1. O nosso camarada Belmiro Tavares, ex-Alf Mil da CCAÇ 675 (Quinhamel, Binta e Farim, 1964/66), enviou-nos em 4 de Maio a seguinte mensagem:
Testa de Ponte
O que hoje aqui vai ser narrado iniciou-se em fins Outubro de 1964 e prolongou-se até 6 de Novembro.
O mês estava acabar mas... lá diz o povo: - o rabo é o pior de esfolar.
Na manhã do dia 29 de Outubro, o comandante interino da C. Caç. 675 recebeu, via rádio, ordem para que um G. Comb. actuasse algures fora da nossa zona. Situação estranha! Era a primeira vez que tal nos acontecia!
O Cap. Tomé Pinto estava de férias na Metrópole; se ele estivesse ao serviço talvez tudo fosse diferente – digo eu.
Aquela ordem provocou um certo alvoroço e grande desconforto no comandante interino; este alferes, Artur Mendonça, de seu nome, era, de entre os subalternos, quem tinha menos experiência de mato. Naquela data, porém, com apenas quatro meses na quadrícula, não podia dizer-se que qualquer de nós fosse já “experimentado”.
O alferes Mendonça tinha comandado o pelotão de acompanhamento – armas pesadas. Ainda em Bissau este pelotão foi desmantelado: cada um dos outros pelotões recebeu três armas ditas pesadas; o alferes Mendonça ficou “livre”; passou a ter como missão principal a substituição dos outros oficiais nos seus impedimentos: doença, férias, etc. No dia-a-dia comandava os seus “black boys” (alguns soldados indígenas e uns tantos milícias) na segurança das viaturas durante as patrulhas no mato. Também montava umas emboscadas e não só nas mediações de Binta.
Recebida a citada mensagem, o alferes Mendonça reuniu de imediato com os outros subalternos (excepto o médico) para nos transmitir o conteúdo da mesma: uma operação de certa envergadura para reabrir a estrada Mansabá/Farim; a C. Cav. 487 actuava de norte para sul e a C. Art. 732 partia de Mansabá em direcção a Farim; a um G. Comb. da C. Caç. 675 cabia o papel de “testa de ponte” frente a Farim onde na verdade... não havia ponte alguma.
A missão era “proteger” o local onde a jangada devia encostar na margem esquerda do rio Cacheu e onde se iniciava a estrada para Mansabá. Havia ali uma rampa de betão onde a jangada encostava o que facilitava o desembarque de quem vinha para a margem sul, neste caso a C. Cav. 487.
O alferes Mendonça transmitiu o que sabia e imaginou o que não sabia, procurando “adoçar a pílula”. Depois de muita conversa (o alferes Mendonça, quando bem disposto, até falava pelos cotovelos) sem que ninguém se manifestasse, viu-se forçado a decidir como segue:
- Bom! Como sabes, Tavares, é a tua vez!
- Eu sei! Só esperei que concluísses!
Eu não sou voluntário para nada mas, quando chega a minha vez, estou sempre pronto. No entanto, dada a gravidade da situação – o assunto é sério – quero que fique bem claro o seguinte: se antes da minha partida para Farim, eu me aperceber que alguém no quartel – além de nós quatro – sabe par onde eu vou, eu não sairei; quem inadvertidamente der com a língua nos dentes terá de assumir as consequências do seu acto irreflectido!
Eu sabia por que agia deste modo!
Para nós aquela “guerra” não era nada do outro mundo; aparentemente seria menos complicada que algumas das nossas patrulhas ou batidas dentro da zona. A grande dificuldade era, sem dúvida, o desembarque; principalmente porque iríamos utilizar uma “barca” de quilha (quem se “quilhava” éramos nós) uma espécie de traineira velha que era o meio menos apropriado para aquele fim; era impróprio e inseguro quanto baste!
Acabada a reunião fiz o meu planeamento. Mais tarde, junto ao rio, reuni o meu pessoal e em poucas palavras transmiti o que nos esperava: três dias fora; munições para todas as armas em quantidade suficiente; equipamento individual para os três dias. Tratando-se dum desembarque, decidi quem seriam os primeiros a sair; alertei para as precauções individuais e as posições a ocupar no terreno, tomando sempre a estrada como eixo, até ao desembargue total.
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Choveram as perguntas mais variadas mas todos queriam saber qual era o local destinado.
A todos fui respondendo; para o fim ficou a resposta mais desejada:
- Quanto ao local para onde vamos, dou apenas uma dica e é absolutamente seguro que mais não direi – só posso adiantar que vamos rio abaixo... na direcção de Bigene; e nada mais posso acrescentar.
No dia seguinte, 30 de Outubro, à hora prevista, ancorou no “porto” de Binta um “imponente navio de guerra” que iria transportar-nos: uma pequena barcaça de madeira, creio que uma LP1, muito usada, que mais parecia uma traineira com alguns militares lá dentro... no lugar dos pescadores.
Quando embarquei, dirigi-me ao “comandante” da embarcação, - um cabo da Marinha – e transmiti-lhe:
- Quando todos os meus soldados estiverem embarcados, navegamos para jusante!
- Então não vamos para Farim?!
- Seguimos rio abaixo; na hora própria eu transmitirei novas ordens!
Tratava-se apenas duma manobra de diversão. Além disso eu não podia passar por mentiroso perante os meus soldados. Eu tinha-lhes dito que seguiríamos rio abaixo e assim teria de acontecer pelo menos durante uns minutos.
Quando dobrámos a primeira curva do rio, já fora das vistas de Binta, dei ordem para parar; cerca de meia hora mais tarde ordenei que rumássemos a Farim.
Todos – o meu G. Comb. e os apêndices – descemos ao porão; a barcaça passou de novo frente ao “porto” de Binta donde ninguém podia ver-nos. Passada a primeira curva a montante, saímos do porão para apreciar as margens do rio... sempre iguais.
A viagem durou várias horas; por estrada Binta e ficava a 16/17km de Farim; pelo rio era um pouco mais devido aos meandros.
Se a viagem fosse feita contra a maré (durante a Vazante) a barcaça... só faria barulho – fingia que andava mas... não se movia.
Aproveitei para relembrar aos meus soldados o papel a desempenhar por cada um ou cada grupo; dediquei especial atenção àqueles a quem cabia a parte de leão – os que desembarcavam em primeiro lugar e que tinham como objectivo montar os primeiros postos de defesa.
Chegámos a Farim já tarde; cerca da meia-noite iniciaram-se as manobras de “acostagem” que foram complicadas e demoradas. Desembarcar na margem lamacenta dum rio utilizando meios tão obtusos, tão disparatados, não cabia na cabeça de ninguém! E nós sabíamos que na Guiné havia umas tantas LDs, embarcações apropriadas para aquele fim e bem mais seguras.
A barca embateu umas tantas vezes na rampa de betão e outras tantas vezes fez marcha à ré procurando de novo o melhor local para encostar.
Perante tanta demora e tanto ruído do motor, alguns soldados ameaçaram lançar-se à água. Este alferes acalmou os mais acalorados, referindo:
- Tenham calma! Se eles estivessem ali já teriam disparado! Vamos esperar a possibilidade de desembarcar “a pé enxuto”. Não há necessidade de “tomar banho” a estas horas e passar o resto da noite com a roupa molhada.
Se tivesse havido fuga de informação... poderíamos não estar hoje a contar como tudo se passou! E os responsáveis, como de costume, perguntariam a um sobrevivente: – “Óh Zé! Perderam-se muitas armas?”
Esta pergunta foi feita por um oficial com responsabilidades a um comandante de pelotão que tinha assistido, desesperado, aterrorizado, incrédulo, impotente à morte de 8 soldados seus por afogamento ou levados por crocodilos nas temerosas correntes do Cacheu. Parece incrível... mas aconteceu!
Logo que a barcaça entrou no lado e encostou à terra firme iniciou-se o desembargue (fácil) pela ordem prevista sem barulho nem atropelos.
Ao lado da estrada, a poucos metros da água, havia um telheiro de dimensão razoável sob o qual “fizemos” o nosso quartel. Era um alpendre sem protecções laterais mas teve grande utilidade prática para nós.
De madrugada a C. Cav. 487 desembarcou em segurança e iniciou a sua guerra no Oio, interrompendo-a pouco depois do meio dia para almoçar, jantar e pernoitar em casa – boa guerra! Eu tive de lhes ceder numa secção... para reforçar a companhia! Aconteceu o mesmo nos dias seguintes.
A meio da manhã; o Sr. Ten. Cor. Fernando Cavaleiro honrou-nos com a sua visita. Ou não gostou de tudo o que viu ou entendeu inovar, como era usual. Pretendia mais um posto de sentinela junto ao tal barracão para vigiar a bolanha... às escuras. Defendi que por ali ninguém ousaria atacar; um lamaçal com mais de 2km era a nossa melhor defesa... difícil de transpor e onde não havia abrigos para a defesa pessoal no caso de o atacante ser detectado e atacado. Além disso eu não tinha pessoal suficiente para mais postos de sentinela... mas lá tive de instalar mais um... que desactivei, logo que o Ten. Cor. se ausentou.
Aproveitei a visita para pedir pessoal para “capinar” o terreno, principalmente a estrada. Ao início da tarde apareceram uns quantos indígenas que “desmataram” o terreno circundante.
A operação estava prevista para três dias; como os independentistas iam colocando novas abatises na estrada, a “guerra” prolongou-se por mais quatro dias – uma surpresa tão desagradável quanto imprevista!
Ultrapassada que foi a operação de desembargue, passámos a ter como “inimigos” principais: a escuridão da noite, o cacimbo que fazia baixar drasticamente a temperatura, os “colchões” de terra dura e mosquitos aos montes – não havia repelente que produzisse efeito! Crocodilos... nem vê-los!
Os inimigos, com espingardas, não nos incomodaram – iam fazendo a festa a mais de 5 km de distância com a C. Cav. 487 e a C. Art. 732.
A monotonia foi quebrada duas vezes:
a) No dia 1 de Novembro, o capelão do batalhão o Rev. Padre Gama não permitiu que passássemos o dia de todos os Santos sem missa. Apareceu munido do seu altar “portátil” que foi instalado sobre um caixote de medicamentos e um cunhete de munições. Só depois da missa nos apercebemos do que serviu de base ao altar.
b) no dia 5 de Novembro à noite, apareceu a C. Art. 732 que, a 5 km do local onde nos encontrávamos, sofreu duas fortíssimas emboscadas quase seguidas, cada qual a mais feroz, e que provocaram um morto e vários feridos.
Vinham de cabeça perdida... e o estômago a “dar horas”; oferecemos-lhes o nosso jantar e demos-lhes ânimo, para enfrentar outros dias difíceis que ainda iriam surgir durante a longa comissão. De manhã, pareciam outros!
Partiram para sul.
À tarde concluímos a nossa missão.
“Levantámos ferros” e seguimos na mesma LP1 que nos conduziria de novo até Binta.
Sete dias no Oio... a caçar gambozinos... ou pouco mais. É caso para dizer: “a montanha pariu um rato”.
Lisboa, Abril de 2011
Belmiro Tavares
Alf. Mil. da CCAÇ 675
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Nota do Editor:
Vd. o último poste desta série de 20 de Fevereiro de 2011 > Guiné 63/74 - P7823: Histórias e memórias de Belmiro Tavares (5): Pedaços da vida dum bígamo...
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
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3 comentários:
Caro camarigo Belmiro Tavares
Um relato bem conseguido.
E um género de intervenção que ainda não tinha lido por aqui.
É sempre interessante percebermos como as coisas se passavam, quer na 'frente da intervenção' quer nas 'protecções'.
Abraço
Hélder S.
Caro Camarigo Belmiro Tavares
Gostei sinceramente do que li, quer pela forma como descreves a situação vivida, quer pela forma como dirigiste o teu grupo. Existiam várias frentes, várias guerras dentro daquela guerra e para além de a termos de fazer, ainda tínhamos que tapar os "buracos" dos altos iluminados que conduziam as operações formuladas no TAC de Bissau ou outros estúdios parecidos. Tínhamos que manobrar sempre em defesa daqueles que acreditavam e confiavam em nós.
Um abraço
Luís Dias
Caro Camarigo Belmiro,
Boa descrição do que acontecia, intra muros, muitas vezes nas operações.
A LP1 (Lancha patrulha 1) fazia parte de um lote de 4 (LP2, LP3 e LP4) enviadas e traineiras, todas em madeira, adquiridas pela Marinha e enviadas para a Guiné onde foram armadas e dotadas de autênticas casamatas de ferro, a meia nau, para protecção das tripulações. Estiveram sempre presentes em vários teatros de guerra por todos os Rios da Guiné, incluindo na guerra do Como e chegaram de fazer vários desembarques de fuzileiros e tropa. Com a chegada paulatina das LDP,s e LDM,s mais operacionais foram abatidas. Pouco se sabe delas. Abraço. Manuel Amante
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