terça-feira, 22 de fevereiro de 2011

Guiné 63/74 - P7843: Estórias avulsas (49): Passeio turístico a um acampamento do PAIGC em Satecuta em 1971 (Jorge Silva, ex-Fur Mil Art, CART 2716 / BENG 447, Xitole e Bissau, 1971/73)


1. O nosso Camarada Jorge Silva (ex- Fur Mil At Art da CART 2716, Xitole 1971/72, e BENG 447, Bissau 1972/73) (*), enviou-nos em 21 de Fevereiro de 2011 a seguinte mensagem:

Luís Graça, anexo um relato de uma operação a Satecuta - 1971 - CART 2716, bem como uma foto minha da época. Se tiver interesse para publicação, pode utilizar.

1971 - Passeio turístico a um acampamento do PAIGC em Satecuta...

Incluído na CART 2716 (Guiné - Xitole), em 11 de Julho de 1971, integrei a operação Quadrilha Sagaz a Satecuta, onde, depois de termos os dois guias feridos num primeiro confronto, fomos forçados a retirar, sofrendo mais duas emboscadas.
Ao chegarmos às imediações de Satecuta, fizemos uma paragem para aguardar pelo nascer do sol, de forma a podermos desencadear o ataque com a luz do dia. No entanto, uma patrulha de dois elementos do PAIGC aproximou-se da nossa posição.
A escassos cinquenta metros do ponto onde nos encontrávamos, e sob a mira de dezenas de G3, os dois patrulheiros fizeram-nos crer que não nos tinham localizado e, com um sangue frio impressionante, estiveram alguns momentos no local, como se executassem meras rotinas de patrulhamento.
De súbito, os dois guerrilheiros desapareceram no arvoredo, ao mesmo tempo que dispararam na nossa direcção rajadas de costureirinha que, no acampamento do PAICG, soaram como uma estridente sirene de alarme.
A ordem sensata do Cap Mil Espinha de Almeida para que ninguém disparasse, não tinha servido de nada, pois, pelos vistos, a nossa presença já estava há muito denunciada.
Se tivessemos connosco uma bolinha de cristal que nos ajudasse a antever o futuro, aqueles dois ousados guerrilheiros tinham ficado ali mesmo, com os corpos cravejados de balas, pois, entre serem eles ou nós a dar o alerta, teríamos preferido, seguramente, que o som de alarme se assemelhasse ao das rajadas da G3.
Mas, vistas as coisas com os olhos de hoje, ainda bem que assim foi, pois, no mínimo, pouparam-se duas vidas que são bem mais preciosas do que os troféus que naquela altura pudéssemos exibir.
Depois de ficarmos a saber o que nos esperava, não havia outro remédio senão avançarmos rumo a Satecuta, que estava ali tão próxima. Foi o que fizemos, mas como se esperava a marcha foi curta, pois o PAIGC interrompeu-a com uma primeira emboscada, conseguindo a proeza de nos ferir os dois guias guineenses, que tiveram de ser evacuados de helicóptero.
Durante essa primeira emboscada, afigurou-se-nos que vinham rajadas do cimo de uma árvore. O Fur Mil Rei, que adorava dilagramas (granadas disparadas com a G3), disparou um para a copa da árvore suspeita, tendo provocado uma nuvem de folhas. E a sensação de que daí provinham rajadas desapareceu de imediato, embora nunca soubéssemos se alguém do PAIGC foi atingido.
Sem guias ficámos sem rumo. E a solução óbvia foi retirar. Sentimos naturais dificuldades para encontrar o caminho de regresso, pois para quem nasceu e cresceu no meio de vilas e cidades, com ruas e avenidas para poder circular, os pontos de referência no meio do mato são extraordinariamente difíceis de distinguir. No meio do arvoredo, com as tensões ao rubro, ao citadino tudo parece igual!
Sem conhecermos o rumo certo, tivemos a sensação de que tínhamos caminhado em círculos, sem conseguirmos avançar. E, entretanto, para aumentar a sensação de desorientação, sofremos mais duas emboscadas, que, para além do susto e das tensões produzidas, felizmente não tiveram mais consequências. Debaixo de fogo os ponteiros do relógio parecem parar enquanto a adrenalina acelera, o que provoca a sensação amarga de que o ataque dura uma eternidade!
Para identificarmos a direcção correcta do regresso valeu-nos a preciosa ajuda de um helicóptero que, com alguns voos bem direccionados, nos assinalou o sentido contrário ao que seguíamos como sendo o caminho para a Ponte dos Fulas, por onde tínhamos necessariamente de passar para voltarmos, sãos e salvos, ao quartel do Xitole.
Finalmente lá conseguimos chegar incólumes ao Xitole, onde o balão das tensões acumuladas se esvaziou num ápice com a ajuda de umas bazucas (cervejas de meio litro) e a recepção solidária e calorosa que só quem esteve em idênticas circunstâncias tem condições para valorizar.
Como os turistas que fizeram parte dessa excursão se esqueceram de levar máquinas fotográficas ou máquinas de filmar, lamento não ter imagens para documentar o relato. (**)

Um abraço,
Jorge Silva
Fur Mil At Art da CART 2716/BART 2917 e BENG 447
____________

Nota de M.R.:

(*) Vd. poste de > 23 de Agosto de 2010 > Guiné 63/74 - P6890: Tabanca Grande (237): Jorge Silva, ex-Fur Mil At Art, CART 2716 (Xitole, 1971/72), e BENG 447 (Bissau, 1972/73)

(...) Chamo-me Jorge Silva, ex- Furriel Miliciano, atirador de artilharia. Mobilizado em rendição individual, estive na Guiné entre 01/05/71 e 24/04/73.

De 1971 a 1972 estive no Xitole (CART 2716), juntamente com o David Guimarães, entre muitos outros. Como a CART 2716 regressou em Março de 1972, ingressei (milagrosamente) no Batalhão de Engenharia de Bissau (BENG 447). Depois de aceder ao seu blogue (e a outros que se lhe ligam) resolvi puxar pela memória e escrever algo, à medida que vai saindo.
Em breve terei fotos (minhas) e da época para partilhar. Como não sabia como fazer para utilizar o seu blogue (se tal é possível), resolvi criar um, Amigos do Xitole (http://cart2716.blogspot.com/) onde já publiquei 2 temas. (...)

(**) Vd. o último poste desta série em:

20 de Fevereiro de 2011 > Guiné 63/74 - P7823: Estórias avulsas (103): Pedaços da vida dum bígamo... (Belmiro Tavares)

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