CARTAS DE AMOR E GUERRA
14 - Ciúmes
Vale de Figueira, 9-Fevereiro-66
Meu M. querido, acho um pouco estranho não ter recebido notícias tuas, sábado. Esperava-as com ansiedade tanto mais que havias prometido escrever acerca de um assunto em que eu não tinha nem sequer pensado. (… … …).
(…).
Isto foi o prefácio para me pôr à vontade contigo. Tenho um assunto mais delicado a focar-te.
Previno-te já que não gozes. Está bem, meu querido?
Fotos: D. em Lisboa (1967) e M. em Bissorã (1966)
Gosto muito, muito de ti. Mas isso não é suficiente para que não sinta certas dúvidas e desconfianças quando posta ao corrente das reacções de tantos perante a vida que levam as moças de quem gostam. Eles não gostam disto ou daquilo, sentem ciúmes, etc. Ora, em todo este tempo de convivência nunca me apercebi de que, contigo, acontecesse tal. Não te rias, meu M., já sabes que detesto ser objecto de troça.
Mas existe ou não existe ciúme, o mínimo que seja, em relação a mim? Nunca me apercebi dessa existência e agora preocupo-me, sinto-me muitas vezes até diminuída, ao ouvir o que as minhas colegas me contam de noivos ciumentos. E ao expor-lhes certos pontos de como decorre o nosso namoro, elas estranham e eu deduzo que não acreditam nas tuas boas intenções a meu respeito.
(…). Mesmo assim, meu querido, acredito na tua sinceridade, na tua lealdade, numa retribuição completa, total, dos meus sentimentos.
Ainda assim, atrevo-me a perguntar-te:
- Sentes ciúmes de mim? Principalmente agora, que estamos tão distanciados, que estou empregada e que mantenho uma correspondência íntima com um grande amigo?
Explica-me, esclarece o que te for possível neste sentido. Está bem? (…).Com todo o meu amor, beijo-te e abraço-te intensamente. (…).
Bissorã, 24FEV66
Não, minha querida, o teu comportamento nos últimos tempos de maneira nenhuma influenciou os meus silêncios, de vez em quando mais prolongados do que o costume. Tu sabes que estou contigo. Então para quê todos esses receios, por possíveis zangas minhas?
(… … …).
E, para a próxima, não andes por aí a atrapalhar-te com os meus aborrecimentos sem primeiro veres, com olhos de ver, o que te escrevo.
(… … …).
E vamos lá então falar um bocadito dos ciúmes que queres que tenha.
Que queres que te diga? Forçosamente que os tenho mas numa quantidade muito relativa. Quero-te para mim, sim senhor. Mas quero-te para mim com a certeza de que és minha, te dás ao teu M. totalmente. O que é que me pode provocar ciúmes? Saber que te escreves com uma espécie de “rival” meu ou saber que acompanhas rapazes por aqui ou por ali? Não.
Concedo às pessoas a máxima liberdade na máxima responsabilidade. Saber que anda um moço tentando conquistar-te, não me aflige. Fico à espera. E superficialmente advém-me uma certa aversão ao moço ou mesmo a ti (estou a falar num hipotético exemplo). Mas o meu espírito crítico põe-se logo em acção. Porquê tu com o outro? Os resultados não me afligem. Se me deixas e vais para o outro é porque, na verdade, eu te não sirvo, (…).
Ciúmes duradoiros, não tenho. Ciúmes depois da reflexão, não tenho. Podes ter a certeza de que, se um dia te encontrasse ”fazendo amor” com um rapaz qualquer, estarias sujeita a levar dois estalos ou levarias mesmo [!!!], não pelo que estavas a fazer mas por me teres mentido. Ponho todas as hipóteses:
Casamos. Se se desse o caso de teres encontrado um homem que te fizesse esquecer-me e mo dissesses, eu ajudar-te-ia inclusivamente a ires ao seu encontro [!]. Se eu entrasse em casa e vos visse aos dois na cama ou soubesse que a esposa se escapulia para ir ao encontro do “amado” então o caso mudaria de figura. A “queridinha” seria aquele bombo de festa [!!!]. Está claro que num ou noutro caso separar-me-ia imediatamente. Se eu confio plenamente em ti, como posso ser ciumento? Se eu confio plenamente na tua capacidade de escolheres o caminho que desejas, como posso ter ciúmes? Não sei como te hei-de explicar mas, o que é certo, é que não sou ciumento, no verdadeiro sentido da palavra. Estou a teu lado enquanto estiver convencido de que és aquela que quero ou até que me queiras. Hoje, amanhã, daqui a anos, a separação existirá se se verificar que fomos uns “patinhos” e que não servimos um para o outro. Resta-me agora acrescentar que não acredito nada em que isto possa acontecer. Amo-te e creio no teu amor, no nosso grande amor. Se o tema ciúme não estiver bem explicado, diz. Para a próxima continuo.
Abraço-te e beijo-te, meu amor. M.
Lisboa, 1-Março-1966 Querido M.
(…). Não há um dia em que tu não sejas recordado por mim com extrema saudade. Com a certeza do grande Amor que nos une, a vida ainda vale a pena, apesar de tudo. Conheci-te num período decisivo da minha vida, (…) agora nunca poderás sair dela, aconteça o que acontecer.
(… … …).
Agradeço-te, (…), o acolhimento, a compreensão, o estímulo com que aceitas e destrinças os meus problemas. Satisfez-me muito a tua explicação, os teus pontos de vista sobre o problema “ciúme”, (…). Um abraço, meu querido. Não de gratidão mas de certeza e afirmação de que te quero, um testemunho de que me serves. Essa tua explanação de ideias é suficiente, não preciso mais de falar em tal. Continuarei a merecer essa tua confiança como até agora, com a certeza de que posso contar contigo. Meu amor, talvez que quando esta carta te chegar às mãos já terás notícias da tua Mãezinha [hospitalizada]. Mesmo assim, afirmo-te que está excelente. Tenciona ir para casa esta semana. Podes descansar, meu querido, que já não corre perigo.
(… … …).
(…). Como anseio o teu regresso! Abraça-me, querido … Aperta-me nos teus braços como só tu sabes. (…). Autoriza que te grite uma vez mais que te amo muito, (…). (…).
P.S. Diz-me os livros que gostarás de adquirir (…), tenho agora oportunidade de os mandar por um rapaz meu conhecido que embarca para aí a 22 do corrente. Está bem? Pede tudo o mais que quiseres.
Beijo-te. (…).
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Nota do editor
Último poste da série de 23 DE MAIO DE 2013 > Guiné 63/74 - P11614: Cartas de amor e guerra (Manuel Joaquim, ex-fur mil, arm pes inf, CCAÇ 1419, Bissau, Bissorã e Mansabá, 1965/67) (13): Religiosidade
2 comentários:
Tinhas um grande coração pá que nem eu. Passados que foram já 50 anos que casei, nunca soube dizer coisas tão lindas, mas tenho pena. Um abraço pela coragem de desvendares. E parabéns pela MULHER que mereceste decerto. Um abraço do
Veríssimo Ferreira
Olá, meu caro Veríssimo!
Não sejas avaro quanto à beleza de muitas das palavras e frases que de ti saem. Pelo que tenho lido, vindo de ti e aqui no blogue, sei não ser verdade que palavras lindas tenham andado arredadas da tua boca e/ou da tua escrita.
Olha que neste meu texto há palavras (ideias) que, hoje, não acho nada lindas. Por isso as assinalei com pontos de exclamação (!!!):
«estarias sujeita a levar dois estalos ou levarias mesmo» , «A "queridinha" seria aquele bombo de festa»
Oh, esta minha memória!
Sou radicalmente contra a violência doméstica e pensava que sempre o tinha sido. Se não o tivesse visto "escarrapachado" nesta minha carta, não acreditaria que alguma vez tivesse pensado usá-la, que tivesse escrito tal coisa!
Um grande abraço
Manuel Joaquim
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