terça-feira, 3 de maio de 2011

Guiné 63/74 - P8209: Notas de leitura (235): O Meu Testemunho, uma luta, um partido, dois países, por Aristides Pereira (3) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem de Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 26 de Abril de 2011:

Queridos amigos,
Muito estranho é o livro em que o apêndice documental e as entrevistas pesam mais que o testemunho do autor. A Guiné-Bissau continua sem uma obra de referência publicada pelos seus principais responsáveis, ficamos com os textos políticos de Amílcar Cabral e documentação avulsa que se dispersa pela Fundação Mário Soares e as suas herdeiras; dispomos de testemunhos de jornalistas durante o período da luta armada, predominantemente encomiásticos; o depoimento de Luís Cabral e o testemunho de Aristides Pereira e muito pouco mais no que se refere aos grandes marcos históricos dos cerca de 50 anos da vida do PAIGC que em tanto se confunde com a história da Guiné-Bissau.
Para quem quer estudar este período, recomenda-se sem qualquer hesitação o testemunho de Aristides Pereira exactamente pelas entrevistas, algumas delas são textos de eleição e o apenso documental.

Um abraço do
Mário


O testemunho de Aristides Pereira (3)

Beja Santos

À distância destas décadas, importa reconhecer que a estratégia de Amílcar Cabral que conduziu ao reconhecimento de direito do Estado da Guiné-Bissau, proclamado unilateralmente, em 24 de Setembro de 1973, na região do Boé, se revelou um êxito no sentido de ultrapassar o impasse militar.

A diplomacia portuguesa ficou impotente para resolver o imbróglio, em escassos meses mais de 80 países reconheceram o novo Estado. Em termos de direito internacional, Lisboa perdeu manobra, aos poucos, com o avolumar dos problemas militares e a necessidade de reduzir o dispositivo militar, procurou saída com conversações directas com o PAIGC, quando tudo era irremediavelmente tarde.

Entretanto, Cabral é assassinado em Conacri, em condições que ainda hoje não estão esclarecidas. Aristides Pereira sente-se no dever de alinhavar dados e factos que, escreve, poderão fornecer pistas e sugestões para uma futura clarificação do acontecimento. Quanto aos autores materiais, logo ficaram conhecidos, eram militantes guineenses do PAIGC. Quanto à autoria moral, Aristides Pereira insinua que o projecto de proclamação do Estado da Guiné-Bissau precipitou o objectivo das autoridades coloniais em concretizar o que falhara na invasão de 22 de Novembro de 1970, os assassínios de Amílcar Cabral e Sékou Touré. E escreve: “Cabral sabia que os colonialistas portugueses estavam a tentar a todo custo conseguir a desmobilização dos combatentes em geral, procurando, pelas fraquezas inerentes à própria luta, infiltrar-se no seu seio, a fim de conseguir os intentos de desagregação do PAIGC”. Curiosamente, em nenhuma circunstância o autor refere outras tentativas de assassinato, ao contrário de Luís Cabral que alude a tais situações, se bem que também não especifique o móbil nem quem eram os possíveis autores.

Segundo Aristides Pereira, Cabral tinha a consciência perfeita de que a máquina-colonial na Guiné tudo faria para liquidá-lo e desmembrar o PAIGC. Num memorando datado de Setembro de 1962, Cabral propôs a Sékou Touré um conjunto de medidas de segurança que passavam pelo envio para a linha fronteiriça de elementos das forças armadas da Guiné, patrulhas continuadas ao longo da linha de fronteira com o objectivo de dissuadir tentativas de agressão e o recenseamento de todos os refugiados oriundos da Guiné-Bissau e instalados na República da Guiné. Aristides mostra-se peremptório acerca da segurança do PAIGC e refere o aviso de 20 de Janeiro de 1973 quando Sékou Touré enviou ao secretariado do PAIGC em Conacri um alto funcionário para dizer que tomasse cuidado pois estava em marcha uma tentativa para o matar. Logo Cabral convocou Mamadu Indjai e alertou-o para este aviso, só que Mamadu era um dos conjurados e terá transmitido aos seus companheiros o alerta de Sékou Touré. Aristides Pereira não descarta a hipótese da operação de assassinato ter sido preparada pelas autoridades portuguesas e cita Alpoim Calvão bem como Fragoso Allas. Procurando ir mais atrás, o autor menciona que desde 1966 era já perceptíveis os esforços da PIDE para infiltrar as estruturas do PAIGC. E, por último, cita longamente uma carta que lhe foi dirigida por Óscar Oramas, o embaixador cubano em Conacri e foi o primeiro estrangeiro que chegou ao local do crime, poucos minutos após o acto consumado. Oramas era vizinho de Cabral, ouviu os tiros, prontamente se dirigiu para a residência do líder do PAIGC, encontrou Cabral já morto, censurou Otto Schacht, um outro responsável pela segurança e verificou que havia um grupo de pessoas escondidos atrás de uns arbustos.

Apurado que o grupo conspirador tinha raptado Aristides Pereira, Oramas pediu a intervenção de Sékou Touré e escreve: "Penso que aqueles assassinos o que evidenciaram foi que o inimigo terá explorado alguns ressentimentos pessoais e certas ambições e apetites pessoais de alguns homens para fomentar o descontentamento e a divisão no seio do partido... Tenho a mais profunda convicção de que aquilo não foi um acto isolado mas fruto de um trabalho bem dirigido pela potência colonial". Como tem sido referido continuadamente, ainda não se encontrou um só documento, seja em que arquivo for, que abone tais teses de um braço longo português, uma decisão de Bissau ou uma iniciativa da PIDE.

Levantou-se, com o assassinato de Cabral, a questão da escolha de um sucessor para secretário-geral, todas as opiniões recaíram sobre Aristides.

Referindo-se aos acontecimentos político-militares de 1972 a 1974, o autor parece convencido de que Spínola falhara rotundamente a sua política de acção psicológica, tendo-se lançado numa ocupação de território no Sul. Só que em finais de Março de 1973 chegaram os mísseis Strella que puseram fim à supremacia aérea portuguesa, isto numa altura em que os pilotos guineenses estavam a ser preparados na União Soviética. Proclama-se unilateralmente a independência que foi saudada pela ONU através de uma resolução que felicitava o acesso à independência. Em Novembro a nova República foi admitida na organização da unidade africana. Aludindo à recusa de Caetano, em princípios de 1974, para haver uma mediação do Senegal, Aristides Pereira nunca refere as conversações de Março de 1974, em Londres, o que é surpreendente, não é imaginável que a delegação do PAIGC presidida por Vitor Saúde Maria não tivesse recebido instruções da direcção do PAIGC.

Procede a uma descrição minuciosa dos acontecimentos posteriores ao 25 de Abril, releva as contradições de Spínola e aborda demoradamente as negociações para o reconhecimento da independência da Guiné-Bissau pelas autoridades portuguesas. Em vão Spínola tentou um referendo da população da Guiné-Bissau bem como não tiveram expressão os partidos políticos que surgiram repentinamente no território guineense. Alude também ao ambiente pesado e à suspeição de que os comandos africanos se recusavam a ser desarmados e dá conta de uma reunião que se realizou em Cacine, em 22 de Julho de 1974 e em que estiveram presentes, por parte dos comandos africanos os capitães Saiegh e Sisseco. Não deixa de mencionar um imprevisto quadro de detenções entre Sékou Touré e a direcção do PAIGC. Ganha realce o destaque que o autor dá ao relato da reunião entre o encarregado do Governo da Guiné, brigadeiro Carlos Fabião e a delegação do PAIGC, fica-se com uma ideia dos conflitos que se tinham entretanto instalado entre as autoridades portuguesas e as suas forças militares com as tropas do PAIGC.

A República da Guiné-Bissau foi admitida nas Nações Unidas em 17 de Setembro de 1974 e as últimas tropas portuguesas abandonaram o território em 15 de Outubro.

O livro termina com a descrição das diferentes peças referentes à independência de Cabo Verde.
Findo o testemunho e de acordo com a estrutura inicialmente apresentada pelo, incorporam-se neste volume monumental contributos de protagonistas guineenses e cabo-verdianos. Na impossibilidade de fazer referência a todas, referem-se concretamente Ana Maria Cabral, Gérard Challaind, Idrissa Sow, Manuel dos Santos (Manecas) e Rafael Barbosa.

(Continua)
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 28 de Abril de 2011 > Guiné 63/74 - P8176: Notas de leitura (234): O Meu Testemunho, uma luta, um partido, dois países, por Aristides Pereira (2) (Mário Beja Santos)

6 comentários:

Torcato Mendonca disse...

Ainda me fazes ler o livro.
Estes tipos do Paigc...
AB T

Anónimo disse...

Houve julgamento e condenação dos responsáveis pelo assassinato de Cabral?

É que se os juizes desse tribunal não publicarem o resultado do julgamento e o nome dos reus, os guineenses nunca acreditarão naquilo que aquele grupo de caboverdeanos do PAIGC, queiram fazer crer.

Dirão "Ká bardadi".

E assim, ficou a Guiné armada e "armadilhada".

Antº Rosinha

Mário Beja Santos disse...

Meu caro Torcato, Fazes bem em comprar "O Meu Testemunho", do Aristides Pereira. Não compresa a edição das 250 páginas, é insignificante, quase anedótica. Compra a edição das 1000 páginas. Li a noite passada e voltei a ler as entrevistas com o Rafael Barbosa (por ventura a figura mais enigmática e complexa do PAIGC) bem como o Silvino da Luz, que esteve em Março nas conversações pedidas pelo Caetano. Sei que vais gostar. Os velhos do PAIGC são figuras de uma grande dignidade, estão hoje ostracizadas, podes conhê-las neste livro. Um abraço do teu admirador, Mário

Anónimo disse...

Meu caro António Rosinha, Correndo o risco de ser impreciso, houve três julgamentos, os incriminados foram divididos em diferentes lotes. Ana Maria Cabral e outros entrevistados falam dos processos e das regiões onde tiveram lugar os julgamentos. No congresso do PAIGC de 1984 o Vitor Saúde Maria pediu perdão pelas iniquidades praticadas, os incriminados foram sujeitos aos interrogatórios mais abjectos. Ana Maria Cabral diz que ouviu todas as cassetes dos interrogatórios. O Facto é que todo este material desapareceu. Nem se sabe ao certo o número dos fuzilados e dos indultados. Pelo que se tem escrito, Osvaldo Vieira é uma das grandes incógnitas, há quem assegure que ele estava envolvido no complô. Toda a gente fala nas responsabilidades portuguesas neste assassínio, diga-se que não há um só papel que incrimine a PIDE de Lisboa ou de Bissau, Spínola ou quem quer que seja. Um abraço do Mário

Anónimo disse...

Mário, quando dizes que «toda a gente fala...»

Quem interessa que fale ou fique calado é o povo guineense, e esse teve que ficar calado indefenidamente.

Mas o povo sabe muito bem como foi.

Mas entretanto a longevidade escasseia...e fica~se por estas «balelas» dos que sabem escrever.

Não vou comprar o livro, porque durante 13 anos eu próprio "entrevistei" milhares de guineenses populares.

Antº Rosinha

Torcato Mendonca disse...

Obrigado pelo conselho,caro Mário. Eu tento "fugir", eu tento esquecer mas a Guiné persegue-me.
Fica uma marca demasiado forte. O Blogue veio, qual ferro em brasa, avivar a marca - Guiné,Combatente.
Cumpra-se.
Tenho lido muito sobre a Guiné, o Paigc, a questão Guineense/Cabo-verdiano. Sabia da existência deste livro e o que diz A. Pereira, Pedro Pires tem,para mim, com toda a subjectividade,interesse.
Rafael Barbosa é diferente. Não sei o que dele pensas. Os Velhos Combatentes tiveram determinada formação. Assunto para conversa de um dia de cavaqueira. Não quero falar de alguns Velhos ou de outros Novos....aqui não e nem teria interesse.
Nada tenho escrito.Um dia...
Abraço-te Mário