Décimo segundo episódio da série Bom ou mau tempo na bolanha, do nosso camarada Tony Borié, ex-1.º Cabo Operador Cripto do Cmd Agru 16, Mansoa, 1964/66.
Companheiros e amigos combatentes, no dia 10 de Junho, em
Portugal, celebra-se o dia do combatente, e eu aqui, um pouco
distante, é o único dia no ano que uso com muito orgulho as
insígnias comemorativas das campanhas da Guiné, que me foram
colocadas no peito, no Forte da Amura, em Bissau, em Maio de
1966, pouco tempo antes de ter embarcado no navio “Uíge”. E nesse
dia devíamos ser nós os combatentes, tal como disse o nosso
camarada combatente José Colaço, acompanhado por muitos, que
sofreram no corpo aquela guerra, a falar e expressar o profundo
sentimento que nos vai na alma. Eu, colocando-me numa hipotética
personagem de um filho, cujo pai morreu nas bolanhas e
savanas da Guiné, vou contar-vos este texto, que não é bem um
texto, é um expressar de um sentimento profundo e quase real, de
um filho que ainda chora o pai morto em combate, portanto tirem
um minuto e leiam.
Claro que ele me disse, com os olhos chorosos, que é por
profundo sentimento que faz isto. Fiquei tão impressionado quando ele falou e pediu a todos para serem atenciosos e
lembrarem o que as vidas representadas por aquelas pedras,
naquele cemitério de aldeia, significavam.
Quem estava na minha frente e falava era um antigo
Combatente do Ultramar, tinha barba crescida, cara com rugas e
uma boina muito velha, mas com um emblema muito brilhante.
Depois de muito emocionado, ter falado que conheceu o meu pai,
que lutou e sofreu junto a ele, que se riu e confraternizou com
ele, que ambos viveram debaixo de um miserável abrigo, que eram
como irmãos, sabiam segredos um do outro, ajudavam-se e
repartiam as agruras de uma maldita guerra, e que um maldito
dia, uma mina rebentou-lhe debaixo dos pés, mesmo debaixo
daquelas botas já velhas, quase com vinte e dois meses, que
conheciam o som dos tiros, o rebentamento de uma granada, as
bolanhas e algum tarrafo que existiam na zona de combate onde
estava estacionado, foi ele que recolheu o resto do seu corpo.
Esse combatente, limpando uma lágrima, agarrou ainda com alguma
força numa coroa de flores, entregou essa mesma coroa de flores
a mim. A minha mãe, mal se podendo erguer, limpando
constantemente os olhos com um lenço branco, o mesmo que tinha
acenado ao meu pai, na despedida, já grávida e trazendo-me na
sua barriga, no cais de embarque em Lisboa, antes de ir para a
Guiné, que o meu pai lhe tinha oferecido, escolheu a minha neta
mais nova para colocar a coroa de flores no túmulo de meu pai,
porque essa minha neta, ainda leva o seu nome, e via-se que
estava muito orgulhosa. Mais tarde a minha mãe, mostrou-nos um
livro com fotografias a preto e branco e estava lá na última
página a legenda:
“NÓS, ORGULHOSOS DE TI, NUNCA TE VAMOS ESQUECER”
Isto significou muito para mim, e eu percebi que já fazia
parte da minha dor, os meus filhos nunca o conheceram, os meus
netos nunca irão encontrá-lo, e eu estava com medo que ele um
dia, o meu querido pai, morto em combate nas bolanhas e savanas
da Guiné, fosse esquecido.
E virando-me para esse antigo combatente, com a barba
crescida, cara com rugas e uma boina muito velha, mas com um
emblema muito brilhante, disse-lhe:
POR CAUSA DE TI, O MEU PAI NUNCA VAI SER ESQUECIDO
Tony Borie, 10 de Junho de 2013
____________
Nota do editor
Último poste da série de 25 DE MAIO DE 2013 > Guiné 63/74 - P11628: Bom ou mau tempo na bolanha (11): Diz-me com quem andas... (Tony Borié)
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
Subscrever:
Enviar feedback (Atom)
5 comentários:
Amigo Tony: Só nós não nos vamos esquecendo uns dos outros. As novas gerações, salvo raras excepções, sabem lá quem somos, quem fomos, o que sofremos. Tal como os governantes desta terra, também eles se esquecerão e a própria história é bem capaz de passar sem nos mencionar. Este é um País que esquece tudo e todos. Gostei muito desta tua crónica mas fizeste-me ficar a pensar triste. Um abraço do Veríssimo Ferreira
Caro Tony
Dizes bem: "... um expressar de um sentimento profundo e quase real...".
Muito bem escrito, muito bem imaginado, "quase real", ou seja, é bem possível que tenha acontecido num qualquer local.
E de tal maneira assim é que temos o comentário do Veríssimo para o comprovar.
Deixo-te apenas um forte e sentido abraço.
Hélder S.
Caro Camarigo Tony,
O Veríssimo e o Helder já disseram o que eu queria expressar, portanto perfeitamente de acordo com eles, mas se calhar também temos uma pontinha de culpa, porque mesmo em casa não demos a conhecer o que por lá passamos.
Um grande abraço para todos.
Adriano Moreira
Um grande abraço, Tony.
Manuel Joaquim
Caro Tony
Um país que não honra a sua história, não merece todos aqueles que se bateram pela sua bandeira e muito menos aqueles que deram a sua vida - o bem supremo - em honra da sua pátria. Adivinha-se também que um país assim não irá ter grande futuro.
Um abraço.
Luís Dias
Enviar um comentário