CARTAS DE AMOR E GUERRA
5. Às portas da guerra
Bissau, [24] Agosto-65
(…), patinhando na lama e nas águas dos arrozais, encharcado, suado, com os raios solares faiscando e infiltrando-se no corpo com picadelas ferozes, patrulhando áreas à volta de Bissau, dizia eu, motivos tiveste para que eu ao regressar à calma do meu quarto do quartel não tivesse à mão palavras tuas a obrigarem-me a um colóquio reconfortante, a provocarem-me momentos diferentes que quebrassem a monotonia das horas passadas a contar os mosquitos pespegados na cal branca do tecto.
(… … …)
Tu és sem dúvida o meu traço de união com aquela vida que eu requeiro. Fazes parte dela, tens parte importante nela. Agora mais que nunca, não nos podemos separar.
(…). A ideia de um possível azar que me possa acontecer (…) poder-me-á conduzir (…), a um certo desprendimento motivado por um obcecante (…) “não seria melhor a separação?” (…) “seremos capazes de nos aguentar assim?”.
(…) já terás pensado o mesmo. (…) minha querida, só nos resta a esperança.
(…) para nem sequer se pensar em maus acontecimentos, terá de haver vida (…) que nos leve a esquecer a separação, que nos conduza a um tal estado de confiança que o derrotismo nada poderá contra esta fé radical em nós.
(… … …)
Bissau: “Do alto do depósito de água de Santa Luzia avista-se ao fundo o casario de Bissau e do Ilhéu do Rei.”
Foto e legenda de Henrique Cabral. © blog: Rumo a Fulacunda – Guiné 65/67.
(…). Da maneira que isto está, se continuasse sempre em Bissau não correria perigo nenhum. O que acontece é que de vez em quando saio (…) a fazer uns patrulhamentos na região. Ainda não senti o perigo. (…). Como vês, até agora (…) tenho tido sorte. (…) já te disse noutra carta: é muito mais fácil, há de longe muito mais probabilidades de escapar do que de morrer. (…) a ideia de morte (…) não me preocupa. Preocupa-me muito mais a influência que esta minha estadia aqui poderá ter na minha vida futura. Como reagirei, (…) como olharei (…) os factos e os momentos passados nesta malfadada terra, (…) onde somos manipulados por cordelinhos sem tugir nem mugir, quais marionetas (…), para gozo (…) dos espertalhões da primeira fila, (…).
Tanto de um lado como do outro isto acontece. Mas acredito que o sofrimento é maior do nosso lado.
Serei eu capaz de me aguentar? Se tiver coragem, ah quanto ela é precisa, deverei conseguir. (…) é de meu interesse saber onde ponho os pés, ver bem com que linhas me coso, viver como observador, o mais possível como observador, continuamente em estado de alerta e de crítica, (…).
A guerra é uma experiência valiosa, dolorosa experiência. (…). Nada a justifica. Mas às vezes a estupidez humana conduz os acontecimentos a tal estado que ela se torna inevitável. (…). Caídos no meio dela, os homens revolvem-se, põem a claro os seus sentimentos, os seus defeitos e virtudes, (…).
Em que redundará esta minha experiência? Espero, minha querida, resultados positivos.
Bissau, símbolo do poder: Praça do Império, monumento “Ao Esforço da Raça”.
Vd. (*)
Bilhete postal, ed. Foto Serra – Bissau. Coleção de Agostinho Gaspar.
Imagem retirada do post 5928, blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné.
Bissau, Agosto-31/65
(…) até ver, tudo me tem corrido da melhor maneira. Com certeza que seria utopia da minha parte considerar que isto me poderá correr sempre assim. (…). O perigo espreita. (…).
Isto aqui dá muito que pensar e, às vezes, até tem uma certa piada (…) humor negro. (…) certas coisas têm acontecido (…) me abstenho de as criticar aqui (…) por um certo nº de motivos – facilmente (…) depreenderás. (…). [vd. **]
Bissau, Setembro-7/65
(…). Um mês já se passou. Foi fácil de passar mas (…) a nula vontade de cá estar torna os momentos difíceis. Procuro abstrair-me deste problema e tirar o melhor partido da situação.
A maior parte dos dias passo-os[a], calmamente, no quartel aqui em Bissau. Lá vem um ou outro dia em que não sei se chego ao fim vivo, partido ou morto. Por ironia, estes são os que passam mais depressa. Vou para as operações suficientemente calmo. Talvez por verificar que morrer é a coisa mais simples, natural e fácil que existe. Vou para o jogo. E vou tentar jogar o melhor possível, esperando também um pouco de sorte. Confio nesta sorte e no meu sentido de jogo. Posso ter um azar? Posso. Mas isto pouco conta. Ninguém vai jogar sabendo antecipadamente que perde o jogo.
Meu amor, vão ser dois anos difíceis de passar. Mas aguentá-los-emos firmemente.
(… … …).
******
(*) - “Ao esforço da raça “
Esta expressão diz tudo, até na incongruência do nome dado ao monumento. Naquele tempo já não se usavam oficialmente palavras como “império, colónia” e suas derivadas; tinham sido varridas do vocabulário oficial, por razões óbvias. O regime político vigente usava a expressão “um país multirracial” para definir Portugal e uma outra, mais comum, era “país uno e indivisível que vai do Minho a Timor”.
Sendo assim, nada melhor(!) do que ter um grande monumento “ao esforço da raça” implantado em frente da sede do poder político-militar da Guiné, no centro da principal praça de Bissau, a “Praça do Império”! Quando vi tal coisa fiquei a rir-me para dentro. Patético!
Seria possível que os ideólogos do regime não percebessem que uma coisa daquelas prejudicava a aceitação pelos guineenses da doutrina política que tanto se esforçavam por difundir? Pelos vistos era possível.
Se havia uma “raça esforçada” tinha de existir uma outra, preguiçosa e de pouco valor! E que esforço, tão grande e tão digno de ser elogiado, a “raça esforçada” tinha feito naquelas paragens africanas? O conceito “império colonial” não tinha já sido expurgado da Constituição Portuguesa? É fácil encontrar as respostas.
Sim, a grande maioria dos guineenses não saberia ler tal mensagem. Muito menos compreenderia o seu significado real mas compreendia bem outros sinais deste género, como depressa vim a verificar, sinais fáceis de encontrar em algumas atitudes e relações sociais, as quais em vez de ajudarem o governo a melhorar a situação política, social e militar, não, antes a pioravam.
O mais certo, também, era a palavra “império” pouco ou nada dizer a essa maioria da população. Mas havia uma minoria que tinha capacidade para retirar de tudo isto razões políticas de modo a reforçar e facilitar a sua luta contra a presença portuguesa naquela terra. Coisa que não deveria interessar ao poder político-militar português, penso eu!
(**) - Logo na minha primeira saída do quartel fui procurar um antigo companheiro com quem tinha convivido durante dois anos, o tempo que esteve em Portugal a completar o curso liceal já que na Guiné isso não era possível na altura.
Esperava vir a ter um encontro efusivo. Encontrei-o num café a conversar com três ou quatro amigos locais, brancos. Não quero dizer que fui mal recebido, quero dizer que esperava ser muito mais bem recebido.
Depressa senti a conversa a esgotar-se e o seu desinteresse em se referir à (minha) situação militar. E despedimo-nos com a promessa de ser ele a me contactar no quartel para convivermos um pouco.
Daí a três meses saí de Bissau. Nunca me apareceu e eu também nunca lhe apareci. Tornei a vê-lo aquando do meu regresso, 21 meses depois. Fui despedir-me ao seu estabelecimento. Andava muito atarefado a atender militares que, como eu, embarcariam no “Uíge” dali a poucos dias. Não quero fazer jogo de intenções mas o interesse que ele mostrou pelo que passei naquela terra foi nulo.
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Um dia, pelo meio da manhã, andávamos três furriéis a identificar as “capelinhas” de Bissau e entrámos numa delas. Ao fundo da sala estavam sentados três homens com ar “africanista”, as únicas pessoas ali além de nós. Sentámo-nos perto da saída e começámos a tomar qualquer coisa. Da sua mesa vinham sons indefinidos da conversa que a certa altura subiu de tom e se tornou mais animada, por vezes galhofeira. Ficou a ser possível ouvir alguma coisa do que diziam.
Percebemos que a conversa “metia” militares. Olalá, começámos disfarçadamente a afinar os ouvidos! “Periquitos” que éramos, ficámos curiosos. Que ouvimos?
Ouvimos uma crítica pública a atitudes de alguns militares combatentes. Julgavam eles que nós não ouvíamos? Acho que não se preocupavam com isso. No mínimo, manifestavam indiferença pela nossa presença. Éramos três furriéis fardados, eles sabiam que os podíamos ouvir e não se coibiram de continuar naquela galhofa. Achei aquilo uma provocação.
Um, que parecia o animador, gozava ironicamente com os medos dos combatentes, com as peripécias por que passavam durante as operações, com as suas dificuldades de adaptação, com as surpresas tidas ao depararem com certos hábitos culturais da população (dos “pretos”, ouvia-se), tudo acompanhado por boas risotas. Chegou-se ao cúmulo de se referirem pelo nome a um quadro militar, comparando a triste figura que diziam ele ter feito durante uma emboscada com a de um outro com as mesmas funções numa situação idêntica e que muito elogiavam.
Acho que saímos dali todos enjoados, eu saí.
Que motivos levavam alguma população branca das chamadas províncias ultramarinas a olhar assim para os militares, como seus meros serviçais a quem exigiam o máximo de sacrifícios, não os respeitando e gozando com as limitações de alguns?
Anos mais tarde vim a saber de comportamentos análogos noutros teatros de operações, mais graves do que este de Bissau, nomeadamente em Moçambique, onde se chegou mesmo ao conflito direto entre população branca e militares expedicionários.
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Nota do editor:
Vd. último poste da série de 30 DE JANEIRO DE 2013 > Guiné 63/74 - P11026: Cartas de amor e guerra (Manuel Joaquim, ex-fur mil, arm pes inf, CCAÇ 1419, Bissau, Bissorã e Mansabá, 1965/67) (4): Um mal-entendido (?)
2 comentários:
Olá Manuel Joaquim.
Tirando a parte da troca de correspondência, onde vem todas aquelas coisas próprias de duas pessoas que se amavam, e estavam em cuidado, com receio de se perderem, já estás a entrar, talvez sem reparares, em outro mundo que na época existia, que era tal e qual como eu tinha sido instruído na escola primária de Portugal, "um país uno e indivisível, que vai do Minho a Timor", e depois "Ao Esforço da Raça", que me mandou com uma farda e umas botas novas, no porão de um navio, para longe da minha aldeia!.
A seguir explicas as conversas que ouvias de pessoas civis, também eram normais no meu tempo, pelo menos quando cheguei a Mansoa, dado à dificuldade que os militares impunham aos civis, que estavam acostumados a deslocarem-se de um lado para o outro, usando toda a sua liberdade, irem às matas cortar madeira, usarem toda a mão de obra, pagando o que entendiam, venderem com a margem de lucro que entendiam nos seus estabelecimentos, comprarem os produtos agrícolas, aos naturais, ao preço que também entendiam, e depois já sentiam uma certa dificuldade em o fazer, pois os militares estavam presentes, e para se deslocarem a outro lugar, tinham que dar conhecimento às autoridades locais, isto entre outras coisas, que faziam olharem para os militares, às vezes "de lado".
Manuel, este assunto deveras sensível, dava páginas e páginas de alguém que tivesse o verdadeiro conhecimento deste fenómeno, que foi a chegada em força dos militares a um local onde, começou a impor algumas regras, onde se vivia um pouco longe da civilizaç ão, pelo menos ocidental, a que os europeus estavam habituados.
Continua Manuel.
Um abraço, Tony Borie.
(...) "Logo na minha primeira saída do quartel fui procurar um antigo companheiro com quem tinha convivido durante dois anos, o tempo que esteve em Portugal a completar o curso liceal já que na Guiné isso não era possível na altura.
"Esperava vir a ter um encontro efusivo. Encontrei-o num café a conversar com três ou quatro amigos locais, brancos. Não quero dizer que fui mal recebido, quero dizer que esperava ser muito mais bem recebido.
"Depressa senti a conversa a esgotar-se e o seu desinteresse em se referir à (minha) situação militar. E despedimo-nos com a promessa de ser ele a me contactar no quartel para convivermos um pouco.
"Daí a três meses saí de Bissau. Nunca me apareceu e eu também nunca lhe apareci. Tornei a vê-lo aquando do meu regresso, 21 meses depois. Fui despedir-me ao seu estabelecimento. Andava muito atarefado a atender militares que, como eu, embarcariam no Uíge dali a poucos dias. Não quero fazer jogo de intenções mas o interesse que ele mostrou pelo que passei naquela terra foi nulo." (...)
Meu caro Manel Joaquim: Este teu apontamento sobre o teu colega de Liceu, comerciante ou filho de comerciantes, é muito interessante. E ilustra muito bem a experiência humana da frustação e da deceção quando pomos a fasquia das nossas expetativas demasiado alta em relação aos outros... Provavelmente o teu ex-colega de Liceu era apenas isso, um conhecido, ex-colega de Liceu, e não um amigo do peito... E depois, o vosso reencontro dá-se na altura em que cada um desempenha papeis diferentes. O que esperariam os civis brancos(nomeadamente os portugueses, já não falam dos libaneses ou outros), que tinham a sua vida organizada na Guiné ? Esperariam, tal como em Angola e Moçambique, que a guerra fosse rápida, e que a paz voltasse... Em 1965, a maior deles já estava confinada a Bissau, tendo sido obrigada abandonar as suas casas e estabelecimentos no mato, nomeadamente os que viviam nas regiões de Tombali, Quínara, Oio... E em 1967, quando tu regressas a casa, a situação militar tinha piorado... Em meados de 1968, como sabes, Spínola vem para a Guiné, por escolha pessoal de Salazar... Os civis, brancos, de Bissau, ligados ao comércio e atividades terciárias não deveriam ser mais do que 2 mil, e estavam naturalmente apreensivos...
Eu entendo a tua frustação e deceção. Mas também sou capaz de me "pôr na pele" do outro... O que é feito do tei colega de Liceu ? Regressou a Portugal, depois da independência ? Era interessante trazê-lo até ao nosso blogue...
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