quinta-feira, 29 de agosto de 2013

Guiné 63/74 - P11991: Conversas à mesa com camaradas ausentes - Estórias da História da Guerra Colonial – Guiné-Bissau (José Martins Rodrigues) (5): Os meses seguintes até às férias na Metrópole

1. Quinto episódio da série "Conversas à mesa com camaradas ausentes", pelo nosso camarada José Martins Rodrigues, ex-1.º Cabo Aux Enf.º da CART 2716/BART 2917, Xitole, 1970/72:

A todos os ex-combatentes da Guiné
Só peço ao meu futuro que respeite o meu passado

No baú das memórias de cada um de nós existem inúmeras “Estórias da Guerra” por contar.
O convívio semanal na Tabanca de Matosinhos e o nascimento da ONG Tabanca Pequena-Amigos da Guiné a que me honro pertencer, despertaram-me para o desafio de retirar do baú as minhas “estórias da guerra”. Para ultrapassar a minha manifesta falta de jeito para a escrita, socorro-me de um método narrativo baseado na descrição cronológica de episódios, a que chamarei “Conversas à mesa com camaradas ausentes”. Do outro lado da mesa estará sentada a esperança de encontrar alguém que se reveja nas “estórias” relatadas e sinta a emoção do reencontro com realidades da nossa vivência na Guiné.


CONVERSAS À MESA COM CAMARADAS AUSENTES

ESTÓRIAS DA HISTÓRIA DA GUERRA COLONIAL - GUINÉ-BISSAU

5 – Os meses seguintes até às Férias na Metrópole

Era a época das chuvas e, estavam já inscritas nas nossas rotinas a presença diária das lavadeiras, dos “putos” dos abrigos, e as idas à Ponte dos Fulas. As saídas às tabancas e patrulhamentos, passaram a ser mais espaçadas. Devido ao isolamento provocado pelas chuvas, não eram possíveis as colunas de reabastecimento o que transformou, durante meses, o Rancho Geral numa rotina que alternava entre “vianda” com atum ou com salsichas porque, os pára-quedas que traziam os frescos eram um verdadeiro milagre. Logo pela manhã, os putos da nossa estimação encarregavam-se de que o pequeno-almoço não faltasse no momento certo. As lavadeiras tratavam as roupas com esmero e desdobravam-se na conquista da nossa simpatia. Era a luta pela sobrevivência, vista do outro lado.

Já tudo funcionava, parecia um paraíso. As primeiras grandes “pielas” não se fizeram esperar. Nuns quantos abrigos cantarolava-se ao som de uma viola e as patuscadas ditavam o fim de uns quantos frangos e cabritos. Rolavam as “bazucas” da Cristal. Lembras-te camarada? Tinhas um talento soberbo para as petiscadas. Fazias uns pitéus de hipopótamo, de vaca ou de frango que eram de chorar por mais. Bons momentos, que nos faziam esquecer as agruras da guerra. Os jogos de futebol, algumas paixonetas pelas bajudas e as idas domingueiras a banhos em Cusselinta, compunham o resto do ramalhete.

Devido à intensidade das chuvas, o caudal do Rio Corubal subiu acentuadamente. Uma noite, as sentinelas do posto da cozinha assustadas, deram o alarme. Teriam ouvido um zumbido muito intenso e que lhes parecia ser um helicóptero. Todo o pessoal ficou em prontidão, mas a presença da aeronave não se confirmou. Todos se interrogavam da origem do estranho barulho. A resposta veio pela manhã pela boca da população. O “zumbido” teria origem na força da deslocação do vento, provocado pela grande altura da vaga do Macaréu no Corubal. A pouca distância do quartel para o rio fez o resto.

Não resisto camaradas, a partilhar convosco uma “estória” singular de que fui um dos intervenientes. E quero garantir-vos que, só eu e o principal actor a conhecemos e do seu nome sempre farei reserva.
Um dia, um dos oficiais da companhia em privado no Posto de Socorros, foi-me dizendo que, como já tínhamos uns meses de comissão sentia necessidade de ter relações sexuais, de preferência longe do Xitole e, não se via, devido ao seu posto a ir à tabanca solicitar os favores sexuais de uma mulher.
Mas porquê a mim este pedido, interrogava-me eu? E logo a mim, que também estive uns meses a “seco” com medo das doenças sexualmente transmissíveis, ou não fosse eu Enfermeiro e, não soubesse das misérias de uns quantos! E acabei por entender a escolha do oficial.
Devido à minha função, respeitado pela população, entendeu ele que a mim elas não recusariam um pedido. Não era tão fácil assim mas, vestido dos meus brios e dos dotes que os outros me atribuíam, não dei o flanco e respondi:
- Vamos tentar.

Engendrei uma estratégia, que nem para mim tinha utilizado.
- Quando o senhor se deslocar às tabancas mais afastadas, eu também irei prestar assistência sanitária às populações e veremos então o que se pode arranjar.

E lá fomos um dia.
Chegados a Tangali, debaixo de um grande mangueiro no centro da tabanca, pedi que se reunissem as pessoas que necessitassem de assistência. Entre o grupo que entretanto se juntou, estava uma linda mulher, alta, de tez clara, talvez Futa-Fula com uma criança ao colo, aí pelos dois anos. Adivinhava-se-lhe uns lindos seios e um corpo escultural. Vai ser esta, pensei eu.
Propositadamente deixei-a ficar para o fim.
O “consultório” era no interior de uma das habitações próximas do mangueiro e o oficial assistia ao desenrolar das “consultas”.
Quando ela entrou, eu dei-lhe sinal de que o momento tinha chegado. Abordei a mulher e, ela pediu-me “mesinho” para a criança que estava com “panga na bariga”. Antes de continuar, solicitei-lhe que “partisse catota” com o oficial, que era “manga” de bom pessoal e que eu depois trataria muito bem o seu menino. Com alguma relutância, que sinceramente vos digo, me pareceu algo artificial, acedeu ao meu pedido.
Deixei-os a sós durante o tempo suficiente enquanto me demorava, simulando ir à viatura buscar medicamentos. Por pudor ou por respeito, eu e o oficial nunca mais voltamos a trocar qualquer palavra a propósito deste episódio.

Umas horas depois eu questionava-me? Mas que desperdício, para mim “niente”.
Bem mais à distância no tempo, não pude evitar um sentimento de repulsa por me ter prestado a esse papel. Era a guerra que tudo explicava, ou antes, que anestesiava o nosso carácter.
E o tempo ia correndo até que, um nefasto acontecimento veio empalidecer os nossos dias.

No percurso entre o Xitole e a Ponte dos Fulas existia um trilho, aí a um quilómetro do quartel, que se sabia usado pelo PAIGC e que era necessário armadilhar para se evitar que viessem colocar mais minas e atacassem o Xitole como já o haviam feito.

Uma secção, com dois furriéis especialistas em minas e armadilhas, foram encarregados dessa tarefa. Era um final de tarde e o tempo urgia antes que escurecesse. Os furriéis montavam a armadilha enquanto o resto da secção, afastada, fazia protecção. Inesperadamente, aconteceu o desastre. Um deles, completamente destroçado, teve morte imediata. O outro ficou gravemente ferido no rosto, no tórax e quase perdeu uma mão. Eram dois jovens, dois jovens com a vida e os sonhos interrompidos. Caía uma noite muito enevoada, o que não permitiu voos para a evacuação urgente do ferido muito grave.

Foi uma noite muito difícil, em que assistimos a noite inteira, minuto a minuto, ao sofrimento e à luta pela vida de um camarada e, tendo bem ao lado, o outro que havia falecido. Enquanto aceitava impotente, a impossibilidade da evacuação que insistentemente pedi, não consegui evitar as lágrimas pelo sofrimento humano a que assistia. Sempre atentos, mantivemos os procedimentos de estabilização do ferido até à evacuação, que aconteceu logo que a luz do dia o permitiu.
O nosso camarada saiu das nossas mãos com vida e assim continuou depois de tratado em Bissau e evacuado para Lisboa. Termos consciência de que a nossa acção contribuiu para salvar uma vida, enche-nos de uma imensa alegria, quase como que um hino de louvor à Vida.

Estávamos novamente na época seca. Os tempos seguintes foram de flagelações à Ponte dos Fulas e ao Xitole, levantamentos e rebentamentos de minas, patrulhamentos e Operações de grande envergadura. Destaco, pelas especiais circunstâncias as “ARRUAÇA" 1 e 2. A Operação “Arruaça 1” foi um autêntico fracasso militar.

Na progressão para SATECUTA, o PAIGC montou uma emboscada de que resultaram ferimentos nos dois guias africanos, sendo um deles com gravidade. Avisado dos feridos, desloquei-me à frente e deparei com os dois guias prostrados no chão. Logo me apercebi de que um deles não inspirava cuidados de maior, mas o outro estava esventrado e com os intestinos pousados no chão, misturados com terra e capim.
O velho guia estava estável e lúcido. No seu aportuguesado crioulo, balbuciava que ia morrer e eu tentava transmitir-lhe serenidade e a convicção de que se salvaria, embora eu próprio não estivesse convencido disso.
Em pleno mato, sob fogo do inimigo, as condições de tratamento dum caso destes, são muito difíceis. O ferido apresentava sinais de que uma bala ou um estilhaço lhe teria “rasgado” a parede abdominal. O objecto causador só parou no velho cantil esmaltado que o ferido trazia à cintura. Felizmente nenhum órgão vital fora atingido, nem mesmo os intestinos. Foi necessário retirar destes, todos os vestígios de terra e capim e repô-los na cavidade abdominal.

Já mais sereno, o guia pediu-me que ficasse com o amuleto que trazia ao pescoço e uma bolsa em pele e os entregasse à família. Confiava, como se de um testamenteiro se tratasse, que eu cumpriria o seu pedido, o que lhe garanti. Tocou-me bem fundo este gesto, que revela o quanto a natureza humana é tão frágil em momentos limite.
E o nosso velho Guia foi evacuado a partir do mato e, apesar de longo internamento em Bissau, sobreviveu. Mas, sem guias, a Companhia não tinha possibilidades de prosseguir. Bem lá do alto do avião ligeiro DO, o Comando insistia que, guiados por ele, podíamos continuar. Não foi esse o entendimento do Comandante da Companhia que, avaliando as circunstâncias, ordenou a retirada para o Xitole apesar das dificuldades de orientação que viriam a provocar a fragmentação da Companhia.

O comandante da Operação ordenaria a repetição da mesma “ARRUAÇA 2”, três dias depois. Esta Operação correu bem e cumpriu o objectivo de destruir SATECUTA.

Sem perceber como, aquando da entrada no objectivo, eu ia integrado no pelotão de assalto. Após os primeiros minutos e não havendo sinal do inimigo, começamos a incendiar o colmo dos telhados das casas. Quando as labaredas já iam altas, rebentou um fogachal medonho. Entretidos na tarefa de pegar fogo à tabanca, eu e mais dois camaradas mal tivemos tempo de nos abrigarmos atrás de uma grande palmeira que se encontrava perto de nós. Lembram-se camaradas? Um de vós lançava dilagramas, o outro disparava a sua G3 e eu, no meio de vós de cabeça bem rente ao solo.

Quando, por momentos levantei a cabeça, assustei-me com a possibilidade de os dilagramas baterem nas grandes folhas da palmeira. O perigo cercava-nos. Foi o momento em que concentrei o pensamento e senti a necessidade de, por instantes, dedicar uma breve lembrança aos que me eram mais queridos.
Até que um de vós percebe que um líquido quente lhe escorre para o pescoço e, ao passar a mão no rosto e vendo que está suja de sangue, quase entra em pânico. Foi preciso um forte abanão para te sossegar e, estando nós ainda debaixo de fogo, aconcheguei-te a mim para fazer o que fosse possível naquelas circunstâncias. Pude verificar que um estilhaço se espetou na parede do crânio na zona da orelha e que, mesmo sangrando muito, não estavas em perigo.

Temendo provocar uma situação que poderia não controlar, optei por não mexer no estilhaço e controlar a perda de sangue. Foste o único ferido, continuaste connosco até ao fim e só foste evacuado a partir do Xitole. A vinda do providencial helicanhão pôs fim àquele inferno.

A pressão sobre a Companhia era enorme. Cerca de um mês depois realizou-se a operação “CORRIDA ENTUSIÁSTICA” para o mesmo objectivo mas por diferentes percursos.
Digno de realce, foi o momento em que um helicóptero desce numa bolanha e, de surpresa, temos perante os nossos olhos o Comandante-Chefe General Spínola. Foi gratificante e moralizador sentir a sua presença e companhia durante uma parte do percurso a caminho do objectivo.

Por esta altura, o Serviço de Saúde funcionava só com dois cabos enfermeiros. O outro camarada por castigo, foi deslocado para Nhabijões/Bambadinca e para os que ficaram, sobrou uma carga excessiva de trabalho.

Lembram-se camaradas que parti para a Guiné de relações cortadas com o meu Pai. Essa situação vinha-me castigando interiormente o que, aliado ao imenso cansaço, fez-me alimentar a ideia ir à Metrópole de férias. Pretendia tentar reatar as relações com o meu Progenitor e, na companhia da família e da namorada comemorar o meu aniversário.
Um tio materno, intercedeu junto do meu Pai e conseguiu que ele aceitasse receber-me em casa. Para minha felicidade, o meu pai esperava-me no Aeroporto de Pedras Rubras. Trocamos aquele apertado abraço que me toldou a emoção até às lágrimas. O Amor falou tão alto, quanto um grito do fundo da Alma.

(Continua)

Corubal nas proximidades do Xitole

Rápidos de Cussilinta na época seca

Hora das lavadeiras, casa do Chefe do Posto e, em primeiro plano à direita, Bar do Soldado e Capelinha

Campo de futebol e pista de aterragem
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Nota do editor

Último poste da série de 22 DE AGOSTO DE 2013 > Guiné 63/74 - P11968: Conversas à mesa com camaradas ausentes - Estórias da História da Guerra Colonial – Guiné Bissau (José Martins Rodrigues) (4): Da adaptação ao Xitole, até ao baptismo de fogo

4 comentários:

Anónimo disse...

Camarigo josé Rodrigues

Tocantes algumas passagens do teu relato,especialmente as últimas.

Curam-se as feridas mas ficam as cicatrizes.

Um abraço fraterno

Joaquim L. Fernandes

Antº Rosinha disse...

A foto da baliza (de cibe?) merece um prémio para as melhores fotos da guerra colonial desde o tempo de Diogo Cão até hoje.

Diz-me José Rodrigues eras tu que estavas a defender o penalti?

Era o tio do Bruma que ia rematar?

A camisa no canto da trave era da tua farda?

Não tendo nada a ver com a baliza, mas a (des)propósito já há ingleses equipados para ir à Síria.

Anónimo disse...

José Rodrigues:Creio que se chamava Sambatene o guia ferido que referes.Na minha altura,no fim da guerra,era o decano dos nossos guias. Muito respeitado e acarinhado por todos nós.
José Zeferino

José Martins Rodrigues disse...

Camarada Fernandes. Das feridas da alma,o tempo e os afetos profundos tudo ajudou, felizmente, a cicatrizar.
Ó camarada Rosinha! Então não se vê logo, até pelo equipamento, que estou a defender o "disparo" de uma velha máquina fotográfica.
Camarada Zeferino. Obrigado por fazeres luz sobre o nome do "nosso" velho Guia. O nome de Sambatene soa-me familiar e penso mesmo que será esse o seu nome. Até ao final da minha comissão não me apercebi do seu regresso ao Xitole e, dada a sua idade e a extensão dos seus ferimentos, nunca pensei que voltasse ao "ativo". Era um ser humano muito sereno e muito respeitado por todo o pessoal da CART 2716.
Um sincero agradecimento pelos vossos comentários.
José Rodrigues