Vigésimo nono episódio da série Bom ou mau tempo na bolanha, do nosso camarada Tony Borié, ex-1.º Cabo Operador Cripto do Cmd Agru 16, Mansoa, 1964/66.
A avioneta do furriel Honório, o “Pardal”, como era conhecido no aquartelamento, sobrevoou a tal mangueira, árvore de grande porte que existia no aquartelamento, que por uns metros sobreviveu ao arame farpado, pois os postes de cimento passaram junto a ela, enquanto que algumas gaiolas de macacos e periquitos foram desviadas para o outro lado da árvore, fazia os animais fazerem algum barulho, tal como se fosse o carteiro, a tocar a corneta da sua bicicleta, quando andava na distribuição, na aldeia do vale do Ninho d’Águia, de onde o Cifra era oriundo, e era sinal que lá vinha correio. Passado pouco tempo havia a sua distribuição, e desta vez, vinham duas cartas para o Cifra, uma dos primos de Lisboa e outra da mãe Joana, onde dizia mais ou menos,
depois de desejar muitos beijinhos e xi-corações, que estivesse bem, e todas aquelas coisas que as mães sempre desejavam:
“Olha, o senhor Manuel Manco, que vivia no mato, naquela casa sozinha, quase a seguir ao caminho para o Gravanço, morreu, foi encontrado morto, coitadinho, tão boa pessoa...”, e depois explicava mais alguns pormenores.
Então o Cifra fechou por momentos os olhos, lembrando-se do senhor Manuel, que devia de ter outro sobrenome, mas era conhecido por Manuel Manco, porque tinha só uma perna. Tinha sido casado, a esposa morreu com a doença do “tifo”, e tinha uma filha que foi “casada de encomenda” para o Brasil.
O povo dizia “casada de encomenda”, que era quando um português, “muito rico”, lá no Brasil, que andasse muito ocupado na “roça”, na “xácra”, no “açougue”, na “padaria”, no “botequim”, na “birosca” ou no “boteco”, mandava uma carta, normalmente ao senhor Regedor ou a Vossa Reverência, o senhor Abade da freguesia, a pedir esposa que soubesse cozinhar, lavar e engomar, que fosse donzela, estivesse vacinada e que fosse boa parideira.
Continuando, essa filha, foi para o Brasil e nunca deu sinal de si. O senhor Manuel Manco era um sobrevivente de guerra, pois fez parte do Corpo Expedicionário Português que esteve presente na Frente de Flandres, onde muitos militares portugueses foram mártires.
Havia um dia no ano em que vinham buscá-lo num automóvel preto, que tinha uma placa na frente, quase junto à manivela que o fazia começar a trabalhar, que dizia, “Propriedade do Estado”, e que parava quase junto à casa onde vivia o Cifra, que nessa altura era o Tó d’Agar, lá na sua aldeia do vale do Ninho d’Águia, vindo buscá-lo ao seu casebre, trazendo-o ao colo até ao carro, indo em seguida para a vila, com três ou quatro medalhas no peito, sobre um fato velho e preto, com um chapéu de aba larga, e um sapato, também preto no pé, que às vezes era o do outro pé, da perna que lhe tinham cortado.
Iam exibi-lo, ou seja mostrá-lo, como exemplo de coragem e bravura do Estado Novo, davam-lhe de comer, do bom e do melhor naquele dia, tiravam-lhe fotografias, de diversos ângulos, mostrando as medalhas, e onde aparecia, quase sempre a sorrir, mas em segundo plano, pois na frente e em grande plano, eram as caras rosadas e gordas das pessoas importantes da vila.
Ao fim da tarde vinha o motorista, que era o “Zica”, que dava sempre cinco tostões ao Tó d’Agar, por segurar na porta do carro, enquanto carregava o senhor Manuel Manco para fora do carro, e o ia “despejar” no seu casebre, dizendo:
- Até ao ano, Ti Manel
Durante o ano devia comer o que arranjava e das esmolas que a mãe Joana e as vizinhas lhe levavam. Elas lavavam-lhe também os trapos da sua roupa. Deslocava-se de um lado para o outro, à volta do seu casebre, com a ajuda de um pau que arranjou algures, parecendo-se com uma muleta. Tinha uma pequena horta e uma “arma de caça”, das pequenas de carregar pela boca, que usava para se defender dos lobos, que naquele tempo por lá havia, e também
para matar coelhos. Diziam que tinha uma grande pontaria, pois tinha sido um COMBATENTE.
Na boca do povo, era um herói COMBATENTE, da Primeira Grande Guerra, cheio de medalhas, que tinha estado ainda jovem, com saúde e as suas duas pernas, num cenário de guerra, defendendo a sua bandeira e a sua Pátria, mas que agora vivia sozinho, arrastando-se só com uma perna.
Morreu sozinho, quase abandonado!
O Cifra, acredita que já viu este cenário, em tempos recentes, mas deve de estar confundido.
Ah..., deve de estar mesmo confundido, pois já não tem idade e não tem a companhia do furriel miliciano para fumar um cigarro feito à mão!
Tony Borie,
Setembro de 2011.
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Nota do editor
Último poste da série de 21 DE AGOSTO DE 2013 > Guiné 63/74 - P11962: Bom ou mau tempo na bolanha (28): O José que já foi "Arroz com pão" (Toni Borié)
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
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2 comentários:
Amigo Tony. Nada mudou. As imagens que tão bem descreves, mantêm-se. Nas Tv's continuam os mesmos caras rosadas a aparecer. E esses mesmos continuam a desprezar os verdadeiros COMBATENTES senão até a achincalhar-nos pelas costas. Gostei e nunca te canses de falar quer neste SENHOR Manuel Manco, quer doutros que te lembres. Assim se manterá a memória e para memória de quem te ler. Um abraço
Veríssimo Ferreira
Caro Tony
Tal com sublinha o Veríssimo, pouco ou nada mudou, as coisas são sensivelmente as mesmas, com outros protagonistas mas 'rosados ou alanranjados', tanto faz, sobrando para as vítimas ou o esquecimento ou algum papel 'decorativo'.
É curioso como continuas rebuscando na tua memória, na tua experiência de vida e consegues sempre "ligar" esses acontecimentos com um ou outro aspecto da tua/nossa 'aventura africana'.
Repara, associando a lembrança do "Manuel Manco" (naquela época usavam-se mais as alcunhas, mas as pessoas sabiam porque é que ele era 'manco') reviveste a saga da chegada e distribuição do correio, fizeste a referência ao incontornável Honório, lembraste e esclareceste a questão pouco falada das "casadas de encomenda", falas do CEP na Flandres, recrias as 'homenagens folclóricas anuais' aos exemplos de dedicação à Pátria.
E, quanto a mim, terminas superiormente, voltando a 'vestir a pele' do Cifra, quando escreves que "deve de estar mesmo confundido, pois já não tem idade e não tem a companhia do furriel miliciano para fumar um cigarro feito à mão"... "voltando lá".
Abraço
Hélder S.
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