quinta-feira, 24 de novembro de 2011

Guiné 63/74 - P9087: Memórias boas da minha guerra (José Ferreira da Silva) (25): O Zé Maria ou as cambanças da nossa geração



1. Em mensagem do dia 20 de Novembro de 2011, o nosso camarada José Ferreira da Silva* (ex-Fur Mil Op Esp da CART 1689/BART 1913, , Catió, Cabedu, Gandembel e Canquelifá, 1967/69), enviou-nos esta sua boa memória de guerra.

Memórias boas da minha guerra (25)

O Furriel Zé Maria ou Cambanças da nossa geração

O regresso da Bairrada, é sempre pesado. A comida é boa, a pinga é forte e os companheiros de mesa “jogam muito” no incentivo ao consumo. Por isso, não são precisos muitos quilómetros para que um homem tenha que encostar, a fim de passar pelas brasas.

Meia horita depois, acordo mal disposto e com a cabeça tonta. Confesso que estou pior do que quando encostei naquele pequeno espaço, à sombra de um chorão vimeiro. Só um café me pode salvar. Olho em frente e reparo que há ali um, a poucas dezenas de metros.

Encosto-me ao balcão e mando vir o café. Ainda não estava servido e sinto-me envolvido por uma carícia exuberantemente cheirosa e bem “charmosa”.
- Meu bem, você não quer mais nada, além do cafezinho? - segredou-me ao ouvido a brasuca, bem abonada, encostada a mim.
- Não. Tenho que trabalhar e estou ainda cheio do almoço. – respondi-lhe.
- Mas, meu bem, você se está afastando de mim, porquê? Minha nossa, sou tão ruim, assim? Você não quer mesmo mais nada? – insistia ela, com a voz melosa, ao mesmo tempo que fazia roçar todas as suas saliências frontais pelo canastro deste pobre velho.
- Não! Nada disso! Por sinal és bem boa, carago! Sabes, é que já estou velho e cansado para outras coisas. – Voltei a responder.
- Olha meu bem, você não brinca comigo, não? Tira isso de sua cabeça, meu bem. Você não é coisa de se desperdiçá, não. Goza tua vida, meu bem, porque você é muito garboso e é uma pena você si chamá de velho. Te cuida, porque você tem muito para .

Ao mesmo tempo que me libertei, dirigi-me para a saída do café. Foi quando, a custo, me apercebi que entrara um indivíduo que não me era estranho. Quando o fito, ele reage logo:
- Olha o Silva. Que andas por aqui a fazer?
- Vim almoçar com um cliente e amigo, da Bairrada. Mas o meu alambique já não tem estofo para tanto.

Olha, lá em Catió, Cabedu, Canquelifá, Bissau etc etc, aquilo era uma máquina, a evaporar o álcool. Agora… agora, estou a emborcar cafés para poder regressar a casa.
- E tu, estás bem? Ainda trabalhas com o teu irmão? – perguntei
- Sim, está tudo na mesma. Tal e qual como há tempos quando estivemos a conversar.

O Zé Maria, fez a guerra da forma mais pacífica possível. Fazia unicamente o indispensável e exigível e procurava sempre evitar apertos ou quaisquer excessos. Era conhecido pelo Furriel Sorninha.
Por outro lado, evitava abrir-se ou falar de assuntos relacionados com a sua vida privada. Digamos que não era gajo de convívio ou de se puxar para a borga. Um gajo porreiro mas muito fechado.
E foi cá, em longas conversas, que tive a oportunidade de o conhecer melhor.

Depois da guerra, ainda frequentou o Instituto de Engenharia mas não resistiu à onda libertina do final dos anos sessenta. Rumou Europa fora, poisou em Paris, juntou-se a grupos “hippies” comunitários e andou por todo o lado, perfeitamente integrado naquele ambiente de novos ideais e de velhos prazeres. Foi até ao extremo.

O tempo passava rapidamente e as ressacas também. Quando se apercebeu de que já não estava a sentir a mesma alegria inicial e que já não estava a aproveitar nada desse tempo, resolveu iniciar o regresso.
Ainda trabalhou numa empresa pública mas, não habituado à disciplina, acabou por “encostar” na empresa do irmão (fabrico de bicicletas), onde se sentia à vontade e onde pôde por a render todas as suas capacidades.

Casou, teve um filho e tem levado a sua vida equilibrada e livre de sobressaltos. Por outro lado, gosta de manter os seus pequenos vícios (pesca, caça e um ou outro convívio restrito).

- Por que estás aqui, se moras lá mais para diante? – perguntei.
- Trabalho ali ao fundo e este é o café que tenho mais próximo. Estou de passagem. Fui buscar a “roullote” ao mecânico, porque vou aproveitar a ponte de Sexta-Feira, para ir até lá baixo com a patroa. Eu gosto disso e ela ainda mais. Queres ver, a máquina?

- Boa tarde Senhor José Maria e companhia. – saudou uma mulata que nos cruzou.
- Boa tarde Dona Miquelina. – respondeu o Zé Maria
- Estás ligado a estas gajas? – perguntei surpreendido.
- Não! Nem pensar! Simplesmente, levo a minha vida normal e trato toda a gente por igual. – respondeu
- E digo-te mais, admiro esta fulana que passou. Já é avó, vem de Gaia trabalhar, mas deixa o neto no infantário todos os dias, onde o recolhe ao fim da tarde. A filha deixou o companheiro tóxico-dependente e está desempregada. Ela vê-se ainda mais negra a lutar pela vida.
- Então, pode ser minha vizinha? - perguntei.
- Não sei de que zona é, mas não te admires nada se a vires ser tratada lá como uma senhora. Parece que faz constar que trabalha em Santa Maria da Feira, numa fábrica de calçado. Coitada, veio de Angola convencida que encontrava o pai. A mãe dissera-lhe que ele vivia junto do Tejo e que toda a gente o conhecia por Sargento Bigodes.

Em Lisboa, fez uns biscates nas limpezas domiciliárias mas, como era muito jovem e já muito jeitosa, não demorou muito tempo a ser apanhada no ambiente de vida fácil. Diz que viveu com um chulo que lhe fez a filha e que, logo que pôde, fugiu com ela para o norte.

- Sempre que passo ali na recta, vejo várias na margem da estrada. E algumas ainda muito jovens. Agora está calor, mas no inverno metem dó – disse eu.
- Sim, andam aí mais, mas vão-se alternando. No inverno, são menos. Tenho pena delas. No dia 24 de Dezembro passei aí, vi a Miquelina com uma amiga, uma desengonçada, junto de uma pequena fogueira e pensei: - Hoje é Natal, porque não fazer uma boa acção? Fui ao restaurante “As Cubatas”, trouxe de lá uns frangos picantes e mais umas coisitas, armei a mesa na “roullote” e mandei-as entrar. Encostámos com a traseira ao sol e virados para o Rio Vouga, comemos e bebemos, até fartar. Foi uma tarde espectacular! Gostei imenso! Não imaginas a alegria que vi naquelas pessoas.

Falámos, falámos, rimo-nos de tudo e de todos. A determinada altura, já melancólica, diz a Miquelina: - Não sei porquê mas agora que estou tão bem, sinto uma saudade enorme de f.....!
- O quê? – Espantámo-nos.
- Sim, de f....! De f..... a sério! F...... por amor!!! – Continuou
- Oh meu Deus, há quantos anos que não sei o que é isso!!!

Silva da Cart 1689
____________

Notas de CV:

(*) Vd. poste de 18 de Novembro de 2011 > Guiné 63/74 - P9056: Outras memórias da minha guerra (José Ferreira da Silva) (10): O grande choque (2)

Vd. último poste da série de 1 de Outubro de 2011 > Guiné 63/74 - P8844: Memórias boas da minha guerra (José Ferreira da Silva) (24): Os Bravos do 13.º Pelotão sob o Comando do Furriel Montana

4 comentários:

Juvenal Amado disse...

Ferreira gostei.
Um encandear de vidas, cruzamento de vivências.
Vidas perdidas e ganhas a cada instante.
Um abraço

Anónimo disse...

Companheiro
Que maravilha, Silva, que maravilha!
Andamos todos lixados com a situação do mundo e o mundo tão cheio destes casos que é como se não existam escondidos aí no preconceito e na ignorância do rebanho.
Foi bom que tivesses lembrado a malta, embora pelo número de comentários, a coisa passe ao lado. Água mole em pedra dura, tanto dá até que fura.
E gostei muito da prosa
Abraço
José Brás

Manuel Carvalho disse...

Ò Zé isto não e uma estória de vida, mas sim de vidas.Gostei de todas que li.
Venha dai esse livro. É um prazer ler o que escreves.

Um grande abraço.

Manuel Carvalho
Jolmete

Anónimo disse...

Pois é!
Muito bem descrito, e uma grandeza de alma espelhada pela solidariedade com os proscritos. Coisas do preconceito social e religioso, ou ao contrário.
Abraços fraternos
JD