sábado, 1 de novembro de 2014

Guiné 63/74 - P13833: Manuscrito(s) (Luís Graça) (41): Memento, homo, quia pulvis es et in pulverem reverteris

Lembra-te, ó homem, que és pó!...

por Luís Graça

[em dia de finados, 
lembrando os nossos entes queridos, mais os amigos e camaradas, todos os  que já partiram à nossa frente...]

O cemitério enche-se de flores,
ostensivamente;
é um jardim de mármore e granito,
com centenas de velas acesas
que à noite se transformam em fogos fátuos 
e libertam fortes odores.
Durante toda a tarde as famílias da freguesia
visitam as campas e os jazigos dos seus mortos
e convivem, ruidosamente, umas com as outras,
os vivos com os mortos,
os mortos com os que hão-de morrer.
Mistura-se a tristeza com a alegria,
mas vai-se ao cemitério de dia,
nunca de noite.

É a festa dos mortos,
mas também a celebração da vida,
a afirmação da convivialidade,
a reafirmação do poder da vida sobre a morte,

o reforço dos laços dos vivos,
que são vizinhos uns dos outros,
parentes, 

familiares,
amigos,
e que também estão na lista dos candidatos ao além.
Não sabem, porém,
nem quando, 

a que dia, hora e minuto,
nem em que lugar,
nem como nem porquê…
E mais: 

recusam-se a marcar passagem…
Só o velho barqueiro de Caronte
é que tem a lista dos passageiros
e os horários
e os percursos da última viagem
da terra dos vivos.
Aquela que poucos fazem de bom grado...

É também quiçá a recusa da morte,
da partida definitiva,
do fim da peregrinação terrena,
a reivindicação da imortalidade,
o pecado da usurpação do poder divino,
é, enfim, a manifestação da culpa por se estar vivo
em lugar daqueles de nós,
que nos eram muito queridos,
e se calhar muito melhores do que nós,
e que morreram (ou partiram),
injustamente,
antes de nós,
muito antes de nós,
alguns em tenra idade
sem sequer terem conhecido 
os sabores do leite e do mel
da terra que lhes fora prometida ao nascer...

Quem vive mais longe 
(Porto, Lisboa e até Paris...),
vem de propósito neste dia
enfeitar as campas e os jazigos dos seus mortos,
aqui erigidos neste cemitério.
em terra de antigos rendeiros,
camponeses pobres,
que ainda hoje cultivam a memória do Zé do Telhado,
herói do banditismo social oitocentista,
e que fazem questão de mostrar,
aos ricos 

e aos fidalgos de antigamente,
que a democracia e a liberdade trouxeram também
a igualdade de oportunidades
e a miragem da mobilidade social,

e o sonho do sucesso na vida,
tipificados no brasileiro 
e no francês do século passado...

No meio do pequeno cemitério da freguesia,
construído tardiamente, 
em finais do século XIX,
há ostensivamente uma capela,
a da família da casa
que, foi desde os tempos do liberalismo,
a verdadeira dona e senhora desta terra
e dos seus habitantes,
dona dos seus corpos 
e até das suas almas...
No cimo da porta da capela,
em estilo neogótico revivalista,
pode ler-se a frase niilista,
em poético latim:
Memento, homo, quia pulvis es
et in pulverem reverteris.

Como os antigos pobres rendeiros não sabiam ler,
e muito menos o latim 
dos frades absolutistas e dos juristas liberais,
alguém terá escrito a giz, branco,
no mármore liso.
a corresponde tradução em português chão:
Lembra-te, carago, que és pó
e em pó te hás-de tornar...


Mesmo na morte, os homens tentam,
pateticamente,
inutilmente,
bizantinamente,
reproduzir a segregação socioespacial,
a distância, que mantinham entre si, em vida,

conforme a classe em que nasceram
ou a que ascenderam...
É por isso que eu gosto da designação, 

filosoficamente irónica,
dada a alguns cemitérios públicos no sul, no Alentejo:
Campo da igualdade...
Metaforicamente falando,
a gadanha da morte ceifa tudo e todos,
ceifa rente a vida,
e não poupa tanto a espiga de trigo
como a erva do campo,
a papoila vermelha e o saramago,
a raposa e a abetarda,

a lebre e o cágado,
a mondadeira e o patrão,
a rosa e o espinho,
o rico e o pobre,
o herói e o cobarde,
o general e o soldado,
a bonita e a feia,
o novo e o velho,
o amo e o servo,
o poeta e a sua musa,
o médico e o doente,
o santo e o pecador,
o amigo e o inimigo...

Passei por lá,
pelos cemitérios 
de Paredes de Viadores
e Paços de Gaiolo,

a serra de Montemuro em frente,
o vale cavado pelo rio Douro, a meio,
e havia gente à volta das campas,
de todas as campas, menos de duas...
Tirei fotografias 

aos grandes,
vistosos 

e dispendiosos arranjos florais,
sobre as pedras de mármore ou granito polido,
que devem ter custado os olhos da cara 
aos parentes dos mortos...
Fotografei grupos de familiares e amigos
em amena 
 (e aqui e acolá alegre, 
viva,  franca,  saudável) cavaqueira. 
Quem disse que o cemitério não pode ser uma passerelle ?
Percebi que a homenagem aos mortos
é também (e sobretudo ?) um pretexto
para os vivos se reencontrarem
e se mostrarem uns aos outros...
e para dizerem, alto e bom som,
que estão vivos,
e de boa saúde,
e que estão prósperos,
bem de vida,
com os seus Mercedes de matrícula K,
com os exames e análises em dia,
e o certificado de robustez física,
enfim, com o corpo e todas as miudezas 

dentro do prazo de validade.
Em suma, estão vivos,
sãos,
e recomendam-se...

Mas que também têm sentimentos,
não importa se pequenos ou grandes.
E que sabem mostrar 
que têm decência
e recato e memória e saudade...
E que sabem chorar, 
sinceramente, os seus mortos,
os seus entes queridos,
que, mesmo contra toda a evidência,
estarão algures numa galáxia
a zelar por eles,
ínfimas partículas do sistema solar.
Muito simplesmente, são
ou parecem ser gente feliz
com uma lágrima furtiva ao canto do olho.
Em dia de festa dos mortos,
ou melhor, em Dia (feriado) de Todos os Santos
que é também, para o povo, 
 o Dia de Finados ou dos Fieis Defuntos.
Um dia , ao mesmo tempo,  de tristes e doces lembranças.

No sul, da Reconquista, 
de onde eu venho,
e a que eu pertenço,
mix de bárbaro, romano, judeu,
visigótico, mouro, franco, africano,

também há o culto antiquíssimo, 
megalítico, pagão,
dos mortos,
de que as antas, os menires e os cromeleques 
são um magnífico exemplo arqueológico.
Mas aqui, no norte, o cristianismo
(e a Igreja Católica Apostólica Romana)
soube quiçá enquadrá-lo melhor,
dar-lhe a necessária dimensão
escatológica, cultural, gregária, 

simbólica, normalizadora...
Por todo o país, no Portugal profundo
(ou no que resta desse mito),
os mortos são lembrados no seu dia,
e no seu sítio,
convenientemente apartados dos vivos.
All souls' day, diz-se em inglês,
o dia das alminhas 

(que ternura de termo!),
diz o nosso povo.
Leio na Enciclopédia Católica
(cuja origem remonta a 1917):
"A fundamentação teológica desta festa
é a doutrina segundo a qual
as almas que, ao partirem do corpo,
não estejam perfeitamente limpas dos pecados veniais,
ou não tenham totalmente expiado
as suas transgressões passadas,
ficam privadas da Visão Celeste.
No entanto, os fiéis sobre a terra podem ajudá-los,
por intermédio de orações, esmolas
e sobretudo do santo sacrifício da Missa".

Não sei, contudo, 
qual é o entendimento da Igreja Católica
em relação aos seus membros 

que morrem em combate,
sejam quais forem as causas, boas ou más,
por que se tenham batido...
No passado, nas Cruzadas,
ou dilatando a fé e o império, 

ao serviço do rei,
mais tarde pela Pátria, 

conceito republicano e burguês.
Pode ser-se herói,
e herói da Pátria,
e mesmo assim não se estar na lista dos eleitos,

que são todos os nomeados e lembrados...
Pode ter-se morrido pela Pátria
e mesmo assim esse sacrifício 

ter sido perfeitamente inútil...
Ou no mínimo, branqueado,
ignorado,
esquecido,
ocultado
ou até mesmo denegado.
Pode-se ter morrido pela Pátria, Mátria ou Fátria
(que o mesmo é dizer

morrer-se pelo pai, pela mãe, pelo irmão),
em Angola, Guiné ou Moçambique,
e mesmo assim ser-se completamente olvidado
(que é o pior dos abandonos),
nos nossos cemitérios,
no dia da festa dos mortos...

Para onde irão as almas dos combatentes?,
pergunta, ingénuo, o poeta…
Quase sempre, muitas vezes, 
em toda a parte,
em todos os tempos,

vão para o limbo, 
vão, quando muito, 
para o silêncio dos arquivos e das estatísticas,
vão para o purgatório do olvido,
que é esquecimento 

mas também letargia, adormecimento. 
Como em Paços de Gaiolo,
do antiquíssimo concelho,
já extinto, de Bem Viver,
ou em tantas outras freguesias
do nosso querido Portugal profundo,
que já foi medievo, mouro, visigótico, romano, celta, lusitano...
Como estas duas campas, rasas, 

de dois bravos
que deram a vida aos vinte anos, 
no ultramar português,
Joaquim Araújo, 

Francisco Soares…
Deram a vida por alguém, 

por alguma coisa,
a que eles e os seus, carinhosamente,
chamavam Pátria,
Morto pela Pátria…
Eterna saudade de mãe e irmãos…


De facto, a guerra do ultramar nunca existiu.
Os mortos do ultramar nunca existiram.
Há uma amnésia geral
em relação aos nossos mortos do ultramar,
uma espécie de má consciência,
de denegação,
de branqueamento,
de alívio...
Mesmo que hoje comecem a aparecer,
nas nossas cidades, vilas e vilórias,
monumentos ao combatente,
como antigamente proliferaram
os monumentos ao soldado desconhecido
da I Grande Guerra.
Pode-se monumentalizar os mortos,
e esquecer os vivos.
Pode-se exorcizar os fantasmas,
mas não desformatar o disco rígido
de toda uma  geração.
Por que o fim da guerra colonial
(ou do ultramar, como quiserem),
foi literalmente o fim de um pesadelo...
Para os jovens da minha geração,
um milhão e trezentos mil que por lá passaram,
fora os duzentos mil 
que não se apresentaram às sortes...
E é bom que os jovens de hoje, 
os nossos filhos e netos, 
saibam isso,
que havia então o serviço militar obrigatório
e que era altíssima a probabilidade de se ser mobilizado
para uma das três frentes de guerra,
ou teatros de operações,
que Portugal mantinha em África...
Hoje há ainda algum pudor em falar dessa guerra,
de baixa intensidade,
mas que consumia vidas e cabedais.
mesmo que o suicídio, 
os acidentes rodoviários,
os acidentes de lazer,
e os acidentes de trabalho,
matassem muito mais 
que todas as três guerras juntas...
Só o suicídio mata mais, por ano,
em todo o mundo,
que todas as guerras juntas,
locais, regionais e interbacionais..
Pudor, 

lassidão,
talvez vergonha, 
quiçá culpa...
Da guerra e dos seus mortos, 

de ambos lados,
dos trasladados e dos insepultos,
dos seus desaparecidos,
dos seus estropiados,
dos seus mortos-vivos, 

dos seus vivos-mortos,
dos que não vieram nem em caixão de chumbo,
dos que vagueiam, ainda hoje, como fantasmas
pelas margens dos Rios da Guiné,
Geba, Corubal, Mansoa,
Cacheu, Buba, Cumbijã, Cacine...
Ou dos rios de Angola e de Moçambique
cujos nomes os poetas, os bandeirantes e os geógrafos
já esqueceram...

Se calhar a amnésia é recíproca:
de nós, felizardos, safados,
que estamos vivos 
(mesmo que mais velhos, mais tristes e mais pobres),
em relação a eles 

que tiveram o supremo azar de morrer
(em combate, ou de acidente, doença,

ou até de homicídio e suicídio);
e, se calhar,  deles em relação a nós,
já que não mais nos visitam, 

escrevem,
assombram,
incomodam,
interpelam,

imploram,
gritam,
atormentam
ou questionam...

No dia dos Fiéis Defuntos, 
na festa dos mortos,
os que morreram de morte natural,

ou de morte matada
no campo de batalha, 

nas picadas
e nos aquartelamentos,
na África remota,
distante,
dos séculos passados,
na antiga vila e freguesia da germânica Fandinhães
(substituída do tempo do Marquês de Pombal
por Paços de Gaiolo),

não têm,  no cemitério local,
uma menção especial,
um pequeno talhão,
uma atenção especial,
um arranjo floral,
umas simples flores de plástico,
ou até uma singela frase
escrita a pau de giz, branco,
na pedra oxidada e suja da sua campa...

Mas será que deveriam tê-lo ?
Hoje são apenas pó,
na terra dos homens,
e sobretudo, o que é mais triste,
na memória dos vivos...

Candoz, 1/11/2008
Versão 10, revista em 1/11/2014

________________

Nota do editor:

Último poste da série > 2 de outubro de 2014 > Guiné 63/74 - P13680: Manuscrito(s) (Luís Graça) (40): Selfies /autorretratos: o meu amigo F..., pintor, e eu... Queria que fôssemos, a salto, até Paris, em 1965...


9 comentários:

Luís Graça disse...

Amigos e camaradas:

É um dia que nos traz a todos/as, doces e tristes lembranças...

Escrevi e publiquei, em anterior versão, este longo texto poético, pensando nos nossos entes queridos que já nos deixaram, bem como nos amigos e camaradas que já partiram, e cuja memória temos que saber honrar...

No nosso caso, em que já estamos na fila da frente, pior que a guerra, ainda é o esquecimento dos que a fizeram e que com ela sofreram, de ambos os lados; pior do que a guerra, é fazer de conta de que ela nunca existiu...

É por isso que importa continuar a partilhar memórias (e afetos). Por isso, escrevam...

PS - É uma versão aumentada, corrigida e melhorada (versão 10)... Não a vou incluir na "antologia poética" que estou a organizar para eventual publicação próxima...e que já vai na versão 32...

Juvenal Amado disse...

Quando eu era criança passava normalmente este dia nos Casais do Chão perto da Mendiga, Serra dos Candeeiros. A minha avó Maria Cordeiro fazia anos neste dia. Logo de manhã com a saca às costas íamos juntamente com os garotos da aldeia pedir o Pão por Deus e todo o dia batíamos aqueles lugares batendo às portas----
"Pão por Deus à mangalhona, saco cheio vamos embora"
Em 99% das casas éramos recebidos com amplos sorrisos e as nozes, os figos secos, os bolos de azeite iam enchendo o saco, em troca eu e a minha irmã satisfazíamos a curiosidade sobre de quem éramos filhos e netos e lá partíamos não sem antes cantar " Aqui cheira a Rosas, Aqui Moram as Formosas"
Era assim uma festa para nós nascidos e criados em Alcobaça mas que tinham raizes profundas naquelas terras de tão pouco provento onde se utilizava a água da chuva e a luz era a das candeias a azeite.

Era também um dia em que se visitava os mortos e durante a noite havia a crença de que os mortos visitavam as famílias. Em fim nós garotos era de meter medo mas também havia muita magia. Era uma festa sem excessos e celebrava-se no fundo a família.

Hoje importou-se uma "festa" com o nome de Halloween com raízes noutras gentes e outras culturas, onde as crianças gritam "doçura ou travessura" . Enfim outras vidas, outros costumes, mas não é e nunca será a mesma coisa.

Vasco Pires disse...

Bom dia Luis,

Cordiais saudações.

Pois é..., como outrora os filhos transviados, há muito, também nós fomos riscados do "álbum de família".

Resta-nos ir contando a nossa história; quem sabe, bem mais tarde algum antropólogo vai reescrevê-la num daqueles "calhamaços,que só eles leem.

Quanto aos "nossos" mortos, além de lembrá-los,exultemos ter sobrevivido!!!

forte abraço
VP

Luís Graça disse...

Capela de N. Sra. da Livração de Fandinhães

Localização: distrito > Porto / Concelho > Marco de Canaveses / Freguesia > Penhalonga e Paços de Gaiolo

Notas para o pessoal da Tabanca de Candoz, seus amigos e visitantes...

Faz parte do Rota do Românico (do Tâmego e Sousa)...

http://www.rotadoromanico.com/vPT/Monumentos/Introducao/Paginas/Introducao.aspx


"Nota Histórico-Artistica

"Este templo era a sede da paróquia de Fandinhães, uma urbe medieval que terá perdido a sua importância nos finais do século XIII, inícios do século XIV. Esta edificação românica, feita possivelmente na segunda metade do século XIII, "(...) está reduzida apenas à capela-mor do primitivo projecto e tudo indica que sempre foi obra inconclusa." (ALMEIDA, 1986, p. 14).

"Actualmente, o templo reduz-se à cabeceira, uma vez que a estrutura da nave foi desmontada em 1873 para que a pedra do aparelho fosse utilizada na obra de ampliação da matriz de Torre de Moncorvo (Idem, ibidem, p. 98).

"A actual fachada do templo corresponde ao arco triunfal da igreja primitiva, com duas arquivoltas assentes sobre colunas adossadas com capitéis decorados.
O espaço interior possui ao centro altar com painel de azulejos hispano-árabes. Na parede fundeira foi colocado o retábulo de talha dourada e branca dividido em três painéis, o do centro albergando uma imagem de Nossa Senhora da Livração, os laterais com as imagens de São Brás e São Martinho.
Catarina Oliveira
GIF/IPPAR/ 19 de Setembro de 2006"


http://www.patrimoniocultural.pt/pt/patrimonio/patrimonio-imovel/pesquisa-do-patrimonio/classificado-ou-em-vias-de-classificacao/geral/view/5813231/

Luís Graça disse...

Sobre as origens e as práticas do "Pão-por-Deus", da nossa infância (, no meu caso, passada no oeste estremenho, tal como o Juvenal), vd. entrada interessante e completa na Wikipédoa...

http://pt.wikipedia.org/wiki/P%C3%A3o-por-Deus

(...) "O peditório do pão-por-deus está associado ao antigo costume que se tinha de oferecer pão, bolos vinho e outros alimentos aos defuntos. Era costume "durante o ano, nos domingos e dias festivos se offerecem por devoção picheis, ou frascos de vinho, e certos pães, que põe em uma toalha estendida sobre a sepultura do defunto, e uma vela acesa." (...)

"Também se colocava pão, vinho e dinheiro no caixão do defunto para a viagem. (...)

"No canon LXIX do II Concilio de Braga do ano 572 proibia-se que se levassem alimentos à tumba. (...)

"Os peditórios para as almas realizam-se ao longo do ano, em Janeiro pelos caretos (...) , durante a quaresma canta-se às almas santas 6 e faz-se um peditório (pedir as janeirinhas,pedir as maias, pedir os reizinhos (...) são peditórios que tal como os dos caretos se inserem no ciclo dos peditórios rituais que têm lugar ao longo do ano)(...) como o do de "andador de almas", que pedia esmolas pelas almas. (...)

"Nos Açores, acreditava-se que uma alma podia azedar o pão. Para que tal não acontecesse, o pão da primeira fornada, "o pão das almas", era colocado numa cadeira na rua à porta de casa, coberto por um pano, para que a primeira pessoa que passasse o levasse para si ou desse a alguém necessitado" (...)

Luís Graça disse...

Pois é, Juvenal, parece que o Halloween, o Happy Halloween, é cada vez mais "irrecusável", à medida que o "cilindro compressor" da cultura global dominante arrasa tudo e todos, a começar pelas nossas tradições... e valores. Pobres mamãs e avós, impotentes perante a força do "marketing"... Como hoje tudo se mercantiliza, o pobre do "pão-por-Deus" fica a perder... Viva a geração do Harry Porter e os Midasdeste mundo que transformam em ouro tudo que tocam...

Um abraço. Luis

____________

(...) "A origem do Halloween traz às tradições dos povos que habitaram a Gália e as ilhas da Grã-Bretanha entre os anos 600 a.C. e 800 d.C., embora com marcas das diferenças em relação às atuais abóboras ou da muita famosa frase "doces ou travessuras", exportada pelos Estados Unidos, que popularizaram a comemoração. Originalmente, o Halloween não tinha relação com bruxas. Era um festival do calendário celta da Irlanda, o festival de Samhain, celebrado entre 30 de outubro e 2 de novembro e marcava o fim do verão (samhain significa literalmente "fim do verão").

A celebração do Halloween tem duas origens que no transcurso da História foram se misturando (...)"


http://pt.wikipedia.org/wiki/Dia_das_bruxas

ana oliveira disse...

Quando eu era garoto, em Brunhoso, os mortos tal como os vivos tinham um tratamento pobre. No cemitério não havia campas nem jazigos. Minto havia somente dois jazigos de duas famílias mais ricas. A minha avó paterna, viúva desde os 40 anos, farta de amealhar dinheiro das tiragens da cortiça, que nunca dividiu com os filhos, também quis ser rica depois de morrer e vai daí mandou construir um grande jazigo para família. Esse jazigo foi construído teria eu oito ou nove anos, a minha avó terá durado mais dois ou três. Nesse tempo os mortos eram enterrados, os ricos com grande pompa com missas celebradas por muitos padres, os pobres somente com o padre da paróquia. Não havia carros funerários nem para uns nem para outros, os parentes próximos, com possibilidades fisicas, transportavam a urna. Não havia flores para o morto, a gente da minha terra nesse aspecto era muito prática, para quê flores se o morto não as vê. Havia muita gente da aldeia, quase toda, e das aldeias próximas, que aumentava na medida da riqueza ou do prestigio do morto. No cemitério o padre rezava os responsos, à medida que as moedas de uma croa ou mais iam caindo na bandeja. Finda a cerimónia cada um ia à sua vida e o morto ficava no seu descanso.
No dia de finados, dia 2 de Novembro, instituido há secúlos pela Igreja Católica ( o dia 1 de novembro sempre foi o dia de todos os santos, talvez por ser feriado as pessoas dos grandes centros passaram a homenagear os seus mortos nesse dia). A minha aldeia mais obediente à curia romana homenageava os seus mortos no dia dois. De manhã cedo o padre rezava a missa e no final ia com todos os crentes em procissão ao cemitério onde rezava alguns responsos a pedido de uns e de outros.
No final as pessoas tinham o dia livre para poderem ir para as suas fainas. Ninguem tinha a preocupação de arranjar as campas onde a erva crescia por vezes a bstante altura já que não havia animais que a pastassem. Se os falecidos não se incomodavam com o aspecto do cemitério, e aquele relvado com papoilas, malmequeres e outras flores até nem era feio, porque se haviam de incomodar os vivos. Até um dia em que o coveiro pela primavera vendo erva tão tenra e viçosa no cemitério decidiu meter lá duas mulas que tinha, de noite. Alguém do povo viu e espalhou a notícia e o povo que no seu intimo e nas suas orações respeitava muito os seus mortos, mesmo sem os visitar nem lhes enfeitar as campas, não gostou e despediu o coveiro. O povo sabe que nas campas no final fica só terra sobre terra mas para ele essa terra é sagrada, é a melhor terra da aldeia, a terra dos seus antepassados ou filhos e não deve ser pisada por outros animais além do homem.
Isto camarada Luís Graça, poeta e escritor que aprendi a admirar muito para lá de reticências e preconceitos iniciais é o poema sem rima e a prosa que nao explica tudo do manancial que os povos de todas as latitudes têm para expressar a sua compreensão do sagrado, do eterno, enfim desse grande abismo que nos aguarda.
Eu como tu gostava de encontrar lá esses jovens que morreram na Guiné dos nossos tempos, nessa guerra anacrónica mas em que muitos acreditaram que eram uma guerra patriótica e eu respeitando as ideias e a forma de sentir de uns e outros digo que viva Portugal. Cont. Francisco Baptista

ana oliveira disse...



Para acabar amigo Luís Graça quero dizer-te que gostei do teu poema tão expressivo e tão longo, e desejar-te muitos anos de vida, para que a tua voz não se cale e que continue a lembrar e homenagear esses nossos camaradas que tão novos nos deixaram e que com eles levaram parte da nossa alma e da nossa vida.

Um grande abraço

Frncisco Baptista

Luís Graça disse...

Francisco: Pus na montra grande do blogue, porque merece(s), este teu texto sobre as representações e as práticas em relação aos mortos na tua terra, Brunhoso, terra nobre e antiga, que vale uma visita prolongada, antes que os seus 200 e picos habitantes sejam também declarados pelos gajos de Lisboa (ou pelos gajos que mandam nos gajos de Lisboa) como "espécie em vias de extinção", tal como nós combatentes da Guiné...

Um bom dia de fieis defuntos em Brunhoso e no resto do Portugal profundo...