1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 14 de Fevereiro de 2013:
Queridos amigos,
Mais um documento polémico sobre o pensamento e a obra de Cabral, vem do punho de um companheiro de juventude, um são-tomense que com ele conviveu na Casa dos Estudantes do Império e no Centro de Estudos Africanos.
É uma interessante reflexão sobre a evolução do pensamento da crítica colonial , e não é por acaso que ele considera que Cabral se sentia muito devedor de Aimé Césaire e Frantz Fanon.
Onde a polémica sobre de tom é no levantamento que o autor faz sobre as incompreensões sobre a Guiné e Cabo Verde, ele esmiuça as duas realidades distintas para comprovar que o líder do PAIGC foi um revolucionário que se deixou arrastar por uma utopia irrealizável.
Um abraço do
Mário
A verdadeira morte de Amílcar Cabral
Beja Santos
“A Verdadeira Morte de Amílcar Cabral”, por Tomás Medeiros, Althum.com, 2012, é um longo olhar de um companheiro africano de Amílcar Cabral, nalguns pontos altamente polémico, sob a formação do líder do PAIGC, o seu papel de lutador e uma análise sobre as razões do insucesso político das grandes mensagens que constituíram o sopro revolucionário de um dos maiores pensadores africanos. Tomás Medeiros estudou em Lisboa, acompanhou Cabral dentro e fora da Casa dos Estudantes do Império e é tido como um dos poetas importantes da literatura são-tomense.
Duas abordagens me parecem dignas de nota: o quadro histórico que ele descreve como propiciador da luta anticolonial e a apreciação demorada a que procede para demonstrar a inevitabilidade da cisão Cabo Verde-Guiné. Quanto ao mais, é a minha modesta opinião, a sua apreciação nada traz de novo, se tivermos em linha de conta o que de mais recente se escreveu sobre Cabral e a sua obra, nomeadamente os trabalhos incontornáveis de Julião Soares Sousa e Leopoldo Amado, isto para já não falar da tese de doutoramento de Tcherno Djaló intitulada “O Mestiço e o Poder – Identidades, dominações e resistências na Guiné” de que oportunamente se fará a competente recensão, é um trabalho que desvela as profundas crispações entre os mestiços e os guineenses negros.
Tomás Medeiros vai longe quando observa os documentos sobre a crítica colonial, remontam essas posturas sobre a negritude aos anos 20 do século XX, mostra como o fenómeno amadurecera no fim da II Guerra Mundial e estava estabelecida uma aliança implícita entre o pensamento político terceiro-mundista e o apelo à transformação revolucionária das realidades do mundo africano. Faz uma análise original da literatura portuguesa e a motivação suprema dos Descobrimentos, cita camões, Duarte Gama (um poeta do Cancioneiro Geral) Garcia de Resende (outra poeta do Cancioneiro Geral), recorda a literatura cabo-verdiana assente nos flagelos da seca e da fome e a resposta dada por Juvenal Lopes Cabral, pai do líder do PAIGC, um professor primário cabo-verdiano que se sentia medularmente português.
Não é novidade para ninguém quando se refere que Cabral teve a sua aprendizagem política em Lisboa, mexeu-se na órbita do MUD, comportou-se como um oposicionista não engajado, participou ativamente na Casa dos Estudantes do Império e no Centro de Estudos Africanos. Na sequência de uma trajetória que o leva para o exílio, Cabral funda um partido de tipo novo, é ele quem decide a transferência da direção do PAIGC para Conacri, melhor aliado e mais perto do território não podia ser. Tomás Medeiros faz um bom resumo dos problemas teóricos que irão enquadrar as grandes tarefas que Cabral propõe ao PAIGC e daí a atitude de mobilização e a resposta pela luta armada.
Entrando na questão polémica da unidade entre Guiné e Cabo Verde, o autor faz uma citação do ideal de pan-africanismo de Cabral, no fundo ele gizou várias concessões de unidade: pan-africana, com os países comunistas mais relevantes, China e União Soviética, com a oposição portuguesa. Mal o PAIGC se lança na luta armada, Cabral descobre que não é possível separar a guerrilha do controlo da direção política, como ele dirá em 1969: “A direção político-militar da luta é única: é a direção política da luta. Nós na nossa luta, evitamos criar o que quer que seja militar. Somos políticos e o nosso Partido, que é uma organização política, dirige a luta no plano civil, político-administrativo, técnico e portanto militar. Os nossos combatentes definem-se como militantes armados. É o Bureau Político do Partido que dirige a luta armada e a vida, tanto nas regiões libertadas como nas que o não são”. Medeiros observa que Cabral dizia que a Guiné era um território independente com uma parte da sua parcela ocupada pelo inimigo. Na parte independente, os homens da cidade puderam instalar-se e desapareceu esta divisão entre a luta armada e os militantes do interior. Estaria neste raciocínio a mais poderosa utopia de Cabral: ver o desaparecimento inevitável do mundo velho, a cidade, sendo que nas zonas libertadas estavam a surgir os alicerces do mundo novo, assim, a luta de guerrilha servia para construir o espaço de onde se partiria para a nova visão do homem e do país.
E chegamos à crítica mais profunda de Medeiros ao pensamento de Cabral. Se era certo que o líder do PAIGC resumia admiravelmente os ideais de inconformismo, de protesto, de honesto sentimento revolucionário, e personificava a revolta visionária da utopia possível, nem por isso deixou de confundir a Guiné com Cabo Verde; ele não aprofundou o estudo do capital simbólico, a escola, os intelectuais, os meios de comunicação e mesmo o universo simbólico das sociedades capitalistas e coloniais. A economia da Guiné em nada se assemelhava com a economia cabo-verdiana. As riquezas naturais da Guiné eram as matérias agrícolas e as madeiras; empresas norte-americanas e holandesas alcançaram o exclusivo da prospeção de petróleo e de bauxite. Estas comunidades guineenses estavam profundamente hierarquizadas, pesava a educação pela transmissão por via oral, basicamente não foram tocadas pela cultura portuguesa. Os negros de Cabo Verde não eram todos originários apenas do território ocupado pelos habitantes da atual Guiné Bissau, era esta a crítica que José Leitão da Graça fazia a Cabral, mas este manteve-se indiferente. Do ponto de vista cultural e linguístico, e Medeiros volta a citar Leitão da Graça, os cabo-verdianos e guineenses são diferentes uns dos outros. Em Cabo Verde só se fala crioulo e português, as línguas africanas continentais estão ausentes. Em Cabo Verde domina totalmente o cristianismo. A unidade Guiné/Cabo Verde existia por iniciativa e no interesse exclusivo dos colonialistas e negreiros portugueses estabelecidos em Cabo Verde. Cabral ficcionou uma unidade sem qualquer sustentação sólida. O cabo-verdiano tem orgulho nas suas origens, está próximo de África e de Portugal. Como escreveu um dia Germano de Almeida: “O simples facto de falarmos a mesma língua permite que saiamos de Cabo Verde, chegamos a Portugal e sentimo-nos em casa. Dificilmente penso que vou para o estrangeiro. Estrangeiro é o resto”.
É insignificante, continua a dizer Medeiros, saber como morreu Cabral. Quando mataram Cabral, ele já estava morto. Morto pelas teorias que defendia, sobretudo o suicídio da pequena burguesia, morto pelo enunciado político que apresentou na formação do partido. Cabral acumulou incompreensões. Ele tinha que morrer porque tudo aquilo que o movia não interessava. A pequena burguesia cabo-verdiana não estava interessada em suicidar-se porque beneficiava da condição do colonizado. No interior da Guiné, quem dirigia efetivamente a luta era os guineenses negros e alguns cabo-verdianos, mas estes últimos eram intrusos, os guineenses é que eram os verdadeiros donos da luta, quem morria eram os guineenses negros. Os cabo-verdianos nada tinham a ver com a cultura guineense e os guineenses muito menos com a cultura de Cabo Verde. Quando Cabral morreu acabou tudo o que tinha idealizado e pensado. Cabral falava na cultura popular, a da colher de pau e do pilão, assuntos que deixavam os cabo-verdianos indiferentes. E conclui: “A verdadeira morte de Cabral está no que ele foi e quis que o seu povo fosse e não se cumpriu, não está na sua morte física e circunstancial. E o silêncio que sobre ele e as suas teorias se abateu a seguir ao seu desaparecimento é a sua segunda morte”.
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Nota do editor
Último poste da série de 27 DE MAIO DE 2013 > Guiné 63/74 - P11637: Notas de leitura (486): "Memórias da Guiné", por Fernando Magro (Mário Beja Santos)
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
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1 comentário:
Mais um livro que Beja Santos leu para nós.
Por mim, muito obrigado pela "canseira".
Os africanos vão escrevendo a medo, mas aos poucos lá vão indo dizendo o que muitos já "esqueceram".
Antes da guerra, a 15 de Março de 1961, já havia muitos estudantes do império que "sabiam muito", para dar a volta ao "colon".
Mas entre eles é que estava o busílis e os dirigentes como Amilcar sabiam disso, daí que podemos considerar de muito corajosos os dirigentes como Amílcar Cabral.
Embora o tempo não dê razão aos processos do PAIGC, MPLA e FRELIMO, para atingir os fins, os guineenses como Tomás Medeiros têm que considerar Amílcar como o seu herói principal.
Sem Amilcar e o seu PAIGC, dificilmente a Guiné seria um país livre e independente com a suas fronteiras próprias e não uma "casamance qualquer".
Se houve alguma união entre os militares do PAIGC devem a Amílcar e aos caboverdeanos e mestiços, caso contrário, como o tempo demonstra, não havia Guiné-Bissau.
A estátua de Amílcar ´injusto que tenha ficado nos arredores de Bissau.
Porque o lugar devia ser no cruzamento Chapa-Bissau, como prometido há muitos anos.
Ali sim, era visto diariamente por milhares.
Assim ficou a ideia de uma "expulsão".
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