quarta-feira, 28 de agosto de 2013

Guiné 63/74 - P11990: "Memórias da Guiné", por Fernando Valente (Magro) (6): A invasão de Conacry

1. Continuação das "Memórias da Guiné" do nosso camarada Fernando Valente (Magro) (ex-Cap Mil Art.ª do BENG 447, Bissau, 1970/72), que foram publicadas em livro no ano de 2005:


MEMÓRIAS DA GUINÉ

Fernando de Pinho Valente (Magro)
ex-Cap. Mil de Artilharia

6 - A invasão de Conacry

No dia 23 de Novembro de 1970, Bissau ficou completamente às escuras. Não havia energia eléctrica em parte alguma.
Toda a gente ficou a pensar que o gerador tinha avariado.

Naquelas paragens, dadas as altas temperaturas que por lá se registam durante todo o ano, a energia eléctrica torna-se essencial para a maneira de viver a que os europeus estão habituados.
Sem energia o ar condicionado deixa de se fazer sentir, as ventoinhas deixam de funcionar e os frigoríficos deixam de conservar os alimentos e de refrescar as bebidas…

No dia seguinte a conversa de todos os europeus e porventura de muitos africanos era a falta de energia que se havia sentido durante a noite.

Que teria acontecido?

Começa a espalhar-se, muito em segredo, a notícia de que Bissau ficou às escuras na noite de 23 para 24 de Novembro e iria continuar sem qualquer iluminação nas noites seguintes porque se temia que os aviões MIG da República da Guiné-Conacry atacassem a cidade.
 
E depois começou a circular a notícia de que essa acção poderia vir a dar-se por retaliação, porquanto Conacry tinha sido atacada pelos portugueses na noite de 22 para 23 desse mesmo Novembro de 1970.
As notícias desse acto de guerra eram porém muito vagas e quando se falava nisso era muito em surdina, quase em segredo.

Resolvi saber o que se passou em concreto e sintonizei o meu rádio na frequência da Rádio Conacry. Comecei a ouvir notícias em francês que me desconcertaram, deixando-me boquiaberto com o que estava a ser divulgado nessa rádio.
 
E a data altura foi anunciado que o Tenente Januário dos Comandos Africanos, que eu conhecia bem, e que havia sido aprisionado em Conacry, iria relatar tudo quanto se passou.

Gravei o testemunho do Tenente Januário e o seu relato explosivo que reproduzirei mais à frente.
E comecei a tirar conclusões. A pouco e pouco, ao longo do tempo, compus um "puzzle" que julgo não andar longe do que verdadeiramente aconteceu.

A Guiné Conacry e o seu Presidente Sekou Touré, davam um total apoio ao PAIGC de Amílcar Cabral, movimento subversivo que combatia os portugueses.
 
Em Conacry estava instalado o Quartel-general Central do PAIGC e as suas bases na República da Guiné.
 
Por outro lado a oposição interna ao Presidente Sekou Touré estava continuamente aumentando e até já havia colaboração de guineenses de Conacry com os Comandos Africanos Portugueses.

Segundo Mário Matos Lemos, talvez tivesse partido dessa oposição a ideia da invasão da Guiné-Conacry.
 
Com efeito, Gago de Medeiros, no seu livro "Um Açoreano no Mundo", afirma que um representante da Frente de Libertação Nacional (Front National de Liberation) da República da Guiné o procurou em Genebra, em Setembro de 1967, pedindo-lhe que o pusesse em contacto com o Governo Português, o que terá acontecido.
 
Há quem atribua, contudo, a ideia da invasão ao Comandante Alpoim Calvão, apoiado pelo General Spínola. Seja como for, a ideia seria invadir Conacry e colocar um Governo na República da Guiné discretamente favorável à política colonial portuguesa.

"A esse governo nada mais se lhe exigiria que a interdição das actividades do PAIGC em território da República da Guiné.

A PIDE e outros serviços secretos da Europa (franceses e alemães) mais a CIA, estabeleceram contactos. Tratava-se de saber se diversos países seriam ou não favoráveis a um golpe de estado que depusesse Sekou Touré.

Spínola avista-se com Marcelo Caetano a quem expõe a ideia, solicitando-lhe o seu acordo.
Ao que parece Caetano não ofereceu grande resistência. pondo, no entanto, o seu governo fora do assunto. O Governo Português não teria conhecimento de nada do que se viesse a passar. Reserva-se, porém, o direito de vetar o governo fantoche que seria imposto à Guiné-Conacry se dele discordasse."(*)


O receio de se poderem verificar nacionalizações por parte do governo de Sekou Touré levaram multinacionais e serviços secretos a concordarem com a invasão. Por outro lado, o porto de Bissau e as Ilhas de Cabo Verde são considerados pelo Estado-Maior da Nato como bases estratégicas essenciais.

"Iniciam-se, então, os contactos para formação do governo fantoche a cargo da PIDE. São estabelecidas ligações com vários indivíduos dissidentes do regime de Sekou Touré e com refugiados políticos não só na Europa como em alguns países limítrofes da Guiné-Conacry.
Realizam-se várias reuniões na Europa.

Alpoim Cakvão desloca-se à Suíça a fim de participar numa dessas reuniões. A ela compareceu também Jean Marie Doré, primeiro e principal candidato a Presidente após o golpe de estado.
Doré esteve quase a ser aceite para o cargo, no entanto viria a ser posto de lado em virtude da sua conduta moral (...).

É então designado para Presidente o Coronel Diallou (ex-sargento do exército francês) pois oferecia maiores garantias que o anterior.

Escolhido o novo gorverno havia que arranjar os executores do golpe de estado.
Paralelamente às negociações com os políticos, os serviços secretos estabeleceram contactos com mercenários e refugiados da Guiné-Conacry que se encontravam em países fronteiriços.
Duas camadas de refugiados foram recrutadas: os dissidentes por motivos ideológicos e políticos e os que apenas tinham motivos raciais.

Uma vez contactado um número bastante elevado de indivíduos, navios de guerra portugueses foram às águas territoriais de vários países vizinhos, nomeadamente à Gâmbia e Serra Leoa, durante a noite, buscar grupos de indivíduos recrutados pelos contactos locais da PIDE, dispostos a participar no golpe. Uma vez recolhidos pelos navios da Armada Portuguesa foram transportados para a ilha de Soga no arquipélago de Bijagós, onde seriam treinados por um grupo de oficiais portugueses, à frente dos quais estava o Comandante Rebordão de Brito."(*)


Anteriormente, com vários meses de antecedência, haviam sido construídas instalações para albergar este pessoal.
 
Esta ilha de Soga foi escolhida por se ter considerado ser um lugar bastante discreto onde se podia realizar o treino do pessoal sem dar nas vistas. Na ilha de Soga vieram juntar-se aos mercenários e dissidentes de Sekou Touré, num total de 200 homens, mais 220 militares do Exército e Marinha Portugueses.

"A invasão de Conacry veio a receber o nome de código de «Operação Mar Verde».
Esta operação foi planeada com mais de um ano de antecedência e para ela contribuiram investimentos estrangeiros.
O ojectivo político da operação era a substituição do regime de Sekou Touré por um regime não favorável ao PAIGC e simultâneamente favorável às multinacionais e aos interesses estrangeiros na Guiné Conacry."
(*)

E favorável aos interesses de Portugal com interdição das actividades do PAIGC. Os objectivos militares da operação eram os seguintes, de acordo com uma entrevista dada ao Diário de Notícias, em 22 de Novembro de 2000, por Alpoim Calvão:

Em primeiro lugar destruir o Quartel-General Central do PAIGC. Não se tratava de eliminar os seus dirigentes, mas aprisioná-los se possível. Em segundo lugar libertar os prisioneiros portugueses que se encontravam em Conacry.


Em terceiro lugar destruir as vedetas e embarcações do PAIGC e da República da Guiné que estivessem no Porto de Conacry.
 
O quarto objectivo militar era a neutralização da aviação que se encontrasse no aeroporto.
Finalmente, o quinto e último objectivo da Operação Mar Verde era proporcionar o desembarque em Conacry dos elementos do "Front National de Liberation", opositores de Sekou Touré, que acompanhavam os portugueses na referida operação.


Durante a tarde do dia 20 de Novembro de 1970, o General António de Spínola, acompanhado do Comandante Alpoim Calvão, Capitão Almeida Bruno e Luciano Bastos, na altura Comandante Naval da Guiné, dirige-se à ilha de Soga, onde a bordo de um dos navios faz uma exortação aos Comandos Africanos, com viata à acção que iriam empreender.
Esta exortação, em português, é traduzida para crioulo pelo capitão de raça negra João Bacar Jaló (que eu conheci também).


Após o jantar, no mesmo dia 20, os navios Oriane (barco patrulha) [LFG-Orion], Cassiopeia (barco patrulha) [LFG], Dragão (barco patrulha) [LFG], Bombordo (barcaça de desembarque) [LDG-Bombarda] e Montante (barcaça de desembarque) [LDG] [e ainda a LFG-Hidra] zarpam para o largo de onde tomariam o rumo de Conacry.
 
A bordo de um dos navios, Alpoim Calvão comandaria todas as operações.
Embarcaram também nesse navio o Tenente Januário, Zacarias Saiegue [Saiegh] e Marcelino da Mata, todos de raça negra.

Noutros navios seguem, além da Companhia de Comandos Africanos (com o Major Leal de Almeida e o Capitão Bacar), um destacamento de fuzileiros especiais também africanos, o governo do Coronel Diallou e os grupos de combate compostos por dissidentes e refugiados do regime de Sekou Touré, bem como uma força de mercenários.
 
Durante todo o tempo que durou a operação, Alpoim Calvão teria estado em contacto rádio com o General Spínola.

À uma hora e trinta minutos de 22 de Novembro de 1970 Spínola terá enviado para Lisboa uma mensagem rádio dando por iniciada a Operação Mar Verde. A essa hora desembarcaram em Conacry a Companhia de Comandos Africanos, o Destacamento de Fuzileiros Especiais e o Grupo de dissidentes e mercenários.

"Os 220 militares do Exército Português e da Marinha e os cerca de 200 militares do Front National de libération, chegaram nessa noite a ter o controlo quase completo da capital da República da Guiné.
Destruiram as vedetas rápidas da Marinha Guineense e do PAIGC, assegurando o domínio do mar.
Atingiram a central eléctrica, deixando a cidade às escuras, ganhando maior efeito de surpresa.
Tomaram a prisão «La Montaigne», libertando 26 militares portugueses lá detidos.

Destruiram cinco edifícios do PAIGC, eliminando sentinelas e militares que estavam nas imediações, mas Amílcar Cabral não foi encontrado.

Na ânsia de encontrar o Presidente Sekou Touré e de o eliminar, revistaram o Palácio Presidencial, abandonado pela guarda, aterrorizada com o ataque e tomaram a residência secundária do Presidente, mas Touré não estava em nenhum dos locais.

Ocuparam ainda o Quartel da Guarda Republicana e o Campo Militar Samory, destruindo viaturas e originando centenas de baixas... Penetraram na base militar, mas os caças MIG tinham sido enviados para outro local.

Obtido o quase total domínio em terra, as forças portuguesas e da oposição guineense não conseguiram o domínio do ar" (**)

Mas houve outros acontecimentos que correram francamente mal.

Uma vez em terra, o Tenente Januário com o seu grupo de 20 homens, que tinha por objectivo a destruição dos MIG, deserta.

Por seu lado, Zacarias Saiegue [Saiegh] e o seu grupo não conseguiram tomar a estação de rádio, de onde devia ser feita uma exortação ao país pelo Coronel Diallou e a proclamação da destituição de Sekou Touré.

"Alpoim Calvão ao tomar conhecimento do falhanço da não tomada da estação de rádio e sabedor que os MIG não estavam no aeroporto, ordena a retirada levando os militares portugueses libertados. O Coronel Diallou, Presidente indigitado para a República da Guiné retira, também, abandonando os seus homens à sua sorte.

Às 9 horas e 15 minutos de 22 de Novembro de 1970 o Presidente Sekou Touré faz na rádio uma comunicação em que afirma que a situação se encontra normalizada e diz estarem ainda à vista os navios do invasor colonialista, o que era factualmente verdade."
(*)

(*) - Jornal Expresso de 3 de Janeiro de 1976
(**) - José Manuel Barroso. Diário de Notícias de 22 de Novembro de 2000.

(Continua)
____________

Nota do editor

Último poste da série de 21 DE AGOSTO DE 2013 > Guiné 63/74 - P11963: "Memórias da Guiné", por Fernando Valente (Magro) (5): Os movimentos subversivos

7 comentários:

Juvenal Amado disse...

A operação tem todos os condimentos das acções de guerrilha, terrorismo e contra terrorismo bem ao geito da guerra fria.
Herois e más companhias porque mercenários são a pior escumalha a que um regime pode deitar a mão.
Está claro que os mercenários também sabem com que podem contar e são obrigados a morrer por quem lhes pagou, cobrindo as retiradas dos seus senhores e por vezes ficando como unicos culpados quando todos enjeitam responsabilidades.

No entanto já várias vezes veio à baila o nome do tenente Januário que desertou com os seus 20 homens que eram os responsáveis pela destruição dos Migs.
Eu ouvi da boca de um ex comando africano, que o tenente Januário disse já na embarcação que ia seguir para Conakri que ia desertar.
Porquê que ele desertou?
O que é que está na outra face da est´ria?

Um abraço

Hélder Valério disse...

Caros camaradas

Muito interessante este singelo relato. E educativo.

Abraços
Hélder S.

Álvaro Vasconcelos disse...

Estimados Camaradas
Muito se tem escrito sobre a operação "Mar Verde".
Nessa data estava em Aldeia Formosa (Quebo), tinha lá sido colocado em 28 de Julho de 1970.
Lembro-me que a pista se situava-se a aproximadamente 12 kms da fronteira com a Guiné/Conacry e a cerca de 50 kms da capital.
Dessa data recordo o intenso movimento de helis e dos Nord' Atlas e de ter sido destacado para "dar-a-bomba" (bombar gasolina dos bidons de 200 ltrs, para os depósitos das aeronaves nos abastecimentos na pista!

admor disse...

Também acho este post bastante interessante e elucidativo.

Em termos operacionais mesmo que só tivessemos alcançado o objectivo de libertar os nossos militares que lá estavam presos, já considerava esta operação um êxito, tudo o que viesse por acréscimo era mais que bom.

Só tenho pena que Portugal não tenha ripostado com tanta ou mais determinação muito mais vezes.

Abraços.
Adriano Moreira

Gonçalves disse...

Fui combatente na Guiné,de 1967/69.
Tenho lido bastante sobre o que lá se passou e não se passou, mas diz-se.
Ainda assim, fico com a impressão de que há muito por contar quando se fala da operação Mar Verde.
Conheci os tenentes Januário Lopes e
Zacarias Zaieg em Tavira, no CISMI
onde tiramos a especialidade e fomos promovidos a Cabos Milicianos. Depois encontrei-os na Guiné, em 1968.
É-me difícil acreditar que o Januário tenha desertado (abandonado a carreira que um dia me disse, gostava muito).
Terá ficado para trás ?
Em Sarauol, uma noite tivemos um pelotão perdido. Foi encontrado, não ficou para trás nem desertou.
A todos
um abraço verdadeiro
Ex-furriel Gonçalves
C.C.1787

Francisco Baptista disse...


Quando esta operação foi efectuada eu estava em Buba, onde esteve um destacamento de fuzileiros africanos, que no final da operação regressou novamente a Buba. UM tenente desse destacamento ,que era de Coimbra, não recordo o nome, (infelizmente já terá morrido)contou-me o que se passou com bastantes pormenores. Sem querer falar de mais, falarei apenas sobre o tenente Januário. Segundo o nosso camarada a notícia de que iriam invadir(recebida no navio) Conakry foi muito mal recebida por muita gente, sobretudo pelos comandos africanos. Sobretudo por questões políticas eram contra a invasão de um país independente.
Por esse motivo o tenente Januário ter-se-á entregue com o pelotão. Mais tarde constou-se que teriam sido todos mortos, pelo regime do Sekou Touré ou pelo PAIGC, não recordo bem.
Um abraço a todos
Francisco Baptista

fFrancisco Baptista disse...

Peço desculpa por não o ter referido mas o relato feito pelo Valente Magro está de acordo com o que ouvi ao tenente dos fuzileiros. Só não fala na revolta surda ou nem tanto que houve no navio quando se soube
qual o objectivo, por parte de algumas tropas. Falou-se também dum major dos comandos que terá sido repreendido ou punido pelo general Spínola no regresso a Bissau.

Francisco Baptista