, mas as deles infelizmente ainda serão piores!
Mas, ambas, com um traço comum, infelizmente...! Completamente esquecidos, abandonados pelo Poder reinante, quer lá, quer cá!.
Bem hajas, Torcato, e continua a brinda-nos com mais "amuletos"

Abraço camarigo
F.Godinho

Sotnaspa disse...

Gostei desta estória de um dia de sorte mas, que raio, também tinhamos direito a dias de sorte!! nem tudo foi azar.
Gostei, de como o Jorge cabral transforma um simples comentário numa estória.
Dois alfas bravos
ASantos
SPM 2558

Anónimo disse...

Vai-te lixar, Camarada!
E andas tu a guardar coisas destas só para ti?
Que raio de egoísmo, pá!
Vá lá, saiu agora, talvez porque precisasse de tempo.
Mas vê lá que tempo é coisa que já não temos muito, não faças caixinha e dá-me mais disto
Eu dou-te um abraço e...pronto.
José Brás

Anónimo disse...

Camarigo Torcato

Como diz o José Brás, deita cá para fora "todas essas máguas", que te consomem, transformadas em bela escrita como sabes fazer e talvez dessa forma deixes de sofrer tanto.
Não sou Psicólogo, nem Psicanalista e não percebo nada dessas coisas, mas creio que isso dá mais alívio.

Grande abraço
Jorge Picado

Manuel Joaquim disse...

Muito obrigado, Torcato, por estes momentos de leitura.Até parece que oiço a memória "respirar"! Um abraço

Anónimo disse...

Amigo Torcato

Incrível como eu vim saber, quarenta anos depois, dos vossos medos, dos vossos riscos e sobretudo da vossa coragem.
O vosso sofrimento, fê-los crescer, fazerem-se homens à força, entregues a si próprios e à sorte, que a uns poupou a vida, e a outros os deixou para sempre ausentes do futuro com que sonhavam... pois, quem não tem sonhos aos vinte anos?

Mas este, é um blogue de sobreviventes, de homens de sorte, que estão aqui numa grande representação e afirmação...da sua sobrevivência!
Sei, que muito do que lá viveram, não são histórias para contar aos filhos e aos netos, mas também se depreende o sentimento de amizade, de fraternidade que souberam criar com o próprio 'inimigo',e cresceram em valores únicos, que só as situações limite proporcionam, e eu, considero-os todos uns Heróis.

Obrigada Torcato pela sua história

Um Abraço fraterno da

Felismina Costa

Anónimo disse...

Caro camarigo Torcato

De vez em quando dizes que estás doente, e que está frio, e que está chuva, e que está vento e que e que, portanto não te apetece escrever...

Por isso, quando te vem a inspiração (ou a memória...) lá nos vais brindando com uma das tuas histórias, as quais são sempre bem recebidas.

E não é por generosidade... é porque de facto, sendo normalmente histórias de vida, ou da vida, são histórias nas quais nos podemos rever, encontar pontos de contacto, achar semelhanças nas nossas próprias experiências.

São, então, histórias tuas mas de todos e para todos.
Portanto, não nos prives delas.

Já agora, será uma bala-amuleto ou um amuleto-bala? Pode haver diferenças....

Um abraço
Hélder S.