domingo, 26 de maio de 2013

Guiné 63/74 - P11632. Blogpoesia (340): O milagre das cerejeiras (J. L. Mendes Gomes)

O Milagre das cerejeiras


por J. L. Mendes Gomes

Por volta do mês de Maio,
Quando o vento dava
para lançar o papagaio,
colado a goma de sapateiro,
todo ele em papel negro de jornal,
preso a cinquenta metros de fio grosso,
das canas secas
dos foguetes mortos,
a cerejeira alta do vizinho
exibia, engalanada,
que nem um andor,
abundantes cachos rubros de cerejas.

O dono ia para a feira da vila,  descansado.
A pequenada, no fim da escola,
Poisava no chão, respeitosamente,
As alças presas das sacolas.
Pareciam macacos, trepadores,
Pelo tronco grosso acima.
Até aos cumes.
Depois era só encher
O corpo,
À volta fresca da camisa.
Até mais não…

A seguir,
Na mata do tanque,
Da Quinta das Bocas,
Sob os carvalhos
De frondosa sombra.
Era um fartote!...
Não havia gelados, iogurtes,
Nem frigoríficos.
Só havia sol
E a liberdade de fazer milagres,
A céu aberto,
À saúde da cerejeira…

Ovar, 25 de Maio de 2013


15h52m

Joaquim Luís Monteiro Mendes Gomes



[Foto de cima: Cerejas, Quinta de Candoz, Candoz, Paredes de Viadores, Marco de Canaveses, 8 de junho de 2012]

Foto: © Luís Graça (2012). Todos os direitos reservados
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Nota do editor:

Último poste da série > 18 de maio de 2013 > Guiné 63/74 - P11590: Blogpoesia (339): À custa duns "largos jarros" / e pastilhas LM, / cerveja, whisky e cigarros, / paludismo não se teme... (Manuel Maia)

6 comentários:

Henrique Cerqueira disse...

Caro Camarada Mendes Gomes
Fizeste com que regressa-se à minha meninice ,pois que estávamos sempre à espera desta altura para visitarmos as cerejeiras de um lavrador que havia junto do meu bairro.Aliás acontecia com todas as novidades frutícolas.Posteriormente esperávamos o início do amadurecimento das espigas de milho para assarmos umas quantas.
É claro que gelados e afins só em dia de festa ou quando algum familiar se dava largas a despesismo e lá caía alguma coisa.
Um abraço
Henrique Cerqueira

Anónimo disse...

Malandros dos putos!
Mas é verdade. Não havia yogurtes nem gelados, nem tempo, nem dinheiro para as mães fazerem guloseimas e os corpinhos pediam: E há lá coisa melhor que uma "barrigada de cerejas?

Abraço solidário.

Felismina

Luís Graça disse...

Joaquim, gosto muito deste teu regresso á "infância perdida"... Ou melhor: à "idade da inocência"... Ou melhor ainda: ao tempo da "liberdade livre"... Tempo sem retorno!

Foram estes putos, que iam aos ninhos, trepavam às árvores, rachavam cabeças, jogavam ao pião, rasgavam o céu com os seus mágicos papagaios... Foram estes putos a quem a escola ensinava a ler, escrever e contar (e a mais não os obrigava, nem convinha!)... Foram estes putos os últimos... soldados e marinheiros do império!... Somos todos nós que nos revemos no teu singelo e feliz poema... Um abraço fraterno. Luís Graça

manuel maia disse...

Caro Joaquim,

Fizeste-me recuar no tempo.
Também eu e os colegas de então fazíamos essas "patifarias"...
Havia uma quinta em rente ao lugar onde nos concentrávamos, que tinha uma limeira...

O dono queixava-se que nunca conseguira comer uma só...
Obrigado.
abraço

Anónimo disse...

Como é possível que não tenha reparado nesta minha questão colocada no poste anterior, repito:

Caro Amigo (se me permite):
Curiosamente acabei de colocar no facebook um texto a pedir contactos de pessoal que tenha pertencido à CCaç727, pois está a ser feito um livro de homenagem ao Joaquim Ev. Vasconcelos, falecido em 2012, que foi o comandante desta CCaç e que esteve na Guiné na mesma altura (1964-66). Julgo que foram no mesmo tpt de tropas. Este será lançado nos primeiros dias de Outubro. Assim seria possível disponibilizar os contactos que tiver? O meu é:
manuel.bernardo258@gmail.com.
No dia 29 deste mês haverá o lançamento de um livro de um grupo de poetas de Lisboa (e não só...), na SHIP, tb em homenagem àquele meu amigo, que tinha um site cultural e que ainda está "no ar": Varanda das Estrelícias.
Continue com a sua actividade poética, que é bem portuguesa! Ab
Manuel Bernardo (Cor. ref.)
Sexta-feira, Maio 17, 2013 12:24:00 PM
PS: Parece que não foram no mesmo tpt de tropas, mas terão regressado no mesmo barco, no final das comissões das duas companhias.

Bispo1419 disse...

Meu caro Joaquim Mendes Gomes:
Que prazer me deu a leitura deste teu poema!
Muito obrigado pela ternurenta recordação dum momento da minha infância, passado numa cerejeira.

No regresso da escola, três mariolazitos, resolvemos sair do caminho habitual de volta a casa para procurar ninhos pelos campos fora.
A certa altura demos com uma cerejeira, de médio porte, cheia de apetitosas bolinhas vermelhas faiscando ao sol da tarde. Lá se foi a ideia dos ninhos, apagada de imediato com aquela gostosa visão naquele sítio ermo.
Não demos por vivalma e iniciámos a função. Saltitávamos à volta da árvore ripando cerejas e eu, pequenote, comecei a não chegar aos ramos que ainda as tinham. A solução foi subir à cerejeira.
De repente aparece-nos a dona aos gritos, de cana ameaçadora na mão. Os que estavam no chão fugiram a sete pés e eu fiquei em cima da árvore sujeito às "canadas" da mulher. Ao tentar fugir a elas, agarrei-me a um ramo mais alto mas este partiu-se e lá viemos, eu e ramo, cair em cima da dona das cerejas. Gritando e esbracejando a pobre mulher lá ficou a tentar desenvencilhar-se do ramo enquanto cá o puto, "ah pernas para que vos quero"!, sem esquecer a sacola, desatou a correr a caminho de casa.

Sorte tivemos em não ter sido identificados. Sei bem o que a "sorte" me reservaria se o tivéssemos sido: uma sovazita para aprender a "não cobiçar as coisas alheias" como mandava a "lei" seguida naquela altura na minha casa.

Um grande abraço
Manuel Joaquim