quarta-feira, 1 de abril de 2015

Guiné 63/74 - P14426: Brunhoso há 50 anos (4): A Páscoa (Francisco Baptista, ex-Alf Mil da CCAÇ 2616 e CART 2732)

Brunhoso - Com a devida vénia


1. Em mensagem do dia 31 de Março de 2015, o nosso camarada Francisco Baptista (ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 2616/BCAÇ 2892 (Buba, 1970/71) e CART 2732 (Mansabá, 1971/72), fala-nos da Páscoa de antigamente na sua terra natal, Brunhoso.


Brunhoso há 50 anos

4 - A Páscoa

A Quaresma era o inverno das nossas vidas de meninos e adolescentes, depois do Natal, festa tão diáfana, tão alegre, do menino Jesus e da Sagrada Família, com prendas se bem que pobres, à medida da nossa pobreza mas que sendo as únicas, eram fantásticas. No período entre o Natal e o fim do carnaval havia tantas brincadeiras de garotos, o lançamento do pião, a bilharda, o arranca trigo, a louta, as raparigas tinham o jogo da macaca e outras. Logo após a terça-feira de Carnaval, essa grande festa pagã, com tanto desvario e diversão, caímos, mal dormidos como que empurrados por pecados que não sei se tínhamos cometido nas festas carnavalescas, na quarta-feira de cinzas, com missa bem cedo, era dia de trabalho, em que o padre Zé nos punha a cinza na testa, enquanto repetia a mesma advertência em latim: "Memento, homo, quia pulvis es et in pulverem reverteris" - "Lembra-te ó homem que és pó e em pó te tornarás". Em termos teológicos e filosóficos, esta será uma afirmação discutível, mas este blogue não é um concílio de bispos, nem uma ágora ou assembleia de filósofos.

Nesse dia todas as pândegas e excessos vínicos dos homens e rapazes, bem como as nossas brincadeiras de garotos passavam a ser pecaminosas por ofender ao sofrimento de Nosso Senhor Jesus Cristo que tanto terá penado por nós, no Monte das Oliveiras, nas ruas de Jerusalém, na cruz, no gólgota ou calvário, há mais de 2000 anos.
Dias negros e sombrios, entre o Carnaval e a Páscoa, que iriam marcar as nossas vidas pela tristeza e pela culpa, para todo o sempre. Todos nós meninos, garotos e jovens, mais ou menos inocentes, tivemos que nos arrastar por esse túnel longo e escuro.

A Igreja ancestral, a velha Igreja institucional, pecaminosa e libertina, do poder imperial, temporal e espiritual, da Roma sagrada, depois confinada ao Vaticano, das guerras santas e cruzadas, da arte e da opulência, marcou-nos a alma com ferro em brasa, a nós filhos de Brunhoso e de tantas outras aldeias do vasto mundo, por pecados que ainda não conhecíamos.

A Igreja comandava a nossa vida espiritual dentro da moral rígida que esses bispos e padres formados na escolástica de S.Tomás de Aquino e no cantochão igualmente antigo, falando, nas igrejas, esse latim clássico que ninguém entendia, mas que dava mistério e pompa aos rituais solenes que se celebravam em igrejas e catedrais.

A quaresma, esse tempo de luto, em que o padre e toda a igreja se cobriam de roxo, era o tempo da penitência, da abstinência, das cruzes, das bulas, da desobriga tão exigente sobretudo para os homens que fugiam à confissão, como o diabo da cruz.

Para divertimento dos rapazes e exasperação das mulheres mais velhas, havia nessa época o ritual que numa noite, que não recordo, percorria toda a aldeia, que se chamava "o serrar das velhas" que imitando o barulho duma serra manual e fingindo um prolongado carpir, iam recitando quadras, das quais só recordo uma: "Estamos no meio da quaresma, sem provar o bacalhau, serramos esta velha, como quem serra um pau".
Achei sempre este ritual desumano e violento para as avós da nossa terra, não faço ideia qual será a sua origem.

Antes da Páscoa, no sábado de aleluia, o ambiente começava a desanuviar, deixavam de se ouvir as matracas que na semana santa convidavam os crentes para as cerimonias religiosas, para dar lugar a alguns toques de sinos, ainda tímidos.

Os sinos tocariam com entusiasmo e continuadamente a partir da meia-noite de sábado. Nosso Senhor Jesus Cristo ressuscitara e isso era motivo de júbilo para todos os cristãos. Os rapazes não iriam dormir nessa noite, atarefados em enfeitar o campanário da igreja com as melhores flores que encontrassem no campo, e em manter os sinos a tocar durante toda a noite e todo dia de Páscoa.

Saídos dos grandes fornos de lenha, esses grandes pães feitos de farinha, azeite, ovos, presunto, linguiça e toucinho, abençoados com gestos e rezas por essas sacerdotisas, nossas mãe, avós, irmãs, eram, continuam a ser, melhores, mais saborosos e mais divinos do que o pão ázimo da Páscoa dos judeus.

A festa da Páscoa já estava a ser preparada pelas mãos das mulheres que na sexta-feira ou sábado, faziam os folares.

Os fornos, aquecidos com giestas e estevas, eram como altares de fogo onde a alma dessas mulheres se elevava em preces de amor à família e a esse Deus que ressuscitava.

A Páscoa era a festa das flores, os rapazes davam o tom ao enfeitar o campanário, a festa do folar, a festa da primavera, a festa da renovação.

Os rapazes, os mais felizardos, vestiam fatos novos, tal como as raparigas, vestidos novos, nesse dia.

De muito novo e já adolescente, lembro-me de ir com amigos, amigas, irmãos, irmãs, primos e primas, a comer o folar pelos lameiros dos vales cheios de flores primaveris

Em Brunhoso, no tempo do padre Zé, que terá pastoreado a aldeia quase tantos como o Salazar governou o país, não havia visita pascal, ou compasso. Depois da morte dele, foi para lá um padre da terra que quis instituir essa cerimonia. No primeiro ano acabou por entrar em choque com a tolerância do povo que não lhe perdoou a facto de não ter entrado numa casa onde o homem e a mulher não eram casados.

Durante muitos anos não voltou a haver compasso em Brunhoso. A Páscoa, sempre a associei a prados verdejantes e floridos, ao renascer das folhas, das árvores e das flores, à grande festa da natureza, à festa da primavera festejada por muitos povos antigos e modernos de muitas culturas e religiões.

Pelo sabor do folar, pelo repicar dos sinos, pela família, a presente e a que já partiu, pela beleza renovada dos vales e dos montes, gosto muito de Brunhoso no dia de Páscoa, somente não fui lá em dois anos da minha vida, foram os dois anos que passei lá longe, na Guiné do nosso descontentamento mas que apesar disso nos deixou tantas saudades.

Boa Páscoa, um abraço.
Francisco Baptista

Fotos: Com a devida vénia a Brunhoso
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Nota do editor

Último poste da série de 22 de março de 2015 > Guiné 63/74 - P14399: Brunhoso há 50 anos (3): Festejos do Entrudo (Francisco Baptista)

8 comentários:

Luís Graça disse...

Ftancisco, é um texto de antologia... Nenhum de nós faria melhor, e tu tens a grande vantagem das vivências de Brunhoso...

No meu oeste estremenho, na minha terra. Lourinhã, há algumas dessas tradições, associadas à Quaresma e à Páscoa, mas falta-lhea a força telúrica, a magia pagã e a identidade cultual de Trás-Os-Montes...

Somos descendentes de mouros... Uma alegre Páscoa para ti e para famílçia, em Brunhoso!... Es+pero poder ir a Candoz, e abriur a nossa porta ao compasso... Luís

Luís Graça disse...

Francisco: Tanto quanto me lembro das minhas aulas de antropologia, a "Serração da Velha" marca o fim do solstício do inverno e o início do solstício do verão. É um rituald e passagem. Simboliza o fim do inverno, celebra a renovação da vida que vem com a primavera.

Em geral, há uma boneca, em ponto grande, sob a forma de um velha. É carregada para um local, público, onde vai ser serrada. Em aldeias de economia agropastoril de montanha, em Trás os Montes, há grupos de rapazes, os "caretos", que levam chocalhos de vacas e que fazem uma grande alarido à portas das casas das mulheres mais velhas. A "velha" é depois querimada fora da aldeia. A festa tem também uma forte componente de crítica social e de subversão da hierarquia da comunidade...

Ainda há terras que mantêm tradição, de origem pagã.

Vd. Visão "on line"

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Serração da Velha. Afife despediu-se do inverno

É desde 1978 que manda a tradição em Afife. Na passada quarta-feira fizeram-se ouvir os triquelitraques, a "velha" saiu à rua e deram-se as boas-vindas à privamera. Foi a
"Serração da Velha".

VEJA AS FOTOS e o VÍDEO

Catarina Neves (texto) e Lucília Monteiro (Fotos)
15 de março de 2015

É no Litoral Norte de Portugal, na pequena freguesia de Afife, que se faz cumprir religiosamente aquela que é a mais antiga tradição popular da região, em Viana do Castelo. A "Serração da Velha" enterra o Inverno e festeja a chegada da Primavera mas carrega toda uma conotação social e satírica.

Como manda a tradição, na quarta-feira de Cinzas, dias depois da comemoração do Carnaval, é dia para "limpar o pó" e levar os triquelitraques para rua. É graças ao seu som característico que a população fica a saber que está a ser preparado o evento.

Até lá, os organizadores da festa fazem um peditório para depois construírem o boneco, desenhado à semelhança da pessoa mais idosa da Freguesia, e que depois é colocado numa padiola iluminada. A "velha", como é chamada, é transportada aos ombros de quatro habitantes acompanhados pelo cortejo "fúnebre" e pelo som dos triquelitraques.

Com uma conotação marcadamente social e crítica, a "Serração da Velha" termina no auge da Centenária Mesa de Pedra com a leitura do "Testamento da Velha" que é, essencialmente, um documento satírico onde se traçam críticas sociais, "espetam-se" agulhas nos autarcas, critica-se o que está mal e brinca-se com os solteiros da região.

A festividade termina depois da leitura do testamento. De seguida, queima-se a velha - antes era serrada, daí o nome da festividade - ouvem-se as últimas "gargalhadas" dos triquelitraques e guarda-se o instrumento para o ano seguinte.


http://visao.sapo.pt/serracao-da-velha-afife-despediu-se-do-inverno=f813243

Luís Graça disse...

Quadras da serrada da velha em Paredes de Coura:

Nós vamos serrar a velha
Na noite que nos é dado
Serra-se a velha, serra-se a nova
Serra-se a velha, a velha, a velha

Serra-se a velha para o forro
E a nova para o tabuado
Serra-se a velha, serra-se a nova
Serra-se a velha, a velha, a velha


Minha mãe tem um pandeiro
E não sabe tocar
Serra-se a velha, serra-se a nova
Serra-se a velha, a velha, a velha

Só toca a minha tia
Ou toca a minha avó
Serra-se a velha, serra-se a nova
Serra-se a velha, a velha, a velha


Fonte:

Blog Folclore de Portugal > 21 de março de 2012 > Serrada da Velha (ou Serração da Velha): uma tradiçaõ da Quaresma

http://folcloredeportugal.blogspot.pt/2012_03_01_archive.html

Luís Graça disse...

Atenção, noutras terras, faz-se a "queima do Judas", já no sábado de Aleluia... Seria uma versão "cristianizada" da serração da velha...


http://www.folclore-online.com/textos/carlos_gomes/queima_judas.html

Anónimo disse...



Amigo Luís:

Sobre o serrar da velha,em Brunhoso, o que recordo, é que seria pelo meio da quaresma, aliás como assinalam os versos que escrevi; "estamos no meio da quaresma, sem provar o bacalhau, serramos esta velha, como quem serra um pau". Julgo que havia muito alarido e "choradeira", mas os versos seriam só estes. Também não havia qualquer boneca, do que recordo haveria somente um pau e uma serra manual para melhor imitar o serrar.
Quando era muito jovem, os meus pais não me deixavam sair para participar nessas brincadeiras, já noite alta, mais tarde já adolescente, muitas vezes não estava na aldeia, mas a estudar noutra terra.
Procurei dar a melhor informação do que recordo, mas prometo consultar amigos e conterrâneos para colmatar possíveis lacunas.
Muito obridado pelas tuas palavras e pelo incentivo de amigo.
Um abraço e uma boa Páscoa, em Candoz que também é uma terra de muitas tradições.

Franciso Baptista

Anónimo disse...

Não posso deixar de comentar um texto tão eloquente e ao mesmo tempo tão enternecedor. Sim, não é fácil descrever com tanta minúcia e rigor histórico sem descurar o bucolismo e a dignidade das mulheres e homens de Brunhoso. Está, neste teu úbere relato, tudo ou quase tudo: a idiossincrasia de uma comunidade, a sua relação com a natureza e com Deus, a resistência às instituições e, sobretudo a sua dignidade.
Boa Páscoa Francisco.
Carvalho de Mampatá.

Anónimo disse...

Quando o povo de Brunhoso se zangou por o novo padre se ter recusado a entrar numa casa de não casados, ele soube ser menos tomista e mais aristotélico ou mais filósofo e menos teólogo ou ainda mais racional e menos escolástico.
Um abração
Carvavalho de Mampatá

JD disse...

Caro amigo Francisco,
Estive a alentejanar, e quase perdia a leitura desta reportagem magnífica sobre o período pascal.
Em Cascais, no meu tempo, ainda que todos recebesse-mos educação católica, éramos muito menos identificados com as liturgias respectivas, bem como com outras tradições, nomeadamente as gastronómicas, que terão ligação aos movimentos migratórios do interior para as cidades.
Parabéns, está muito bem descrito.
Com um abraço
JD