sexta-feira, 7 de março de 2014

Guiné 63/74 - P12803: Manuscrito(s) (Luís Graça) (24): O inferno do Xime: à memória do Vitor Manuel Amaro dos Santos (1944-2014), ex-cmdt da CART 2715 (Xime, 1970/71)

O inferno 
da antiga picada 
do Xime-Ponta do Inglês




por Luís Graça







À memória do Vitor Manuel Amaro dos Santos  
(22/11/1944-28/2/2014), 
ex-cmdt da CART 2715 (Xime, 1970/71);
e aos nossos bravos camaradas 
Cunha, Ribeiro, Soares, Monteiro, Oliveira e Camará,
caídos em combate, 
na Op Abencerragem Candente, Xime, 
em 26/11/1970.



Não havia nada, na antiga estrada
do Xime-Ponta do Inglês,
ligando o Geba ao Corubal.
Não havia nada naquele lugar
que era de tormento,
àquela hora mortal da madrugada.
Nada, onde um homem
pudesse afogar a sua sede,
matar a sua fome,
aliviar o seu sofrimento,
espantar o seu medo.
Nem sequer um banco de pedra
como aquele em que agora me sento,
frente ao Tejo, 
fresco, límpido, matinal,
e onde alguém escreveu, em letra garrafal: 

Amo-te, Marta, és a razão do meu viver!

Hoje estou à beira Tejo
e não vou a caminho da Foz do Corubal.
O Tejo corre para o Atlântico,
e o Corubal para o Geba.
Em Lisboa tenho o azul do céu,
que é o azul do desejo
e, dizem, o azul mais puro do mundo.
No Geba, tenho uma G3,
tarrafo, lodo, merda,
dois cantis, 

duas granadas,
um céu de bronze,
e mil e uma razões 

para (sobre)viver.


Nem poderia haver
nenhum banco de pedra,
nem nenhum jardim,
nem nenhuma Marta à minha espera.
Nem muito menos nenhuma Marta
que fosse a minha razão de viver.
Quando muito, um fantasma,
surgido do cacimbo matinal,
por detrás do baga-baga, 
armado de Kalash!

Não tinha, de resto, nenhuma razão de viver,
raison d’ètre

diria a minha copine,
se eu fosse refratário, ou desertor,
e tivesse dado o salto para França.
Não tinha nenhuma razão de viver, 

não, senhor,
nem de morrer,
nem de matar,
não tinha sequer nenhuma razão
para estar ali, 
àquela hora.

Não, não havia nada na antiga picada, 
abandonada,
do Xime-Ponta do Inglês.
Nem um pub irlandês
com a ruiva Guiness, delambida,
a piscar-te olho, 
a ti, herói português, 
com um improvável genoma celta.
Nem sequer uma tasca afadistada
da tua saudosa Lisboa da Mouraria,
com a perna da morena, 

 esbelta,
a faca na liga, 
deixando antever, 
lânguida,
os doces mistérios da sua floresta-galeria.

Não, não havia nada,
nem uma decrépita gasolineira
dos filmes do Faroeste da tua infância,
onde abastecer a tua Daimler,
salta pocinhas, minas e armadilhas,
em que ias de Bambadinca ao Xime,
simplesmente para beber uma cerveja,
ou por pura bravata,
noutra estação, 

noutra paragem,
sem escolta nem picagem,
num jogo de roleta russa.
Nem muito menos a Marta-Mátria,
republicana e laica, 
verde e rubra,
de peito feito às balas,
dando a volta à cabeça dos rapazes,
mancebos, 

de viril membro,
em passada a Festa das Sortes,
na Feira Grande de Setembro,
Vai mais um tirinho, ó freguês!

Não, não havia nada,
nem sequer uma simples mulher,
uma fêmea de larga bunda,
ou até uma simples mulher polícia sinaleira,
cata-ventos, 

bailarina,
redondinha, 

assexuada,
de pelo na venta 

e apito na boca,
no cruzamento dos quatro caminhos.

Não, já não vou de G3 em punho,
em defesa da honra das donzelas
da minha Pátria, 
chamem-se elas
Marta ou Mátria!
Não, já não vou, 
cego, surdo e mudo,
a correr, disposto a morrer,
com ganas de gritar Pátria ou Morte!,
na velha picada, abandonada,
do Xime-Ponta do Inglês 

onde não havia nada,
nem ao menos um tosco espanta-pardais,
especado no meio do capim,
em vez do campo de mancarra do fula.
Ou do teu jardim, 

do teu Éden.
Ou até uma simples seta,
de pau tosco,
a apontar a meta,
a apontar-te a direção do inferno,
a maldição bíblica do pecado,
omnipresente, 
obsessivamente eterno.

Havia, apenas, o fim da picada,
o mal absoluto,
o inferno.
À minha espera, 
à nossa espera.
Às 8h45 da manhã 

do dia 26 de Novembro
de mil novecentos e setenta.
Da era de Cristo.
… E Conacri ali tão perto!

O caminho mais curto para o inferno ?
Não o vês, ó bravo soldado português?!,
a picada, abandonada, do Xime-Ponta do Inglês,
onde Cristo seguramente nunca parou
nem amou, 
nem penou,
nem sofreu, 
nem pecou,
nem muito menos rezou.
O teu Cristo etnocêntrico, judeu, semita,
que nem sequer era caucasiano,
e nem muito menos sabia 

onde era a Senegâmbia
ou sequer o Império do Mal(i).

Pensar global, 
sonhar alto, 
agir local,
meu sacana…
Ou melhor ainda: não pensar, 
muito menos sonhar,
tiro instintivo, 

a varrer o capim.
Eis a ordem do capitão 

que tem acima o major,
na sua avioneta, 

no seu PCV,
e no topo o general, 
o Com-Chefe, 
o Caco Baldé,
Herr Spínola, 
o Homem Grande da Guiné.

E à frente de todos,
com o seu inseparável cachimbo,
o Seco Camará, 

seco de carnes, 
velho e valoroso guia das NT,
pau para toda a obra, 
cão rafeiro, 
cão de fila, 
sábio e matreiro,
mandinga do Xime,
herói da minha galeria de heróis,
verdadeiro líder, 
etimologicamente falando,
aquele que vai à frente mostrando o caminho.
E que vai morrer.

Nesta guerra de baixa intensidade,
não dês vazão 

ao Tratado das Paixões da Alma.
E por favor, seus cabrões, poupem-me as munições!
Da NATO!
Dizem que a glória te espera, no mato,
com direito a cruz de guerra com palma!

escreveu um serial killer
roqueteiro,
com fama de fazer saltar cabeças a 50 metros,
ao longo da alameda dos bissilões.
Vai para casa, tuga, 
lá na cidade,
que a Marta, a tua namorada, 
põe-te os cornos!

Não, não havia nada
naquela picada, 

3 comentários:

Henrique Cerqueira disse...

Luís
É só para te dizer que é simplesmente fantástico ler os teus manuscritos. é difícil comentar por não conhecer a Ponta do Inglês ou o Xime, mas o teu manuscrito é tão "comum" a todos nós que se adapta perfeitamente ao meu Biambe, Bissorã ou outra localidade da Guiné. É no contesto do teu manuscrito que se encaixa perfeitamente em todos nós.
Um abraço.

Henrique Cerqueira

Bispo1419 disse...

Dolorosamente belo!

a) ManuelJoaquim

Joaquim Luís Fernandes disse...

Caro Luís Graça

Mais um belo e sentido poema que nos partilhas. Obrigado.

Poema de dor, lamento, raiva e...
...A poesia, caminho de libertação.

Sempre as mesmas questões existênciais:
O que é a vida e quais as razões para viver.
E o que fazer com a vida que se tem.

E naquele tempo
e naquele lugar,
tanto que havia para fazer,
tanto que havia para amar!

Então,
como ainda hoje,
em que tudo está suspenso
e quase nada está feito!

Um abraço
JLFernandes