1. Mensagem de Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 28 de Outubro de 2011:
Queridos amigos,
Aqui se começa a falar do diário de JERO, um livro de 1965, de circulação restrita. Uma construção ingénua e comovente, um punho cheio de convicções e um olhar cheio de ternura. Pergunto se nalguma frente de combate houve um capitão tão estimado (quase idolatrado) como o de Binta, o “capitão do quadrado”. Mas pergunto se alguma vez nos passou pela cabeça que existisse um enfermeiro tão desvelado a fazer crónica, escondendo o seu heroísmo tal como se mascarava no arvoredo, nas longas esperas de uma emboscada. Não sei se é o JERO se somos nós quem está de parabéns.
Estou a trabalhar com o exemplar nº 31, pertença do Belmiro Tavares.
Obrigado, Belmiro, por me teres confiado esta missão.
Um abraço do
Mário
Um documento histórico, o diário da CCAÇ 675, o diário de JERO
Beja Santos
José Eduardo Reis de Oliveira (JERO) é um Furriel Miliciano Enfermeiro responsável por uma singularidade histórica: escreve o diário da CCAÇ 675 referente ao período de Maio de 1964 a 1965 que a SOCTIP (uma conceituada tipografia da época) imprimiu. Todos os volumes têm carimbado o termo “confidencial” e todos os exemplares estão numerados. O nosso confrade Belmiro Tavares muito me sensibilizou entregando-me para análise o diário que JERO, outro dos nossos confrades, registou e veio a ser impresso a Lisboa, quase em tempo real. O “capitão do quadrado”, Alípio Tomé Pinto, escreveu a ressalva de que tal diário continha matéria classificada e não podia ser do conhecimento de todas as pessoas. Agora já pode, o diário de JERO passou a ser um bem patrimonial por mérito próprio, pelo desvelo do autor em tudo quanto escreve, refugiando-se num semianonimato, exaltando o capitão de Binta, compendiando meticulosamente os actos de um colectivo que deixou memória pelo espírito corpo e pela sua mentalidade ofensiva, lá para os lados do Cacheu, em meados dos anos 60. Aqui se publicitou o ineditismo de Tarrafo, de Armor Pires Mota, publicado no Jornal da Bairrada, sem nenhum óbice da censura e logo retirado, em 1965, quando posto à venda em forma de livro. JERO, ao coligir todos os dados do seu diário, só queria registar um período de uma gesta colectiva anónima, escreveu para as gentes da CCAÇ 675, não para nós. Também por essa razão de pura discrição, o JERO já então revelava os seus primores de carácter.
Estamos em Maio de 1964, a Companhia independente parte de Évora, no dia 8 chegam a Lisboa cerca das 6.30 horas: “Particularmente impressionante a passagem em marcha lenta da composição pelas zonas do Areeiro, Campolide e Alcântara, com muitas pessoas, principalmente de classes humildes a caminho do seu trabalho, que nos acenavam, desejando-nos felicidades para a vida difícil que ia começar para todos nós”. Depois a despedida, o Uíge afasta-se e cumpre a JERO inquietar-se, falando por todos, como regista no seu poema “Partida”: “Que vai ser de mim? Viverei? Voltarei a ver os meus? A Pátria querida?”.
O Uíge vai fundear diante de Bissau, a mocetada arde em curiosidade: “Nos mais variados pontos do navio, empoleirados nos mastros, nas baleeiras, na ponte, nas amuradas, algumas centenas de olhos dirigiam-se para a pequena cidade que crescia junto do rio e se estendia para o interior". E o mês de Maio decorre com instrução na carreira de tiro e no campo, JERO anota: distribuição do correio. Junho é praticamente dedicado a exercícios operacionais, no dia 13 JERO anota: um mês na Guiné. Dia 19, pelas 8 da manhã: desastre de viação, choque de um Unimog com um tronco de palmeira, viatura destruída, um ferido ligeiro. A 23 há boatos de caserna, está próxima a ida para o mato. A 28 partem de Bissau no “Alexandre da Silva”. JERO já está afadigado a registar os eventos primigénios: “Poucos momentos depois do desembarque o nosso capitão saiu com o primeiro pelotão para uma patrulha de reconhecimento nas proximidades do estacionamento, seguindo até ao entroncamento de Courbá, onde se incendiaram duas moranças. Continuou-se a descarga do navio até cerca da meia-noite. No silêncio da noite as sentinelas estavam atentas. E o mês de Julho introduz os primeiros momentos épicos, mesmo o leitor menos experimentado nas fainas da guerrilha e da contra-guerrilha questiona porque é que Binta e arredores viviam entregues a uma quase total liberdade das forças do PAIGC. Vamos aos factos.
Obras no quartel e saída dos grupos de combate, montam-se emboscadas. Nada de viaturas, tudo a butes para evitar sinistros no homem e na máquina. O “capitão do quadrado” tem gente motivada, mal chegam arranca a operação Lenquetó (povoação situada a 12 quilómetros de Binta. Troca de tiros, um atirador de uma árvore é abatido e “outros dois indivíduos saíram em correria da tabanca e ziguezagueando conseguiram passar por meio de uma secção, escapando ao fogo de duas ou três dezenas de atiradores. Foi uma fuga desesperada que um mínimo de probabilidades de êxito resultou”. Houve um inimigo que apesar de ferido lançou uma granada e acto contínuo foi abatido. Prisioneiros foram cerca de 40. Vejamos os detalhes registados por JERO, acerca de um regresso enquanto Lenquetó ardia, enquanto, no chão, ficavam os corpos de duas ou três dezenas de inimigos: “Quando acerca de 500 metros de Caurbá progredíamos numa zona fortemente arborizada, fomos emboscados pelo inimigo. Depois de um primeiro momento de expectativa e surpresa, instalámo-nos rapidamente em círculo (…) Continuámos a responder ao inimigo com fogo baixo e uma bazucada deve ter feito grandes estrago no inimigo, pois ouviram-se gritos lancinantes durante alguns momentos. Junto a uma árvore o nosso capitão transmitia ordens e recomendava ordem no fogo para não virem a faltar munições (…) A pedido do nosso capitão o piloto metralhou a zona por onde, electrizados pelo exemplo do nosso capitão que arrancou para a frente, seguimos o mais rapidamente possível, respondendo ao fogo inimigo que de cima das árvores nos continuou a flagelar durante algum tempo. A experiência e o arrojo do nosso Comandante de Companhia conseguiu que dois grupos de maçaricos que se agarravam ao terreno logo que se ouvia um tiro “voassem” por uma zona batida pelo fogo do inimigo que nos viu afastar com rapidez e segurança. A registar a tentativa de fuga de três prisioneiros aquando da retirada da zona de emboscada que no entanto foram abatidos (…) Acabava-se de viver o nosso primeiro dia operacional em terras da Guiné. Tínhamos combatido duramente com o inimigo. Tinha chegado a Binta uma Companhia de homens duros chefiados por um leão que andava de pé debaixo das balas inimigas”.
Isto é o começo, estamos no dia 4 de Julho. Em catadupa, prosseguem os patrulhamentos ofensivos e golpes de mão e batidas. De vez em quando, o inimigo resiste mas acaba por se pôr em fuga. O fundamental é que ao longo do mês a CCAÇ 675 percorre todo o território da sua quadrícula, a prudência mantém-se, os temores esfumam-se. JERO participa ou colhe informações para compendiar as suas notas, por vezes são parágrafos adubados, outras vezes prima pelo laconismo: “Não foi possível carregar os géneros em virtude da chuva. A zona ficou armadilhada”. Registam-se ingenuidades, sustos com vacas e burros, dores de cabeça debaixo de fogo, alguém rasteja a pedir ao sargento enfermeiro umas aspirinas. As estradas que estavam ao abandono são limpas das abatizes, assim se chega a Guidage, se contacta com a população que fugira para o Senegal. Lá para o fim do mês vai-se até Canicó, há uma grande troca de fogo, impressivamente registada. O guia Pathé Baldé é morto em combate. O “capitão do quadrado” propõe no seu relatório uma condecoração para este brioso combatente: “Não posso deixar de frisar os bons serviços prestados pelo guia Pathé Baldé.
Além do entusiasmo permanente pela missão que estava cumprindo, era sempre o primeiro nos locais mais difíceis. Granjeou com as suas atitudes e maneira de ser a amizade de todo o pessoal da Companhia; correcto e bem-educado, ele “valia por uma secção” como os soldados diziam ao referir-se ao seu valor; com a sua morte perdeu esta Companhia um bom guia e auxiliar que dificilmente poderá ser substituído. Creio que seria de grande valor que à família do mesmo fosse dada uma pensão de sangue e se possível o Exército demonstrar-lhe reconhecimento, pelos serviços prestados, através de uma condecoração, que de facto merece”.
Isto é o princípio do diário de JERO, que soma cerca de 280 páginas. Surpresa mais gratificante não podia ter. Publicitar o diário do JERO no blogue, anunciá-lo a quem estuda a guerra da Guiné, é uma honra e um grato dever.
(Continua)
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Nota de CV:
Vd. último poste da série de 18 de Novembro de 2011 < Guiné 63/74 - P9057: Notas de leitura (303): Amílcar Cabral Filho de África, de Oleg Ignatiev (Mário Beja Santos)
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
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3 comentários:
O "diário" do JERO já é conhecido, no nosso blogue, desde Julho de 1969, quando ele entrou para a nossa Tabanca Grande e teve a gentileza de me emprestar o seu exemplar, único, o nº 10, que naturalmente lhe devolvi, depois o ter folheado, lido na vertical e digitalizado a capa, além de uma ou outra página...
Não é demais sublinhar, na esteira de Beja Santos, o carácter pioneiro que tinham estas "histórias das unidades", mescladas de "diários pessoais", que saíam fora do figurino da tropa...
Na mesma ocasião, o JERO ofereceu-me, com dedicatória e autógrafo, um exemplar do livro que acabara de lançar, "Golpes de mão's" (sic), com prefácio do seu antigo comandante, o hoje Ten Gen Ref Tomé Pinto...
Prometi-lhe fazer uma recensão bibliográfica, promessa que nunca cheguei a cumprir, com pena (e sobretudo vergonha) minha... Mas o mais importante é saber que os camaradas da Guiné ganharam, com a entrada do JERO na Tabanca Grande, mais um camarada de cinco estrelas e, alguns sortudos como eu, mais um amigo.
O JERO, que é um trabalhador incansável da escrita, já tem mais de 90 referências no nosso blogue. E isso merece ser aqui sublinhado.
Para ele vai um abração, e votos de pesar por, mais uma vez, eu não ter podido aceitar a sua sugestão cultural e gastronómica deste fim de semana, que era "passar por Alcobaça", e visitar a XIII Mostra Internacional de Doces e Licores Conventuais...
Curiosamente, ainda hoje falei no seu nome (que é bem conhecido na sua comunidade pela sua ligação à imprensa local e pela seu ativismo na promoção do património, material e imaterial, da sua terra), num stand da "Maçã de Alcobaça", em dia de comemoração dos 25 anos da famosa Carta de Ottawa sobre a promoção da saúde (21 de Novembro de 1986)...
Como eu digo, na brincadeira, ele é o último monge do mosteiro de Alcobaça, daqueles que não se limitavam a rezar, pelo contrário, foram um exemplo de trabalho, e a quem o oeste estremenho (o nosso "terroir", o nosso "chão", o do JERO e o meu) muito deve, em relação ao que de melhor tem hoje... LG
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14 de Julho de 2009 > Guiné 63/74 - P4686: Tabanca Grande (162): José Eduardo Oliveira, ex-Fur Mil, CCAÇ 675, Binta, 1965/66
... Maldição, as gralhas!... Claro que em 1969 o nosso blogue não existia (nem este nem nenhum)... Além disso, era eu ainda "pira" na Guiné, com mês e meio...
Queria dizer "julho de 2009" (e julho com letra minúscula, de acordo com a nova ortografia)... Peço desculpa. LG
Olá JERO!
JERO, o fur. milº com quem passei umas horas, muito agradáveis, de um dia de outubro de 1965, no seu quartel de Binta.
Saído de Bissau por mar, subi o rio Cacheu até Farim, em serviço de segurança a dois batelões com abastecimentos às tropas sedeadas nas margens do rio Cacheu.
Em Binta fui tão simpaticamente recebido que o facto me ficou na memória. Talvez, também, por ter folheado um livro que um certo furriel me apresentou, livro que me fez crescer água na boca e que virou tema de conversa prolongada. Perante a minha apetência pela obra a resposta veio logo: "não podes levar porque a sua matéria é confidencial". O livro tinha sido escrito por ele e sido editado recentemente. Relatava o percurso da CCaç.675, no seu 1º ano de comissão.
Este encontro ficou-me gravado na memória e, quanto ao tal furriel, nunca mais o vi e esqueci o seu nome. Até que, por obra e graça desta Tabanca, ele aparece aqui e, ao identificar-se como autor deste "diário", fez-me recordar o nosso encontro. Ao contactá-lo, teve a gentileza de me oferecer um exemplar fotocopiado. Posteriormente adquiri a sua recente obra "Golpes de Mão's" de que gostei muito.
Meu caro JERO, meu caro camarigo,
um grande abraço.
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